01 dezembro, 2010

Caminhos do Meu Navegar - (5)

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Cap II - Por terras de Angola (cont.)

Tantos dias sem Maria do Sol, nem Senhora do Mar




16 – Uma grande confusão – Passada a euforia da chegada, passou-se a outra euforia, a do render da guarda com a rotação das companhias, onde a minha companhia (maçaricos) substituía a que lá estava (velhinhos). As duas unidades militares, a minha acabada de chegar e a que ali estava, prestes a partir, duplicavam a população do aquartelamento dimensionado em cozinha, refeitório, casernas e latrinas, para cerca de 130 homens e ali se alojaram, durante cerca de 5 dias quase o dobro e as suas almas. Se a razão de cada um ocupasse lugar seriam ainda mais, mas a consciência deles e a minha não estiveram presentes nesses dias de espólio de coisas e de emoções. Aos soldados, cujas competências não se esperava ser de utilização necessária, nada mais restava do que cumprir a escala de sentinela, ir buscar água a uma nascente tão perto que dispensava escolta e outras pequenas tarefas. As almas dos que iam regressar ao “puto”, tinham por ocupação permanente fazer longas descrições do que ali passaram, contar piadas e desenrolar todo o anedotário acumulado ao longo de quase dois anos. As almas que iam ficar ouviam. Umas faziam-no interessadamente, outras não escutavam o quer que fosse, mas postavam-se embriagadas ou apenas embevecidas pela felicidade daqueles, tantos, que iriam poder regressar com vida…
17 – Colocados num corredor de infiltração. Na frente de guerra, não – O nosso comando (capitão, sargentos e alferes) recebia do outro todos os pormenores de carácter militar e operacional a que estiveram sujeitos. Terão descrito como a guerrilha tinha evoluído na zona, agora apaziguada e como vinha o efectivo militar a ser solicitado para outras zonas onde a guerrilha tinha crescido em ataques e flagelações. E porque os segredos militares, se existiam era para serem contados, depressa todos souberam que, na zona, os guerrilheiros limitavam-se a aliciar as populações e a atravessar a fronteira de Angola para o Congo e do Congo para ela, na faixa que ia de não sei onde até Maquela, ou até mesmo para além dela… A guerrilha não iria chatear mesmo que nós chateássemos a guerrilha, pois uma coisa era para eles importante: manter um corredor de passagem para abastecimento, munições e reforço das suas hostes. Ali não corriamos grande perigo...
18 – Matámos os últimos daquela espécie? – O furriel vagomestre, encarregue de assegurar a alimentação do efectivo militar que ia ficar, pegou na listagem e conferiu os pratos, copos, tachos, talheres, panelas, cafeteiras. Tudo conforme. Seguiram-se os géneros: massa, arroz, feijão grão, batatas, atum, outros enlatados e muitas outras mercearias. Tudo conforme. Por fim os frescos e o vinho, medidos a olho. Parecia estar mais do que devia, sem sobrar, pois nessa noite seria reforçada a ceia e talvez até o jantar. Tudo parecia pronto e cumprido. Mas não. Faltava transmitir conhecimento das zonas e locais de caça à pacaça. Na madrugada do dia seguinte saíram dois unimogs com voluntários sorteados, pois os que se ofereciam para um primeiro safari eram bem mais do que o máximo autorizado e o sorteio veio resolver quem seriam os eleitos. Foram e regressaram 4 horas depois com dois animais e um acto heróico para contar. A maior pacaça tinha sido abatida com tiro à queima-roupa, depois de ferida, pelo alferes Sanches. Como todos os actos heróicos esta bravura fora cometida na mais ingénua ignorância, mas o feito correu por todas as sanzalas em redor e todos ficaram a admirar o feito. Mesmo aqueles pretos, e eram muitos, os que privados de eles próprios caçarem e de montarem as armadilhas para acederem periodicamente a uma refeição de carne, elogiavam o feito e passaram a ter-lhe um enorme respeito. Claro que o respeito se devia à frieza e ao uso da arma, não à forma em que se expressava a sua alma. Fica como memória que aqueles dois animais foram os únicos a deixarem-se abater. A região estava dizimada e nos locais indicados, mesmo as junto às linhas de água, não havia nada…
19 – Também eu rendi, com a Minha Alma por perto – De manhã, o furriel enfermeiro (velhinho) veio-me chamar, apressado em desenvencilhar-se de tudo o que tinha pesado sobre os seus ombros durante a comissão militar que terminaria dias depois. Segui-o até à enfermaria e pouco depois juntar-se-iam todos os cabos maqueiros, para ajudar na contagem de instrumentos e material de consumo, medicamentos, xaropes e soros. A contagem levou toda a manhã e parte da tarde. “Pronto, já está. Assina aí a guia!”. Assinei. E de pronto passou ele aos lamentos: “É pá, de inicio o médico vinha cá duas vezes por semana. Depois passou a vir só às 5ªs feiras e desde Março que não põe cá os pés” e depressa passou aos conselhos: “Mas tu não terás muito que fazer. Num caso mais bicudo evacuas para Maquela”. Abanei com a cabeça, inexpressivamente mas Minha Alma não se conteve: “Foi duro isto?” perguntou ela usando a minha fala. “Só será duro se quiseres. Se ligares a essa gente que aparece por aí “ disse referindo-se à população preta das sanzalas em redor “…e se lhe deres muita confiança, tens trabalho de sobra. Eu de inicio embarquei, mas depois cortei pela raiz pois estávamos convencidos que grande parte dos casos era pretexto para virem buscar remédios ao “tugas” e dá-los aos “turras”. Se queres um conselho, nunca dês doses para levar. Se for necessário, que venham aqui fazer as tomas…”. Voltei a abanar a cabeça. Minha Alma interrogava-se “Como caminhar 3 ou 6 quilómetros para cada lado apenas para uma colher de xarope, um comprimido ou uma pequena fricção?”…
20 – Tantos dias sem Maria do Sol nem Senhora do Mar – Terminada a rotação das companhias e formalizada a rendição, fez-se uma calma imensa. Também tensa. Tensa e fria. A estação do cacimbo determinava, para aquela região, um frio húmido e dias cinzentos com pequenos rasgos de um sol fraco, anémico. A ausência de chuva escondia-me a Senhora do Mar. Os fins de tarde não tiveram a luminosidade que tivera à nossa chegada. A Maria do Sol não aparecia a anunciar o sol do outro dia. Em redor, o arame farpado impunha a sua também fria e ambígua imposição. Serviria ele para impedir a invasão do inimigo ou evitar a fuga das nossas almas?

15 comentários:

  1. Parece que a Senhora do Mar estava longe de todos vós e do futuro que seria uma enorme caixinha de surpresas.

    Em cada capítulo nasce um desejo de continuar a leitura.

    Boa escrita, leve e fluente ajudando-nos a seguir o teu pensamento .

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  2. Caro Rogério
    Tal como o Luis também eu sinto que em cada capítulo fica o desejo ou ansiedade de continuar sua leitura´.

    Beijinho

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  3. Amigo Rogério:
    Imagino a dor, o trabalho, mas também o prazer que lhe deve estar a dar, percorrer de novo este seu caminho.
    A sua alma deve estar a sofrer e o seu contrário a protestar ;-)
    Não consigo ter nenhuma crítica negativa, pois estou a aprender e a adorar tudo.
    Beijinhos

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  4. Continua a saber-me bem acompanhar a leitura da sua escrita. Quanto do que aqui encontro me recorda tempos passados...!Até a caça às pacaças, que fornecia carne ao aquartelamento e a mais não sei quem. Era assim: saía com o pelotão, abatíamos duas, trazíamos uma. A outra lá a deixávamos...
    Na fazenda abandonada para onde íamos, junto ao rio M'Bridge, também apanhávamos perdizes, capotas, de quando em vez, e uma ou outra tua, mais raramente.
    Acompanho a sua Alma, estando com ela de acordo, quanto à interrogação sobre os medicamentos.
    Fico, curioso e expectante, a aguardar pela Senhora do Mar. Será que ele vai chegar carregada de tokeya como nas anharas do Leste?
    Amanhã é sexta, cá voltarei.
    Abraço

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  5. Caro Rogério
    Em cada capitulo vamos ficando mais ricos, o meu caro porque revive acontecimentos que certamente muito mexem consigo e provavelmente lhe dão uma sacudidela revigorante. Nós os leitores vamos conhecendo aspectos do seu navegar e em cada frase, em cada episódio vamos percebendo melhor uma parte do nosso passado duma forma unica e original.
    Abraço

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  6. Li tudo. E gostei. E acho que o sentimento agudo de desamparo aparece no aparente descaso com que se viveu a passagem de testemunho. Touching, moving!
    :)))

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  7. Coninuo a seguir com bastante interesse esta sua história.
    Revejo-me nela, eu que tambem passei por esses mundos e, calcorreei essas mesmas picadas durante a minha passagem de mais de dois anos por terras de Angola.
    Manuel Aldeias

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  8. Rogério,
    Não pense que não continuo a acompanhar.
    Só que vou navegando devagar...
    ás vezes sufocada pelo pó da picada;
    outras rendida à Maria do Sol,
    e por fim desolada pelas pacaças...
    Carinhos

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  9. Procuro ser o "outro", o tal, que no dizer de Saramago é necessário chegar como forma de cada um se compreender a si mesmo. Espero esse esforço de vós. Por meu lado só posso continuar descrevendo com verdade os sentimentos que senti. Só assim cumprirei uma função útil no que escrever. Se no que disser alguém se identificar, estarei a contribuir para nos definir a nós próprios...

    Para já, espero que tão boa adesão esteja para além dos aspectos formais da minha escrita...

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  10. Bom, continuo acompanhando esta sua escrita tão fluente.

    Tudo de bom.

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  11. Não resisti, porque navego contigo...
    Por que?
    Porque tu vens como retinar de sinos, aquele que entoa, lateja!!!
    Então tine, zumbe, não saia de mim.
    Que rezo cantando e canto teu nome orando... a prece ando...
    Bjbjbjbjbjbj

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  12. Confesso que tive de espreitar na net umas fotos de pacaças, não estava a visualizar o bicho ;)

    Bjos

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  13. Olá Rogério
    Concordo com Luís,"em cada capítulo nasce a vontade de continuar a leitura".
    Abração

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  14. como recusar um medicamento a alguém que já sofre tanto? amigo rogério... como deve ter sido difícil, esta sua caminhada.

    abraçinho terno...

    [se é verdade que, sempre que termino de ler mais um capítulo, a vontade de ler o seguinte é enorme, a maneira como descreve tudo faz-me sentir dentro da narrativa e, confesso, saio de coração apertadinho....]

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  15. Neste excerto que acabo de ler também a minha Alma se inquietou intensamente.
    A imagem do arame farpado, fronteira com frente e verso fez-se presente.
    Tranquiliza-me o facto de saber que o tempo da narrativa é passado.

    Um beijo

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