25 junho, 2012

Geração sentada, conversando na esplanada - 5 (sentimento único)

"(...) Sabemos bem que é inútil resmungar contra o ecrã do telejornal."
"(...) Vida, se nos estás a ouvir, sabe que caminhamos na tua direcção. A nossa liberdade cresce ao acreditarmos e nós crescemos com ela e tu, vida, cresces também. Se te quiserem convencer, vida, de que é impossível, diz-lhe que vamos todos em teu resgate, faremos o que for preciso e diz-lhes que impossível é negarem-te, camuflarem-te com números, diz-lhes que impossível é não teres voz."
José Luís Peixoto, in 'Abraço'

Até o pachorrento rafeiro saiu da sua habitual bonomia para escutar o que se ouvia...

Estávamos todos como costumávamos estar, cada qual em seu lugar, talvez temendo, ainda que inconscientemente, qualquer pequena transgressão à rotina. Excepção para o rafeiro, do senhor engenheiro, que cansado de ser pisado, se levantava de cada vez que um de nós chegava e depois de nos ver sentados é que se deitava, tranquilo, pois tinha passado o perigo. Adaptava-se assim inteligentemente à adversidade. Podia ter optado por rosnar ou até ladrar e isso não ficaria mal à sua condição de cão, mas não, a sua estratégia silenciosa era mais segura e sem intimidar ninguém. Alheias à estratégia do rafeiro, o grupo das jovens conversavam dentro daquele ambiente que entre elas se foi criando. Às tantas, a Teresa explodiu: "Não suporto mais conversas destas" e o quase grito e o ar transtornado do dito eram reveladores de que não estava mesmo a suportar aquela conversa. Até o pachorrento rafeiro saiu da sua habitual bonomia para escutar o que a Teresa discorria: que o que se pretende com a noticia insistente é provocar um único sentimento que acompanha a imposição do pensamento único; que esse sentimento é o da total dependência do rasgo individual  em prejuízo da valorização do trabalho e esforço colectivo; que tanto vedetismo e culto lhe cheirava mal e até disse não saber se não nos estarão a preparar e a mentalizar para que um qualquer salvador apareça. Foi ao dizer que no dia a seguir à vitória se ter chegado ao cúmulo de lhe publicarem imagem igual na primeira página de três jornais, que percebi do que e de quem falava. "Este estardalhaço, esta fantochada de patriotas de fachada, prepara-nos para o pior!" As outras olhavam-na sem compreenderem, nem a fúria, nem o que a Teresa dizia e menos ainda o que considerava ser o pior. Numa coisa lhe reconheceram razão, ganhar o europeu era um sentimento... o único que lhes animava a alma. E de pronto a conversa convergiu para o concerto de Madona.

Lembrei-me das palavras de José Luís Peixoto e jurei a mim próprio dá-las a conhecer à Teresa...   

12 comentários:

  1. Fico entre a Teresa e o rafeirito...
    Mesmo alguns que nem sequer sabem que houve um Sebastião, são - sei lá como... - sebastianistas...

    Um abraço!

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  2. Eu cá fiquei pura e simplesmente apaixonada pelo cão!!!

    E até gosto mais de ouvir ladrar um cão do que ouvir as palavras das Teresas furiosas, palavras essas, que me entram por um ouvido e me saem pelo outro.

    Até hoje, só li do José Luís Peixoto um livro de poemas, que por sinal, me agradou bastante.

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  3. "Viver é um verbo enorme, longo."...sem dúvia...

    …e senti que o meu lugar era ali…no silêncio e no vazio.
    Bj
    BShell

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  4. "Não sabendo que era impossível, ele foi lá e fez"
    Carl Young

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  5. Gostei muito do Abraço do José Luís Pacheco (joke). Tem muitas palavras sábias. Também gosto de cães que não mordem e de jogos de futebol.

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  6. A Teresa estava naqueles dias que não existe pachorra!
    Gostei do pachorrento.
    Boa semana Caro Rogério

    Beijinho e uma flor

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  7. Acho que vou pegar no pachorrento rafeirinho de olhar doce, sentar-me numa mesa, com ele ao colo, pedir um sumo de laranja bem geladinho e ficar com igual bonomia a ouvir tudo o que a Teresa dizia...e o que o Rogério lhe responderia!

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  8. Nunca tinha reparado que uma esplanada podia ser um lugar tão visivelmente "nosso". O pronome vem aqui a descontento, mas não há outro mais adequado.

    Lídia

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  9. Só existe dois dias no ano que nada pode ser feito. Um se chama ontem e o outro se chama amanhã, portanto hoje é o dia certo para amar, acreditar, fazer e principalmente viver.
    ( MAHATMA GANDHI )

    Cumprimentos

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  10. Depois da crónica que ele teve o desplante de escrever na "Visão" há largos meses atrás, cortei relações literárias com Peixoto!!

    Fica bem.

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  11. Estou literalmente apaixonada pelo rafeiro...
    O que se ouve em esplanadas... o interessante, é que no meio duma aparente superficialidade no contexto da história, nas entrelinhas muito mais está dito...
    Beijos, Susana

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