31 dezembro, 2011

Aniversário sem festa, nem figura do ano, nem sequer mensagem de FELIZ ANO NOVO

ANIVERSÁRIO - Segundo aniversário, mas sem festa. Contrariamente ao que fiz o ano passado, em que me engalanei, vangloriei de tudo e de nada, este ano me ponho sério, sem fazer tal. Não que os meus actuais 265 amigos o não mereçam ou os insistentes visitantes (que este ano quase triplicaram os 22 400 que me tinham visitado o ano passado) não teriam interesse em me vir felicitar. Nada disso. É que seriam festas a mais, para tão negro contexto... e, depois, eu não sei se realmente mereço...



FIGURA DO ANO - Fui tudo o que as imagens acima ilustram que eu fui. Cada um se apresentou com os objectivos e promessas, mas nem todas foram bem tratadas ou sequer cumpridas. O saldo até pode ter sido interessante, mas por ser inconsequente, não haverá lugar a destacar uma figura do ano: Meu Contrário e Minha Alma, nem é por se terem tornado personagens de um livro, que o merecem (o livro ainda não fez o caminho que terá de percorrer); O Rogérito, até é um bom menino, mas é desastrado, não põe pontuações nas redacções e dá erros nos ditados; Quando voei na passarola, não despejei as palavras exactas e necessárias, não que tivesse tratado mal o sonho ou o tenha desrespeitado, mas não se pode falar de sonho e ser demasiado avinagrado; A denúncia da mão que esmaga o mundo foi uma ideia boa que ficou pelo caminho. O menino de Saramago, entrou noutras histórias mas não chegou a esclarecer o que aquela bela flor poderia, de facto, ser; Viriato, foi a minha figura mais controversa, saiu sem convencer porque decidiu nem receber os "novos romanos"...; Clistenes, o último a chegar, anda por aqui e ainda não provou que merece a honra que há muito séculos atrás mereceu; Por fim, EU. Eu sou o que menos merece ser figura do ano. Minha Alma chegou a dizer-me: "Rogério, a melhor maneira de não perder amigos é não os fazer... porque não fechas a loja?". Claro que eu não dou ouvidos à Minha Alma quando ela faz como a canção, que se anima em depressão. Eu... eu vou continuar. Vou ver se alguém "meu" merece ser figura do ano no próximo ano que se avizinha.

VOTOS DE FELIZ ANO NOVO? COMO O DESEJAR? - Seria trocista e cínico se o desejasse. Seria até um apelo ao egoísmo e ao safem-se se puderem. Como desejar felicidade ignorando o que se está passando? Os meus votos são outros: QUE O ANO DE 2012 SEJA O ANO DA CIDADANIA, DA FRATERNIDADE E DA MUDANÇA. Que o seja. E se vier a ser, então haverá razão para dizer que 2012 foi... um ano muito feliz. Talvez até, contra aquilo que se diz, haja um sorriso na próxima Primavera...

29 dezembro, 2011

Talvez o meu melhor trabalho, em 2011 - (2) [Foi o mais comentado]

...e se a Maior Flor do Mundo fosse a Democracia? 
Se para a salvar fosse necessário fazer 20 coisas, que coisa lhe parece que podia fazer por ela?
-
Leio no texto, que se supõe destinado a crianças, como a coisa de facto aconteceu:

Deu-se o menino ao trabalho de subir a encosta, e quando chegou lá acima, que viu ele? Nem a sorte nem a morte, nem as tábuas do destino… Era só uma flor. Mas tão caída, tão murcha, que o menino se achegou, de cansado. E como este menino era especial de história, achou que tinha de salvar a flor. Mas que é da água? Ali, no alto, nem pinga. Cá por baixo, só no rio, e esse que longe estava!... Não importa. Desce o menino a montanha, atravessa o mundo todo, chega ao grande rio, com as mãos recolhe quanta de água lá cabia, volta o mundo atravessar, pelo monte se arrasta, três gotas que lá chegaram, bebeu-as a flor com sede. Vinte vezes cá e lá… Mas a flor aprumada já dava cheiro no ar, e como se fosse uma grande árvore deitava sombra no chão.”

Vinte vezes cá e lá. Vinte certas, diz o escritor, e quero acreditar que sejam precisas tantas. Imagine, caro leitor, que a água não é água, mas sim porções de coisas esforçadas que é necessário fazer para salvar a vida da nossa flor. Pense que, de cada vez que se sobe a montanha, se deposita na Democracia muribunda algo que a faz, lentamente, renascer. Indique uma só, que esteja disposto a fazer ou que ache ser necessário que se faça... Lembre-se que há pequenas coisas, à semelhança das que cabem numa mão pequenina.

As imagens são do video. O texto, em itálico, é do livro de Saramago "A Maior Flor do Mundo"


NOTA: A  série "Sem sonhadores não há sonho",  de que foram editados  mais de um dúzia de posts no decurso do mês de Abril, foi talvez o trabalho mais criativo que mais gostei de fazer 

Talvez o meu melhor trabalho, em 2011 - (1)

Depois da sede de uma flor próxima da morte, 
a sede de um homem crucificado

"Eli, Eli, lama azavtani?" (Meu Deus, Meu Deus, por que me abandonaste?)


Imagem do filme de Mel Gibson "A Paixão de Cristo"
“Depois, sabendo Jesus que já todas as coisas estavam terminadas, para que a Escritura se cumprisse, disse: Tenho sede”...“Estava pois ali um vaso de vinagre. E encheram de vinagre uma esponja, e, pondo-a num hissope, lha chegaram à boca”. ----Evangelho: São João 19:28
È sem dúvida a Biblia um manual de maus costumes, como ontem me lembravam, citando as palavras de Saramago (e que eu relembro aqui). A Biblia diz que Jesus terá dito "Perdoai-lhes Pai, pois não sabem o que fazem". Tal não é expressão de cristão digna de um cristo que com seu gesto violento expulsa os vendilhões do templo. Contradições? Sim, daquelas que levam os povos à resignação. Bem fizeram os escravos e plebeus em se terem revoltado e três séculos depois terem imposto o fim do esclavagismo e a queda do Império Romano. De Cristo, prefiro recordar as últimas palavras, as humanas: "Meu Deus, porque me abandonaste?", sabendo que eu, enquanto parte do meu povo, não tenho perdão se aceitar os vendilhões do templo...

28 dezembro, 2011

O pior de 2011 - (2)



A imagem desta Rogériografia representa um cérebro tenebroso. Foi um exame, minucioso, feito numa sexta-feira 13 (13 de Agosto de 2010), não se pense que é por azar que esta "chapa" saiu assim. Cérebros como este proliferam por aí e resultam de processos evolutivos educacionais complexos, mas já banalizados na sociedade em que determinados seres se desenvolvem... Eis um espécime. E levámos com ele em cima porque, em tempo devido, não foram ler o que deviam ter lido:

27 dezembro, 2011

O pior de 2011 - (1)


Não não é engano de datas, a explicação encontra-se aqui. 
O que está a acontecer leva algum tempo a preparar... é apenas isso.
(claro que para pior, há muito por onde escolher...)

26 dezembro, 2011

Do novelo emaranhado da memória, da escuridão dos
nós cegos, puxo um fio que me aparece solto.
Devagar o liberto, de medo que se desfaça entre os dedos.
É um fio longo, verde e azul, com cheiro de limos,
e tem a macieza quente do lodo vivo.
---------------------------------------------É um rio.
Corre-me nas mãos, agora molhadas.
Toda a água me passa entre as palmas abertas, e de
repente não sei se as águas nascem de mim, ou para mim fluem.
Continuo a puxar, não já memória apenas, mas o próprio corpo do rio.
Sobre a minha pele navegam barcos, e sou também os
barcos e o céu que os cobre e os altos choupos que
vagarosamente deslizam sobre a película luminosa dos olhos.
Nadam-me peixes no sangue e oscilam entre duas
águas como os apelos imprecisos da memória.
Sinto a força dos braços e a vara que os prolonga.
Ao fundo do rio e de mim, desce como um lento e
firme pulsar do coração.
Agora o céu está mais perto e mudou de cor.
É todo ele verde e sonoro porque de ramo em ramo
---------------------------------------acorda o canto das aves.
E quando num largo espaço o barco se detém, o meu
corpo despido brilha debaixo do sol, entre o
esplendor maior que acende a superfície das águas.
Aí se fundem numa só verdade as lembranças confusas
da memória e o vulto subitamente anunciado do futuro.
Uma ave sem nome desce donde não sei e vai pousar
calada sobre a proa rigorosa do barco.
Imóvel, espero que toda a água se banhe de azul e que
as aves digam nos ramos por que são altos os
choupos e rumorosas as suas folhas.
Então, corpo de barco e de rio na dimensão do homem,
sigo adiante para o fulvo remanso que as espadas
verticais circundam.
Aí, três palmos enterrarei a minha vara até à pedra viva.
Haverá o grande silêncio primordial quando as mãos se
-----------------------------------------------juntarem às mãos.
Depois saberei tudo.
José Saramago 

25 dezembro, 2011

Homilias dominicais (citando Saramago) - 63

------------------------------Imagem da net
HOMILIA DE HOJE 
Não haveria nada mais fácil no mundo das histórias que escrever um conto de Natal com Menino Jesus ou sem ele, se não fosse dar-se o caso de que uma criança que nasce está sempre nascendo. O nosso grande erro, esquecidos como em geral andamos das infâncias que vivemos, foi pensar que as crianças nascem uma única vez e que depois de nascidas se limitam a ficar à espera de que o tempo passe e as transforme em adultos, os quais, como deveríamos saber, constituem uma espécie diferente de seres humanos. A criança começa por nascer uma vez, que é a de vir ao mundo, e depois continua a nascer para compreendê-lo: não tem outro remédio nem há outra maneira. Como se verá pelas duas breves histórias que se seguem, ambas autênticas, ambas verdadeiras.
A terra, àquela hora, cobria-se de uma noite tão escura que parecia impossível que dela pudesse nascer o Sol. Não tem chovido, as tempestades andam por longe, o rio descansa da sua primeira cheia de Inverno, os charcos são de mercúrio. O ar está frio, parado, e estala quando respiramos, como se nele se suspendesse uma ténue rede de cristais de gelo. Há uma casa e luz lá dentro. E gente: a Família... (continuar a ler aqui) 
Um conto de Natal de José Saramago - História de um muro branco e de uma neve preta

22 dezembro, 2011

1969 - Memórias desse Natal


O livro. O livro que, sem incentivos de amigos, nunca seria um livro, um livro dos verdadeiros, daqueles de tocar, de folhear, de estar ali ao pé, fechado, aberto em qualquer lado ou onde se ia... É importante isso de se ter um livro? Sim, talvez.... por vezes só por isso de ser um livro, um livro com memórias lá dentro... nomeadamente...


NATAL DE 1969
.
"(...) Naquele dia, véspera do primeiro Natal em terras de Angola, o capitão Só Alma surpreendeu. Não compareceu a todas as formaturas, nem ao içar da bandeira, nem almoçou na messe de oficiais com os demais. Foi o cabo cantineiro, a mando do oficial de dia, saber o que se passava e veio com o recado: «O nosso capitão está bem e disse que já cá vem.» 
E veio. Trazia na mão uma carta, pediu para que todos se reunissem na parada e assim aconteceu. Firme, sentido, eram a voz de comando seguida de calcanhares batendo. O capitão Só Alma aproximou a carta à altura de ser lida. Esteve longos segundos com a carta nessa posição. Depois deixou lentamente o braço descair e desistiu de a ler, se é que tinha intenção de o fazer. Com uma voz que ninguém lhe ouvira antes, disse: «Hoje, por ser a noite da consoada, temos rancho melhorado, vinho à descrição e mais uma refeição à meia-noite. Há bacalhau e couves e a luz só se desliga depois do menino nascer.» De seguida deu ordem de destroçar. Minha Alma até poderia ter comentado mas seguiu o estar do Meu Contrário que ficou calado. Assim também ficaram todos e foi em silêncio que dispersaram, sem achar excessiva ou despropositada a cena. Talvez porque todos tínhamos recebido uma carta e sentido ganas de a ler em voz alta…
A ceia foi como o capitão Só Alma disse que iria ser, e foi prolongada com os mimos que quase todos receberam de casa, no último correio chegado de Maquela: broas; duros bolos-reis; passas e até alguns sonhos e rabanadas, retardadas por alguns dias de viagem. Tudo era partilhado. O vinho não chegou em quantidade e não chegaria nunca para a avidez de todos. As securas de alma não se amenizam assim, de pé para a mão. As conversas animaram-se até tarde. Já passava muito da meia-noite e a luz se apagara, quando voz aflita veio interromper o meu uísque com bala dentro, travestida de gelo (hábito que entretanto regressou). Veio dizer-me que o soldado Alma do Oriente estava mal e sem acordo de si. O Alma do Oriente era um soldado de ascendência goesa, magro, baixo e de olhos muito negros e humildes como os seus gestos e trato. A sua religião não lhe permitia o álcool e ninguém o tratava por «monhé», tal o respeito que lhe tinham. Estava de lado, deitado, de camisa e calças desapertadas. Hirto, sem arfar, parecia em coma. Pedi que arranjassem amoníaco para lhe dar a inalar, mas apenas consegui aguarrás. Demos a beber café bem adoçado e por ali fiquei a seu lado. Passadas horas, duas talvez, ouviu-se-lhe um som de lamúria  ininteligível. Segundos depois um «ó mãe» e nova pausa para depois outro «mãe» e «ó mãe». 
Não sei quantos «ó mães» ouvi mais, tantos foram esses ais. Todos suspirámos de alívio. Minha Alma, sorridente dizia com a já conhecida ironia: «Rogério, esse é Jesus renascido e meu nome é Maria.»
 Rogério Pereira, in "Almas Que Não Foram Fardadas"  (pode  adquirir aqui) 

19 dezembro, 2011

Um conto de Natal: "Pintar um bonito sorriso a Maria"

As pegas de ambos os sacos vincavam-lhe os dedos, deixando-lhes as pontas arroxeadas e um ligeiro formigueiro, sintoma de que lhe iam ficar dormentes. Ignorava isso. Se ligasse, seria mais penoso chegar com aquele peso vencendo a ainda longa distância até chegar a casa. O frio também fazia por não o sentir e quando este a venceu, sorrio por não haver Natal sem esse frio que vence sempre quem tão pouca roupa trás. “Mais  um pouco e o esforço afastá-lo-á”, ia pensando à medida que o rosto se lhe afogueava e o corpo, um pouco, já transpirava. Tanto peso…: Uma garrafa de azeite, pequena; umas batatas; duas postas de bacalhau; latas de conserva; arroz; cenouras; um pequeno olho de couve… Ia mentalmente fazendo desfilar a carga, não para inventariar ou conferir  se alguma coisa estaria em falta, - pois o dinheiro não tinha sobrado – mas para ir ocupando o espírito com alguma coisa que não fossem as últimas palavras do marido, na chamada que há pouco fizera e que fora interrompida por o pré-pago se ter esgotado. Parou para mudar de mão os sacos e encher o peito daquele ar frio que agora até lhe dava alento. Foi o suficiente para deixar que o livre pensamento, que até ali rejeitara, lhe invadisse a memória: “Sabes? Eu não receio… Eles pagam sempre, só que demoram a pagar. Logo que tenha algum dinheiro…” As chamadas para Luanda, de um telemóvel, são caras e o saldo insuficiente para ouvir o que, afinal, foi fácil adivinhar que teria dito o marido. “Qualquer dia o miúdo nem o conhece nem ele conhece o menino”, ia pensado enquanto chegava. Procurou as chaves e ia delineando o discurso, escolhendo as palavras, para explicar como é que um presépio o é com apenas um menino, uma vaquinha e um moinho. Seria directa dizendo que o dinheiro não chegara para todas as figuras. Resoluta, meteu a chave à porta. O filho tinha percebido que chegara e desceu uns lances de escada ao seu encontro para a ajudar. Ele, com um sorriso, pegou num saco, quase do seu tamanho e, torto e trôpego, subiu a custo quatro degraus. Pousou o saco para de seguida o levantar com duas mãos, com esse esforço estampado no rosto. Enfim chegados. A mãe pediu para ele guardar cada coisa em seu lugar enquanto lhe aproveitava essa distracção para esconder o pequeno presente que lhe tinha comprado. Esperaria a meia-noite do dia seguinte, não para outra coisa que não fosse cumprir a tradição. Mostrou então, ao filho, as peças para o presépio. O Menino, a vaquinha e o moinho. “Pão e leite, não faltarão a Jesus”, disse a mãe sem se aperceber o sentido exacto do que acabara de dizer, afastando Maria e José, daquele nascimento. Caiu nela. Como podia? E teve a ideia de procurar cartão, lápis de cor, aguarelas, lã de cor de cabelo e farrapos de tecido. Contou-lhe o propósito vencendo a incerteza da qualidade final de tão santa obra. Ela e o filho ficaram horas a fio, recortando e pintando todas as figuras que era costume figurarem. O tempo deixou de contar. O filho olhava mais as mãos ágeis da mãe que os olhos fixos e mal desenhados de São José. Ele gostava das mãos da mãe. Tanto… A certa altura quebrou aquele silêncio sem outras luzes que não fossem as que por dentro iluminava ambos e perguntou: “mãezinha, tu acreditas no menino Jesus?” Ela hesita na resposta. Pára no recorte da bossa do camelo de Belchior e diz séria: “Sabes meu filho, nós temos que ter força para acreditar em qualquer coisa”. E o menino voltou ao que estava fazendo, desenhando no rosto de Maria, um sorriso bonito como era o de sua mãe. Com um sorriso assim, estava certo que seria menor o esforço de sua mãe para continuar a acreditar, ainda que ele próprio duvidasse...
E ficaram ambos por ali, ele olhando o rosto de Maria, ela acertando pormenores no rio feito de prata e na ponte improvisada. Riram ambos do anjo que caíra e perdera a asa mal pregada. Estavam felizes e ela nem contristada por lhe ter mentido quanto à fé que depositava no menino. 
Rogério Pereira

DISCURSO TARDIO À MEMÓRIA DE JOSÉ DIAS COELHO



Éramos jovens: falávamos do âmbar
ou dos minúsculos veios de sol espesso
onde começa o vero; e sabíamos
como a música sobe às torres do trigo.

Sem vocação para a morte, víamos passar os barcos,
desatando um a um os nós do silêncio.
Pegavas num fruto: eis o espaço ardente
de ventre, espaço denso, redondo maduro,

dizias; espaço diurno onde o rumor
do sangue é um rumor de ave –
repara como voa, e poisa nos ombros
da Catarina que não cessam de matar.

Sem vocação para a morte, dizíamos. Também
ela, também ela a não tinha. Na planície
branca era uma fonte: em si trazia
um coração inclinado para a semente do fogo.

Morre-se de ter uns olhos de cristal,
morre-se de ter um corpo, quando subitamente
uma bala descobre a juventude
da nossa carne acesa até aos lábios.

Catarina, ou José – o que é um nome?
Que nome nos impede de morrer, 
quando se beija a terra devagar 
ou uma criança trazida pela brisa?

.............................................................Eugénio de Andrade
Lembrando um assassinato

18 dezembro, 2011

Homilias Dominicais (citando Saramago) - 62

..................................................................................................................Imagem retirada daqui

HOMILIA DE HOJE
(...) "a democracia não é grande coisa, mas é o menos mau dos sistemas? Não parece, porque quando o espaço da democracia passa a ser ocupado por algo que não tem nada que ver com a democracia, que é o peso, a influência, o poder do dinheiro, não há democracia que resista. E além disso, nós nunca vivemos em democracia, e não vivemos agora mesmo em democracia, vivemos numa plutocracia, o governo dos ricos, para que os ricos ganhem mais e para que os pobres sejam cada vez mais pobres e cada vez em maior número. Esta é que é a realidade"

"(...) um político português, na altura primeiro-ministro - de quem não vou dizer o nome por caridade - declarou alto e bom som que a política é a arte de não dizer a verdade. Quando um político se atreve a dizer isto e a pensá-lo, porque está convencido de que é assim, a democracia não está em muito boas mãos."
José Saramago - extractos da entrevista à Lusa, 2008-11-05 
Pela primeira vez em 62 semanas de palavras citadas, inverto a Eucaristia e coloco em primeiro plano o citado. Contextualiza-me a mensagem. Teria Saramago, para além de confirmar o discurso seu, a esperança renovada se tivesse assistido, na sexta e sábado passados, a um movimento de cidadania como há muito não se via. Estou certo que juntaria seu nome e estaria envolvido penalizando, dessa forma, outros intelectuais portugueses que teimam em não aparecer...  Sobre o que se passou e qual o mandato para estes nomes, nada de destaques nos media.  A plutocracia impõe o silêncio. É que outra forma de mentira (muito poderosa) é a omissão e, não esqueçamos: as más mãos em que a Democracia se encontra também são as más mãos que dominam e manipulam a opinião. Entretanto, o Natal magro será passado com a sensação de um pecado manipulado: É assim, porque vivi acima das minhas possibilidades. Será reposta a verdade.

16 dezembro, 2011

Poemas do Rogérito - 2A


Os putos,  erram na forma 
É pena, o mundo precisa de reforma...
(só os verdadeiros poetas aceitariam,
sem objecção, tal redacção)

Poemas do Rogérito - 2


Está visto
O mundo assim
redondo
está errado
Não podendo ser quadrado
podia seu um cubo
Gostava mais
Ver-lhe as quatro faces
…iguais
.
...........................Rogérito
Para os que aceitam ter sido Deus a conceber o Universo, pergunto: não teria sido mais sensato, entregar tal missão a uma criança?

15 dezembro, 2011

Convenção de Lisboa | Auditoria Cidadã | 17 de Dezembro (2)



Mais informações, adesões ou presenças: http://auditoriacidada.info/

Metamorfose - IX (Ali estão, beijando vermes)


Ali estão, beijando vermes

Sigamos o cherne, disse depois a mulher
Nas águas, já mais espessas,
as ondas rastejavam, e mal se sentia
o cheiro da já longínqua  maresia

Sigamos o cherne, agora ninguém o proclama
Onde antes havia água tudo é lama
As ondas se esfumaram na própria espuma
Da maresia, resta tão pouca, ou mesmo nenhuma

Os que antes aceitavam beijar o cherne,
acordam beijando um verme
sem amor, sem alegria de ser beijado

O cardume não se dispersou,
apenas anda em desnorte
temendo, adivinhando, a sua sorte..

..............................................................................................Rogério Pereira

14 dezembro, 2011

Convenção de Lisboa | Auditoria Cidadã | 17 de Dezembro


Não se lamente, participe. Vá! Já se decidiu? Não? Leia, então...
“Quanto é que devemos? Quem é que pediu o dinheiro emprestado? Por que razão se degradaram de tal forma as finanças públicas que só pudemos viver com dinheiro emprestado? Que decisões nos levaram a essa situação de fragilidade? Quem negociou os empréstimos? Quando? Em que condições? A quem pedimos? A quem devemos? Quem ganhou com os empréstimos? Que parte da dívida corresponde a capital? Quanto corresponde a juros? Quanto corresponde a comissões? Comissões devidas a quem? Porquê? Recebemos todo o dinheiro? O que fizemos com ele?   Seguiram-se as regras de prudência, de transparência, de independência exigíveis no manuseamento de dinheiros públicos? A que fiscalizações, auditorias e avaliações foram submetidos estes processos? Quais foram as suas conclusões e recomendações?”
A honra perdida de todos nós, por José Vítor Malheiros, in Público - 13/12/2011 (ler texto integral)

12 dezembro, 2011

CELAC impede CPLPC como Plano C?

Se a História da Humanidade fosse uma mulher, ela não teria idade, seria bela e seria irónica para toda a eternidade. Hoje mesmo iria colocar-nos o ridículo de termos combatido o iberismo por receios de perda de soberania com Espanha para, imprudentemente, o estarmos fazendo com a Alemanha, numa Europa que, segundo notícias de agora, se afunda. A História, desdenharia de não ter a família real, em tempo ido, ter permanecido no Brasil e ter continuado o Rio de Janeiro a ser a capital do Império falante em português. A História riria também do iberismo não ter sido a aposta de Filipe II, pois se este o tivesse sido com visão, teria localizado em Lisboa a sua coroa e transferido, para esta porta da Europa, a capital do seu reino. Não sendo um iberista convicto não posso deixar de sofrer a influência desse lado de Saramago mas também de muitos outros, políticos e escritores. Quem, dos que agora por aqui se inquietam e apertam, discorda de Miguel Torga?: «O meu iberismo é um sonho platónico de harmonia peninsular de nações. Todas irmãs e todas independentes.»  

Falar em iberismo é regressar à falada "jangada", (convertida em meio de salvação) mas agora por esta outra forma: CPLPC. Capicua de letras só pode trazer é sorte... O  que significa? Comunidade dos Países de Línguas Portuguesa e Castelhana.  Do outro lado, o assunto está praticamente arrumado, com a recente fundação da CELAC, que foi festejada assim:

La Comunidad de Estados Latinoamericanos y Caribeños (Celac) nacerá oficialmente hoy en la sesión final de la Cumbre de jefes de Estado y Gobierno de la región, reunidos desde ayer en esta capital (Caracas) con ese propósito. (3 de Dezembro e fora dos destaques dos média nacionais)

Será também assim que o Plano C será festejado, lá no outro lado...
.
Este post foi-me inspirado pela amiga Ana Tapadas, do blogue Rara Avis

11 dezembro, 2011

Homilias dominicais (citando Saramago) - 61

Os dias passam e, por vezes, sentindo intensamente o sentido dos dias, esquecemo-nos das datas. Ontem foi dia em que se comemorou a, certamente, ovacionada carta. A minha distracção tem razão de ser, pois é preciso estar concentrado com um olho no carneiro outro no lobo. É que de cada vez que o faço, descubro novas realidades que são réplicas de realidades históricas: o lobo não é o lobo verdadeiro e o carneiro é um borrego que se enganou a vestir a pele, cuidado ser a do lobo. Caiu, assim, em desuso a expressão “quem não quer ser lobo não lhe veste a pele” pela simples razão de esta democracia colocar a aspiração (e criar a visão, se não o sonho) de todos podermos ser lobos… mansos como cordeiros e seguidores, que nem carneiros. Não é uma contradição dos nossos dias. É apenas a nova versão da tão velha constatação de que o homem continua a ser o lobo do homem, mas onde a máscara é o valor mais respeitado. Não invejo a selva, mas reconheço que as suas leis são mais inteligíveis e eticamente mais aceitáveis: à porta da grande superfície alguém, não sei se lobo se cordeiro, pede erva para dar aos anhos. E os carneiros sorriem por o peditório ter batido o recorde, contra a fome. Todos adoram os gestos de caridade e se compadecem com as criancinhas que sofrem… Salvar-se-á o Estado Social? O lobo sorri e não responde… aguarda paciente a nova eleição. A exploração do homem pelo homem segue essa regra.

HOMILIA DE HOJE
“Eu digo muitas vezes que o instinto serve melhor os animais do que a razão a nossa espécie. E o instinto serve melhor os animais porque é conservador, defende a vida. Se um animal come outro, come-o porque tem de comer, porque tem de viver; mas quando assistimos a cenas de lutas terríveis entre animais, o leão que persegue a gazela e que a morde e que a mata e que a devora, parece que o nosso coração sensível dirá «que coisa tão cruel». Não: quem se comporta com crueldade é o homem, não é o animal, aquilo não é crueldade; o animal não tortura, é o homem que tortura. Então o que eu critico é o comportamento do ser humano, um ser dotado de razão, razão disciplinadora, organizadora, mantenedora da vida, que deveria sê-lo e que não o é; o que eu critico é a facilidade com que o ser humano se corrompe, com que se torna maligno.”
(…)
Falámos muito ao longo destes últimos anos (e felizmente continuamos a falar) dos direitos humanos; simplesmente deixámos de falar de uma coisa muito simples, que são os deveres humanos, que são sempre deveres em relação aos outros, sobretudo. E é essa indiferença em relação ao outro, essa espécie de desprezo do outro, que eu me pergunto se tem algum sentido numa situação ou no quadro de existência de uma espécie que se diz racional. Isso, de facto, não posso entender, é uma das minhas grandes angústias."


.............................................................."Declaração Universal dos Direitos Humanos", in Fundação José Saramago

10 dezembro, 2011

A CPLP... Porque não faz parte de um Plano B? (6)

Vou acrescentando nomes. Hoje um poeta, (re)conhecido há bocadinho ["A gente não faz amigos, reconhece-os.", disse Vinicius}. E foi o que aconteceu. Porquê colocá-lo nesta interrogação sobre o Plano B? Leia o poema abaixo e responda-me você...
.

Como iremos dar de nós algum sinal

como iremos dar de nós algum sinal
exaltando de repente a madrugada
a fazer-se em tons de anil e quase nada
sugerindo o ressurgir de um madrigal?

ou tentar então unir o que é diverso
como soltar de nós a voz no tempo incerto
como trazer o sempre longe bem mais perto
e vesti-lo de coragem nalgum verso?

que o porvir não se faz de mãos fechadas
sem abrir essas mãos à vida acesa
que desperta os horizontes e alvoradas

uma estrada haverá tenho a certeza
por sabermos outrossim das mil estradas
que se abrem pela mão da Natureza.
Quase sempre quem um poema lê,
vê sempre mais do que o poeta imagina que se visse.
Isso por vezes é bom, por vezes é uma chatice 
(neste caso não parece que o seja. E se for...)

09 dezembro, 2011

Gracias a la revuelta social, Islandia triplicará su crecimiento en 2012


Em Abril, escrevi que os islandeses davam o exemplo e votaram em referendo que o Estado não deve pagar a dívida de cerca de quatro mil milhões de euros à Holanda e ao Reino Unido. Na altura disse-se que esse povo estava lixado (desculpem não ter rimado). Hoje, as notícias são como o titulo diz (é obrigatório ler).


E mais, segundo o link editado pela Seara Nova (no Face Book), até passaram a dar conselhos:



AVISO AOS DE IDEIAS FEITAS: Este post não significa adesão ao que o povo islandês decidiu, mas apenas ao facto de ser ele a decidir. Com isso me regozijo. E também ao facto de já ir longe seu prejuízo.  

A CPLP... Porque não faz parte de um Plano B? (5)


Ontem, trouxe Ilda Figueiredo para a discussão. Hoje trago, de outro quadrante, mais uma voz dissonante. Sobre um qualquer plano B não se pronunciou, mas também ninguém o questionou. É verdade que também diz coisas que, para mim, não fazem qualquer sentido e com as quais discordo, mas como fazer alianças esperando ouvir os outros como se fossemos nós próprios?:

"Gonçalo Ribeiro Telles afirma que a culpa da situação portuguesa é nossa e não da Europa. Ninguém obrigou Portugal a desfazer a agricultura, a construir casas de forma desenfreada ou a destruir a paisagem em nome do progresso. O arquitecto lamenta que a inquietação política não passe pelas questões que realmente interessam e que só se fale de dinheiro." Ribeiro Telles considera ainda que foi muito tardio e pouco concreto o apelo do Presidente da República, Cavaco Silva, ao regresso ao trabalho na agricultura.”
....................................................................Ouvir clicando acima

08 dezembro, 2011

A CPLP... Porque não faz parte de um Plano B? (4)



Vários foram os que vieram a depor no meu primeiro post sobre este tema. E porque para entrar é preciso sair de onde nos estão a amarrar, oiça-se alguém que vem ajudar à discussão:


Ilda Figueiredo: Saída do Euro deve ocorrer "com compensações"

"Devia ser uma saída negociada com compensações ao País por aquilo que nos roubaram", disse Ilda Figueiredo aos jornalistas, na Figueira da Foz. Questionada pela agência Lusa sobre se defende essa saída, respondeu: "Nestas condições [com compensações] seria o melhor". "Uma saída com compensações por aquilo que nos roubaram e com alterações de outras políticas, desde a agricultura, às pescas e à indústria, podendo o País, de imediato, começar a produzir para diminuir o seu défice", sustentou Ilda Figueiredo. Recusou, no entanto, que o País possa ser "corrido" da moeda única e que um cenário sem negociação prévia de condições "era o que Alemanha queria". "Não basta sair, é necessário sair e termos todas as condições para produzirmos o que precisamos. Nós queremos que a saída de Portugal seja com compensações e alteração profunda de outras políticas para Portugal poder encetar uma política autónoma de desenvolvimento, naturalmente em cooperação com outros países da União Europeia", disse. Sobre as políticas que disse terem levado à deterioração do sector produtivo nacional, aludiu, nomeadamente, à desvalorização das exportações nacionais aquando da entrada de Portugal na zona euro, contestada na altura pelo PCP, o "único" partido que votou contra a entrada na moeda única, lembrou. "Só nessa altura perdemos de competitividade entre 30 a 40 por cento. Isso teve custos muito sérios para o país e agora o País deve ser compensado por isso ter acontecido", advogou.     
 NOTA: Este post foi "reconstruído", após um lapso do autor. No essencial corresponde ao anterior conteúdo

07 dezembro, 2011

Metamorfose - VIII (Despertares)


A alma, o corpo e a razão
sentiram-se abraçados,
docemente,
como há muito não lhe acontecia
Desde então,
ela não mais se afastaria,
como se fizesse parte dele,
sem pressão nem posse.
Seu tronco tornou-se forte
e, na sua frondosa copa,
as folhas assumiram aquele tom
verde de esperanças e de certezas
contrastando com o vermelho
de um fruto amadurecido
Enquanto a seiva lhe fervilhava,
as raízes acordaram resolutas
no seio do húmus da terra

Decidiu então juntar-se à floresta
Assim unidos, assaltaram a cidade
Repetição (revista)

06 dezembro, 2011

Metamorfose -VII (Depois de ser árvore, regressei!)

Pediram-me que fosse árvore,
com olhos de implorar...
Não uma árvore qualquer,
mas com ramos de abraçar,
tronco forte
bem enraizado,
suavemente inclinado.

Aceitei e gostei.
Gostei que o vento me sussurrasse.
Uma ave em mim pousasse
escolhendo-me para seu ninho.
Gostei de me sentir enorme, gigante
dando conforto e sombra à caminhante


Gostei de me desnudar, perder folhagem
atapetando a paisagem
Gostei de sentir a seiva quente
percorrer-me como quando era gente...

Aí, senti saudade de voltar
e voltei, em festa...
Quem antes via apenas a árvore,
pode agora ver, através de mim, a floresta
Repetição 

05 dezembro, 2011

Medo, medos... (2)

.............................................................roubei o miúdo à "Dja tocando em frente"
.
Rir? Sorrir?
Sorrir de um medo?
Desse medo
que resulta
do nosso próprio enredo?

04 dezembro, 2011

Homilias dominicais (citando Saramago) - 60

Lendo a imprensa da semana e a do dia, não contenho, contrafeito, o sentir que nos vão estragar o mar e o que ele tem para nos dar. Desertificada e depauperada a terra, agora querem também fazer o mesmo ao mar. Esta gente pode tudo. Retirar-lhe até o sal, que diz o poeta serem lágrimas de Portugal. Não posso deixar de o temer, agora que se diz que a grande esperança da Europa está na estratégia para o Atlântico. Por estas palavras poder-se-ia pensar que eu tinha escolhido a "jangada de pedra" para a homilia de hoje. Estive para fazê-lo e repetir aqui a minha expressão de então: "Depois de afundarem o país, preparam-se para afundar o oceano"

Não o farei. Prefiro lembrar, hoje, que foi um brasileiro, do outro lado do mar, que me fez ler Saramago. Conta-se em poucas palavras: Retribuía-me, com a vinda dele, um estágio meu, em São Paulo, onde tive tratamento que me orgulhou e comoveu. Foi em 1989. Tinha que o tratar por igual, aqui. Terminada a estadia e já de regresso, aquando da saída, à despedida, ofereci-lhe duas garrafas de vinho do Porto e um livro, escolhido por conhecer seus interesses e hobbies, de entre os que figurava a paixão por construções com história, mosteiros e castelos e outras edificações monumentais. Não tinha lido tal livro, mas por saber ser esse o tema escrevi-lhe longa dedicatória. Levou as oferendas, agradecido. Passaram os dias até à chegada daquele intrigante mail. A linguagem era clara mas o assunto era estranho e parecia deslocado dos temas profissionais que nos ligavam. Blimunda e Sete-Sóis apareciam no seu discurso, como parentes nossos... Fez-se um clique e lá fui correndo à livraria próxima (hoje já encerrada) comprar "O Memorial do Convento", decidido a lê-lo e a responder na mesma toada. Não foi fácil e a resposta ao mail do meu colega brasileiro saiu com um atraso de dois dias. O romance? Tive que voltar a lê-lo depois, para saborear as palavras que a ele tanto tinham agradado. Este episódio tem entre nós um significado tal que mais parece não haver entre nós tanto mar.

HOMILIA DE HOJE
[...]Por uma hora ficaram os dois sentados, sem falar. Apenas uma vez Baltasar se levantou para pôr alguma lenha na fogueira que esmorecia, e uma vez Blimunda espevitou o morrão da candeia que estava comendo a luz, e então, sendo tanta a claridade, pôde Sete-Sóis dizer, Por que foi que perguntaste o meu nome, e Blimunda respondeu, Porque minha mãe o quis saber e queria que eu o soubesse, Como sabes, se com ela não pudeste falar, Sei que sei, não sei como sei, não faças perguntas a que não posso responder, faze como fizeste, vieste e não perguntaste porquê, E agora, Se não tens onde viver melhor, fica aqui, Hei-de ir para Mafra, tenho lá família, Mulher, Pais e uma irmã, Fica, enquanto não fores, será sempre tempo de partires, Por que queres tu que eu fique, Porque é preciso, Não é razão que me convença, Se não quiseres ficar, vai-te embora, não te posso obrigar, Não tenho forças que me levem daqui, deitaste-me um encanto, Não deitei tal, não disse uma palavra, não te toquei, Olhaste-me por dentro, Juro que nunca te olharei por dentro, Juras que não o farás e já o fizeste, Não sabes de que estás a falar, não te olhei por dentro, Se eu ficar, onde durmo, Comigo.
Deitaram-se, Blimunda era virgem. Que idade tens, perguntou Baltasar, e Blimunda respondeu, Dezanove anos, mas já então se tornara muito mais velha. Correu algum sangue sobre a esteira. Com as pontas dos dedos médio e indicador humedecidos nele, Blimunda persignou-se e fez uma cruz no peito de Baltasar, sobre o coração. Estavam ambos nus. Numa rua perto ouviram vozes de desafio, bate de espadas, correrias. Depois o silêncio. Não correu mais sangue.
Quando, de manhã, Baltasar acordou, viu Blimunda deitada ao seu lado, a comer pão, de olhos fechados. Só os abriu, cinzentos àquela hora, depois de ter acabado de comer, e disse, Nunca te olharei por dentro.
[...]  - pág. 56 
[...] na vida tem cada um sua fábrica, estes ficam aqui a levantar paredes, nós vamos a tecer vimes, arames e ferros, e também recolher vontades, para que com tudo junto nos levantemos, que os homens são anjos nascidos sem asas, é o que há de mais bonito, nascer sem asas e fazê-las crescer, isso mesmo fizemos com o cérebro [...] -  pág. 134

02 dezembro, 2011

Estarei lá, "No Outro Lado do Cais"

No tempo em que crescíamos

a noite bramava tão parda
que nem parecia noite
 .
De súbito um frémito de luz
pestanejou nos mastros do cais
o mar restolhou
.
e eu vi claramente
os teus olhos remoçados
alumiarem as águas
.
Após tantos relâmpagos vividos
julgavas estar preparada
para voar
 .
mas os pássaros ainda aprendiam
a ter asas


Hoje, ao fim da tarde... não sei se ouvirei este poema. Serão outros? Que sejam, estejam eles no lado certo da vida... (e vão estar)

01 dezembro, 2011

Restauração? Qual restauração?

Não acredito que o texto do Tratado de Lisboa 
(que entrou em vigor em 1 de Dezembro de 2009) contenha palavrões.
Admito que a palavra incompleta seja "funcionem".
Como todos sabemos, das expressões usadas, a mais grosseira foi "porreiro pá"...


Acreditem que estou dividido. Dividido por já não saber a quantas ando e a quantos hei-de eu andar. Não sei a quantas ando: não sei se a data que hoje se assinala tem a ver com 1640, com 2009 ou com data já planeada para aquilo que vai (inevitavelmente) acontecer. Sim, porque não restam dúvidas que haverá a Restauração da Independência que agora mesmo nos foi tirada. Duvido que seja violenta. Não é por nada, é porque, feitas bem as contas, faltarão andares suficientemente altos para deles atirar os milhentos "Miguéis de Vasconcelos" que se fazem passear por todos os paços, outros espaços e corredores do poder. Esse poderá ser um futuro novo feriado Nacional. Que venha.

Espanhóis? Nem pensar  voltar a assinalar datas que nos dividam dos "nuestros hermanos". Proponho que que se considerem outros que nos unam. Data da assinatura do Tratado das Tordesilhas. Pode ser? É que a "Jangada de Pedra" e o sonho de Saramago bem podem ter de acontecer... e seria outra data a festejar.

30 novembro, 2011

Fernando Pessoa - 30 de Novembro de de 1935.

Numa só morte se perderam tantos
e a falta que eles me fazem,,,
Suas palavras não minimizam
a ausência
de quem me olhava no olhar,
mas me atiçam, ainda, a esperança
e a lembrança
de que a certeza de ser não me irá faltar
Rogério Pereira

Sonho. Não Sei quem Sou
Sonho. Não sei quem sou neste momento.
Durmo sentindo-me. Na hora calma
Meu pensamento esquece o pensamento,
Minha alma não tem alma.
Se existo é um erro eu o saber. Se acordo
Parece que erro. Sinto que não sei.
Nada quero nem tenho nem recordo.
Não tenho ser nem lei.
Lapso da consciência entre ilusões,
Fantasmas me limitam e me contêm.
Dorme insciente de alheios corações,
Coração de ninguém.
Fernando Pessoa, in "Cancioneiro"

29 novembro, 2011

O Paulo Guinote, o Pacheco e cá o rapazote....

A cada um o seu retrato, destes "fala-barato"....

O que mais me maravilha na blogosfera é este (fictício) sentimento de verdadeira democracia onde cada um se junta a "gente grande", lhes "linka" textos, os transcreve, os riposta, confronta ou complementa, conforme a razão que julga ter. E, ainda por cima, à borla (daí a referência aos "fala-barato"). Claro que, fora daqui, me remeto à insignificância de só ser um ser pensante, um "Cavaleiro Andante". Os meus parceiros são outra coisa: Paulo Guinote é um (já) ilustre "fazedor de opinião" (escreve posts à média de doze por dia, está nos comentários, dá entrevistas e escreve em jornais e revistas e... ainda lhe sobra tempo para ser professor). José Pacheco Pereira é bem mais que isso, tem outra notoriedade o que faz dele uma autoridade bem instalada...
Mas vamos ao que importa:
Paulo Guinote - Escreve que se farta sobre sindicalismo e sobre a greve. O que pensa não é pensamento isolado e é cada vez mais o porta-voz dos que já a tem. O que ele diz? Coisas assim: "...o movimento sindical demonstra uma evidente incapacidade para capitalizar o descontentamento popular (...) existe a percepção de que as organizações sindicais, cada vez mais burocráticas e estabelecidas, procuram defender, em primeiro lugar, as suas posições organizacionais.(...) Formas alternativas de actuar no sentido de aumentar a mobilização teriam que passar pelo reforço dos laços identitários de cada grupo profissional (...) - Vale mesmo a pena ler na integra
José Pacheco Pereira - Quase responde ao Guinote (e esta hein?): "Mas quem é que podia deixar de esperar que houvesse uma greve? Só quem pretendesse que subitamente a sociedade portuguesa prescindisse da conflitualidade social e que muitos milhões de portugueses que estão a empobrecer se sentassem numa sala escura, abatidos e deprimidos, à espera da salvação.(...) Depois, há os argumentos quanto ao significado da dimensão da greve, para interpretar o impacto que pode ter na sua leitura política(...), vamos admitir que todos os que não fizeram greve porque não podiam perder o salário de um dia, e só mesmo esses, em estado de necessidade, se somavam aos grevistas. Convenhamos que seriam muitos e superariam certamente os que retirámos do número geral anterior de grevistas à força. E, por último, acrescentemos todos os que desejariam manifestar o seu protesto através de uma greve, caso não sentissem que haveria qualquer consequência na sua situação laboral, não seriam prejudicados nas suas carreiras e salários, e, acima de tudo, não seriam despedidos. Então, meus amigos, garanto-vos que a greve seria muito mais próxima do "geral" que esta foi e o sector privado teria uma importante participação. O país pararia mesmo." - é, quase, obrigatório ler na integra
Pela tendência registada, daqui a pouco não há nada...
Este Rapazote (que sou eu) - Não queria ir muito além do objectivo de deixar os textos dos dois "gurús", que quase se rebatem ponto por ponto. Não quero, contudo de chamar a atenção para o escrito do José Pacheco Pereira e sugerir que ele seja cruzado com os dados do pequeno video que encima estas minhas palavras. A grande questão é, face à terciarização da economia e à pulverização da dimensão das empresas se (qualquer) organização sindical resistirá. Dito de outra forma: a questão é se, de forma mais eficaz que o Salazarismo (renitente ao desenvolvimento por temer um sindicalismo forte), o neoliberalismo e as politicas que o suportam, não conseguirão o grande feito de matar a organização sindical, pela simples razão de já não haverem empresas. Está-se numa fase de resistir, de lutar e não de rever outros  processos que não sejam os que levem à consciencialização de vamos a caminho do abismo. Tendo participado na greve, vi muita gente jovem e responsáveis sindicais a actuar. Fiquei com a certeza de que os trabalhadores saberão resistir....

28 novembro, 2011

Discutir o que somos e como nos expressamos, independentemente de se gostamos...

Há coisas que, inevitavelmente, fazem parte de nós... 
Rejeitá-las porque nos desgostam?, mas então o que é que ficaria?
I - Poucos anos depois de minha mãe ter deixado de ser uma das meninas da "loja nova" de Ermidas/Sado e de meu pai ter desistido de ser o rapaz da camioneta verde, que era fretado para tudo o que era transporte de carga, eu nascia e de pronto vínhamos para Lisboa, à procura de nosso destino. E porque o destino foi uma eterna procura dentro dos limites que o poder de então detinha, fomos andando de casa em casa e meu pai de emprego em emprego. Foram anos que não sei contar a não ser pelo que minha mãe cantava. Era de Amália o seu lamento. Se eu gostava? Pode-se lá gostar desse viver, desse cantar... 
II - Anos mais tarde, talvez uns quinze, outra a relação com a canção. No café Chaimite reunia-se, entre café e fumo, amizades feitas da proximidade de residência, à volta de livros de estudo e sebentas. Aos fins de tarde, a tertúlia era alargada a quem se chegava. No interregno da procura de um destino mais habilitado, aconteciam coisas que me alimentavam a alma. Foi nesse grupo - que também me deu janelas de compreensão do mundo - que ouvi pela primeira vez o "Embuçado". Já não me lembro o significado e o porquê de um grupo lembrar o Rei assassinado para, logo de seguida, cantarolar "Os Vampiros", tendo entretanto lido poesia dos livros idos e únicos, da instrução primária ("quem quer ver a barca bela/ que se vai deitar ao mar"). Coisas por certo ditas assim para distrair vizinhos suspeitos de poderem fazer denúncias...
III - Por essa altura, eram frequentes os encontros, os convívios e as jornadas de luta nos meios académicos por onde aparecia. Em quase todas se cantava. Sentados no chão (fosse qual fosse o chão) ouvíamos irmanados, as vozes, o trinar das guitarras, os fados, as baladas e as trovas. A pouco e pouco o fado foi sendo afastado. José Afonso diria, alguns anos mais tarde"Quando fui fazendo canções que me afastavam do fado de Coimbra nunca tive a atitude condenatória de dizer que o fado de Coimbra é uma grande merda, por isso acabou, ponto final. Naquela altura vivia-se um intenso período de actividade antifascista e tudo o que fosse tradição tinha de ser rejeitado. Foi uma atitude absolutista, de certo modo despótica, que foi necessário corrigir com o tempo e hoje está a ser corrigida."
IV - Convenci a Teresa e aquela que viria a ser minha sogra a ir ao concerto de Carlos Paredes, nas "Belas Artes". A sala estava apinhada e o concerto ia correndo como eu previa e Minha Alma esperava. Tinham sido ainda poucas as pautas tocadas, quando um coro de vozes berraram: "czardas, carzadas, czardas". As palavras gritadas eram acompanhadas por palmas. Digno, o mestre levantou-se e silencioso abandonou a sala. Num rápido momento a sala tomou-se de arrependimento e silenciosamente abandonou também o salão. Aquela que viria a ser minha sogra  ainda me perguntou o que se tinha passado. Acho que lhe terei respondido...
V - Passaram muitos anos (cerca de 40) e passei a escrever neste blogue.  A dada altura quis responder a mim próprio porque me sentia português. Encontrei várias respostas que acrescentam ao que atrás escrevi, isto, isto e ainda isto. Se gostei de escrever o que escrevi? Se gostei de viver o que vivi? Que importa gostar ou não, ficou-me na alma e hoje pertence ao mundo. (*)
VI - E o destino, pá? O destino vai sendo construído pelo poder, até isso assim deixar de ser.
 (*) Pena a exclusão do fado de Coimbra. 
A imagem foi roubada a um amigo recente