26 maio, 2012

Um texto de Gonçalo M. Tavares públicado na imprensa Grega

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Queixei-me de que os intelectuais se auto-demitiam de um espaço de intervenção.
Hoje publico o Gonçalo M. Tavares, e com prazer reconheço que vou perdendo razão.
  .

1. Sobre a Europa (Os anos Pavlov e outras considerações imaginárias)
Uma dor de cabeça faz com que dês atenção à parte de cima. Por exemplo, se a Europa tem dores de cabeça, então, ela própria olha para a parte de cima dessa anatomia. Se as dores são no pé, ela olha para baixo. As dores são portanto outra forma de iluminar. Uma iluminação materialmente mais espessa, uma iluminação fisiológica, que vem de dentro e não de fora. Vês melhor aquilo que dói. Olhamos mais, reparamos mais, naquilo que dói. No fundo: aquilo que dói existe mais. Outro exemplo, há um corpo que diz: dói-me a Europa. Como se a Europa fosse um órgão ou um novo sistema circulatório. O homem que tem uma dor na Europa. Eis um belo título.
Um homem que tem uma dor na Europa deve ser tratado, parece-me. Claro que há órgãos que podem ser extraídos, porém aqui talvez não. Será que podes extrair e deitar fora um órgão da Europa? Há algo que substitua as suas funções?

2. Diálogo sobre a Europa
- Posso fazer-lhe uma entrevista?
Ok.
-Falemos de Europa?
Sim.
- E de Pavlov.
Ok. Tudo bem.
Na experiência de Pavlov os cães salivavam, primeiro só com o prato mesmo vazio, depois bastava o som dos sapatos de quem trazia a comida, depois com apenas a campainha. Enfim, uma longa aprendizagem. Não havia comida, mas o organismo e a fisiologia do cão reagiam como se houvesse.
- Portanto, a questão é esta: se substituirmos um cão por um continente o que acontece?
Se os procedimentos forem proporcionalmente idênticos aos procedimentos levados a cabo por Pavlov e pela sua equipa, a Europa também salivará, mesmo sem alimento à sua frente. Salivará só com o som que anuncia a entrada do alimento.
E claro que podemos sempre substituir a saliva pelo medo. A Europa, quando escuta certas palavras que anunciam desgraças, começa logo a tremer, a ter medo, a assustar-se, a pôr-se debaixo da mesa da cozinha ou debaixo dos lençóis da mamã. Eis uma síntese.
- Estamos portanto diante de uma experiência de Pavlov, a grande escala?
Exacto. Não é necessária a desgraça em si, basta o seu anúncio. Tem os mesmos efeitos.
O importante não é um acontecimento, mas sim os seus efeitos
Compreendo.
Por exemplo, um tremor de terra. Mesmo que não exista um tremor de terra, se nós partirmos as casas ao meio, se abrirmos buracos na rua, etc., obteremos os mesmos efeitos.
Portanto, se virmos casas partidas ao meio, tectos caídos, buracos na rua, podemos concluir: houve um terramoto. Mesmo que não seja verdade.
Eu diria, em suma: os efeitos são a verdade.
- Os efeitos são a verdade.
- O cão saliva. A Europa assusta-se e põe-se debaixo da mesa.
Exacto.
Poderemos designar este período como Os Anos Pavlov da Europa.
É um belíssimo nome.
Ou talvez melhor A DÉCADA PAVLOV da EUROPA.
A questão é esta: em vez de colocares um único cão a salivar sem alimento à sua frente, só por causa do toque da campainha… condicionamento clássico…colocas milhões com medo também só com o toque da campainha.
- Mas pode um continente comportar-se como um cão?
- Pode.

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11 comentários:

  1. Caro Rogério
    A primeira pessoa me me falou no Cão do Pavlov e a extrapolação que se podia fazer para o comportamento do ser humano, foi um operário vidreiro que muito jovem dedicou a sua vida à luta clandestina. Não era um um intelectual (de canudo) mas era-o na verdadeira acepção da palavra. Creio que há uma discussão a desenvolver sobre este tema. Claro que pode haver aqui a ideia de algum preconceito. Mas deixo a questão.
    Um intelectual é aquele que tem uma mão cheia de graus académicos e até faz excelentes exposições sobre variadissímos temas? Ou é aquele que até não tem para exibir "canudos" mas que a sua capacidade de aprender (e usar o intelecto) na universidade da vida lhe deram conhecimentos bastante uteis, pelo menos para perceber coisas suficientemente simples que não se enquadram em pacotes educativos e formativos desenquadrados da realidade...

    Lá estou a meter-me em apuros...
    Abraço
    Rodrigo

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  2. Caro Rodrigo, não gostaria muito de desviar o conteúdo do meu post para a questão, que eu próprio introduzi, do papel dos intelectuais. Seja qual for a definição, em rigor, interessa para o efeito imediato do entendimento do escrito, que há profissionais, dentro das diferentes formas em que (numa sociedade) se divide o trabalho, dos quais se esperaria mais intervenção cívica e politica.

    Sobre a questão terei oportunidade de lhe dedicar alguns textos. Para já aqui fica o que poderá vir a ser uma base de discução.

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  3. Gonçalo M. Tavares!... Os seus textos são sustentados por uma "erudição" que passa despercebida ao leitor comum. Digamos que exige do leitor uma competência literária bem estruturada para que a leitura atinja a sua profundidade plena. Talvez isto seja um contra.
    Textos sempre interventivos onde o recurso a alusões, citações e situações de paródia pode ser confundidos com conversa para entreter se não se estabelecerem as ligações testuais implícitas.
    No caso deste, é necessário saber que a história do cão de Pavlov nos leva aos "reflexos condicionados" tido como base dos comportamento humano nas experiências de Pavlov...

    É uma escrita inteligente, séria e demolidora.

    Leio as suas crónicas semanais na Notícias Magazine.

    L.B.

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  4. O meu computador avariou. Estou a escrever num tão pequenino que nem vejo as letras que toco. ;)

    "textuais" - Claro!

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  5. Rogério,

    Mais um interessantíssimo contributo para um tema vasto sobre a intervenção cívica de todos nós, intelectuais(de canudo) ou autodidactas.

    Na verdade há "intelectuais" muito interventivos, outros nem tanto, em todas as classes isso acontece.

    O texto aqui partilhado é muito bom sob o ponto de vista psicológico e é uma verdade que todos os dias nos metralham com a crise e a desgraça e que isso tem um efeito Pavlov desvastador, muitas vezes fazendo com que os povos no lugar de reagirem no sentido do progresso e da esperança, se deixem abater.

    Tenho pena de não ter intervido mais em alguns temas que por aqui passaram nos últimos dias, não o pude fazer por motivos pessoais, de saúde familiar e não só.

    Uma certa falta de predisposição interior para este mundo da blogosfera também contribuiram para alguma ausência. É um mundo que me vai dizendo cada vez menos, que já não me entusiasma, nem distrai, que até me enfada, mas há espaços que nunca deixarei de visitar, sempre que puder ou me apetecer.

    Por isso voltarei, num voo migratório, conforme as estações ou a necessidaee de contribuir para esta tua luta permenente, que muito admiro.

    Beijos
    Branca

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  6. Rogério

    Acho perfeito e ele descreve bem o que se passa:

    "A questão é esta: em vez de colocares um único cão a salivar sem alimento à sua frente, só por causa do toque da campainha… condicionamento clássico…colocas milhões com medo também só com o toque da campainha.
    - Mas pode um continente comportar-se como um cão?
    - Pode."

    Vou ler o Noticias Magazine, pois fiquei fã do Gonçalo.

    Beijinho

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  7. Amigo Rogério,

    Excelente texto, como sempre. Parabéns e obrigado.

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  8. E quem toca a campainha é a querida senhora Merkel... por cá, o Passitos faz a vénia subserviente e nós trememos todos de medo.

    Este nosso próximo prémio Nobel da Literatura não é nada fáci de ler. Mas é muito bom.

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  9. Rogério,

    Mais um interessantíssimo contributo para um tema vasto sobre a intervenção cívica de todos nós, intelectuais(de canudo) ou autodidactas.

    Na verdade há "intelectuais" muito interventivos, outros nem tanto, em todas as classes isso acontece.

    O texto aqui partilhado é muito bom sob o ponto de vista psicológico e é uma verdade que todos os dias nos metralham com a crise e a desgraça e que isso tem um efeito Pavlov desvastador, muitas vezes fazendo com que os povos no lugar de reagirem no sentido do progresso e da esperança, se deixem abater.

    Tenho pena de não ter intervido mais em alguns temas que por aqui passaram nos últimos dias, não o pude fazer por motivos pessoais, de saúde familiar e não só.

    Uma certa falta de predisposição interior para este mundo da blogosfera também contribuiram para alguma ausência. É um mundo que me vai dizendo cada vez menos, que já não me entusiasma, nem distrai, que até me enfada, mas há espaços que nunca deixarei de visitar, sempre que puder ou me apetecer.

    Por isso voltarei, num voo migratório, conforme as estações ou a necessidaee de contribuir para esta tua luta permenente, que muito admiro.

    Beijos
    Branca

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  10. O pior é se o cão passa a "Cão Perdido sem Coleira"...
    Esse perde o medo e ninguém o irá controlar...ou será mesmo esse o objectivo da dama alemã e seus muchachos?!

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  11. temos dores na Europa


    Gonçalo M. Tavares fala a língua de quem não se demite e preserva o sentido de humor

    um abraço

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