10 novembro, 2012

Álvaro Cunhal, "Porque nenhum de nós anda sozinho / E até mortos vão a nosso lado.” - 1


O programa anunciado é diverso. Ao ouvi-lo assumi um compromisso...

Faria hoje 99 anos, pelo que amanhã é o primeiro dia dos cem anos que ele faria. Assumi o compromisso militante de me associar, em nome próprio, a tão honrosa e continuada jornada de lhe divulgar a vida, o pensamento e a luta. Fá-lo-ei recorrendo à sua obra e à palavra dele, e ao que dele disseram, quem, como ele, lutou e sonhou (e ainda sonha e luta) por um mundo melhor, mais justo... e hoje é assim:
«Tão magro, de magreza impressionante, chupado a face fina e severa, as mãos nervosas, dessas mãos que falam, mal penteado o cabelo, um homem jovem mas fisicamente sofrido, homem de noites mal dormidas, de pouso incerto, de responsabilidades imensas e de trabalho infatigável, eu o vejo, sentado ao outro lado da mesa, diante de mim, falando com a sua voz um pouco rouca, os olhos ardentes no fundo de um longo e sempre vencido cansaço, e o vejo agora como há cinco anos passados, sua impressionante e inesquecível imagem: Álvaro Cunhal, conhecido por Duarte, o revolucionário português. Falava sobre Portugal, sobre que poderia falar?»
(...)
«Contei ao poeta sobre Cunhal e Pablo levantou-se, deixou-me com o pescador que parara para escutar-nos e quando voltou havia escrito esse maravilhoso poema que é «A Lâmpada Marinha»* sobre Portugal, seu povo, Álvaro Cunhal e o dia luminoso de amanhã» (...) Hoje o mais bravo dos filhos desse povo heróico, aquele que tudo sacrificou para ser fiel à esperança do povo está com sua vida ameaçada.» 
Jorge Amado  (ler tudo aqui)
A Lâmpada Marinha  
Porto cor de céu - I
Quando desembarcas em Lisboa, céu celeste e rosa rosa, estuque branco e ouro, pétalas de ladrilho, as casas, as portas, os tectos, as janelas salpicadas do ouro verde dos limões, do azul ultramarino dos navios, quando desembarcas, não conheces, não sabes que por detrás das janelas escura, ronda, a polícia negra, os carcereiros de luto de Salazar, perfeitos filhos de sacristia a calabouço, despachando presos para as ilhas, condenando ao silêncio pululando como esquadrões de sombra sobre janelas verdes, entre montes azuis, a polícia, sob outonais cornucópias, a polícia, procurando portugueses, escarvando o solo, destinando os homens à sombra. 
A cítara esquecida II

Ó Portugal formoso, cesta de frutas e flores ? emerges na prateada margem do oceano, na espuma da Europa, com a cítara de ouro que te deixou Camões, cantando com doçura, esparzindo nas bocas do Atlântico teu tempestuoso odor de vinharia, de flores cidreiras e marinhas, tua luminosa lua entrecortada de nuvens e tormentas. 
Os presídios III

Mas, português da rua, entre nós, ninguém nos escuta, sabes onde está Álvaro Cunhal?
Sabes, ou alguém o sabe, como morreu, o valente, Militão?
E sua mulher sabes tu que enlouqueceu sob torturas? Moça portuguesa, passas como que bailando pelas ruas rosadas de Lisboa, mas sabes, sabes onde morreu Bento Gonçalves, o português mais puro, honra de teu mar, de tua areia, sabes que ninguém volta jamais da Ilha da Ilha do Sal, que Tarrafal se chama o campo da morte?
Sim, tu sabes, moça, rapaz, sim to sabes, em silêncio a palavra anda com lentidão mas percorre não só Portugal senão a Terra.
Sim, sabemos, em remotos países, que há trinta anos uma lápide espessa como túmulo ou como túnica, de clerical morcego, afoga Portugal, teu triste trino, salpica tua doçura, com gotas de martírio e mantém suas cúpulas de sombra. 
O mar e os jasmins IV

Da tua pequena mão outrora saíram criaturas disseminadas no assombro da geografia.
Assim, a ti volveu Camões para deixar-te o ramo de jasmins sempiterno a florescer.
A inteligência ardeu qual vinho de transparentes uvas em tua raça, Guerra Junqueiro entre as ondas deixou cair o trovão de liberdade bravia transportando o Oceano a seu cantar, e outros multiplicaram teu esplendor de rosais e racimos como se de teu estreito território saíssem grandes mãos derramando sementes pela terra toda. Não obstante, o tempo te soterrou, o pó clerical acumulado em Coimbra caiu sobre teu rosto de laranja oceânica e cobriu o esplendor de tua cintura. 
A lâmpada marinha V

Portugal, volta ao mar, a teus navios Portugal volta ao homem, ao marinheiro, volve à terra tua, à tua fragrância, à tua razão livre no vento, de novo à luz matutina do cravo e da espuma.
Mostra-nos teu tesouro, teus homens, tuas mulheres, não escondas mais teu rosto de embarcação valente posta nas avançadas do Oceano. Portugal, navegante, descobridor de Ilhas, inventor de pimentas, descobre o novo homem, as ilhas assombradas, descobre o arquipélago no tempo. A súbita Aparição do pão sobre a mesa, a aurora, tu, descobre-a, descobridor de auroras. Como é isso?
Como podes negar-te ao ciclo da luz tu que mostras-te caminhos aos cegos?
Tu, doce e férreo e velho, estreito e amplo Pai do horizonte, como podes fechar a porta aos novos racimos, ao vento com estrelas do Oriente? Proa da Europa, procura na correnteza as ondas ancestrais, a marítima barba de Camões. Rompe as teias de aranha que cobrem tua fragrante copa de verdura e então a nós outros, filhos dos teus filhos, aqueles para quem descobriste a areia até então escura da geografia deslumbrante, mostra-nos que tu podes atravessar de novo o novo mar escuro e descobrir o homem que nasceu nas maiores ilhas da terra. Navega, Portugal, a hora chegou, levanta tua estatura de proa e entre as ilhas e os homens volve a ser caminho.
A esta idade agrega tua luz, volta a ser lâmpada aprenderás de novo a ser estrela. 
Poema de Pablo Neruda, inserido na campanha internacional para a libertação de Álvaro Cunhal, 1954. 

13 comentários:

  1. Obrigada, Rogério! ... "Vozes ao Alto..." :))
    Um abraço.

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  2. Não andamos sozinhos porque ele continua bem vivo e presente na memória do povo, mesmo daquele povo que não tem partido.

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  3. Conheci-o. Admirei-o.
    Entrevistei-o uma vez para a RTP, no aeroporto de Lisboa, ia ele para uma viagem ao estrangeiro. Microfone fechado, câmara desligada, conversámos um pouco.
    Quando ele partiu fiquei com a certeza, ainda hoje mantida, de ter falado com um HOMEM GRANDE.
    Que bem falta faz.

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  4. Triste e lindo...

    Ouvi hoje a voz de Cunhal numa entrevista que concedeu aos miúdos de 11 e 12 anos em 1981 na Antena1. Gostaria de ter visto outros políticos a serem entrevistados na rádio por miúdos e com a mesma simplicidade... mas esses que agora por aí deambulam, não passam de cadáveres adiados.

    Linda Homenagem.

    Um beijo

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  5. Sempre senti por Álvaro Cunhal uma enorme e profunda admiração.
    Figura carismática da vida política portuguesa, chegou a ser apelidado como o último dos verdadeiros comunistas.
    A par da vida política e sob o psudónimo literário de Manuel Tiago, escreveu o livro "Fronteiras" que, se não estou em erro foi adpatado ao cinema.
    Grande homem, a quem nada nem ninguém, coseguiu desviar do rumo por ele traçado.
    Homenagem merecida e justa, Rogério.

    Beijinhos.

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  6. Uma justa homenagem, Rogério!
    Muito lhe devemos, todos nós, todo o povo português. Já são raros os homens que entregam a vida pelos outros.
    Já não há políticos com ideologias e convicções tão fortes, concorde-se ou não.

    Beijos

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  7. Vai ser um ano de comemorações um pouco por todo o lado. O legado que nos deixou é demasiado importante para não ser lembrado.
    Foi o Homem com a coluna vertical mais impressionante que conheci até hoje!

    Bom domingo!

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  8. Homem carismático e desassombrado!
    Bela homenagem!

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  9. Cunhal havia de gostar da bela homenagem que o amigo Rogério lhe fez.

    beijinhos

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  10. Era difícil falar com Álvaro Cunhal, tal era a responsabilidade que sentia para sintetizar o que realmente era importante.
    Agora sinto uma dificuldade idêntica ao falar dele. É um homem que faz falta.
    Dar a conhecer o que ele foi, a sua obra, é uma ajuda para criar as condições para que amanhã surjam outros homens de idêntica dimensão.

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  11. O Álvaro Cunhal foi e continuará a ser o meu herói, mesmo depois de eu ter perdido as minhas ilusões políticas.

    Antes de o Rogério cortar relações diplomáticas comigo vá ler a minha resposta no "ematejoca azul" ao seu comentário.

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  12. Tive a honra e o prazer de privar com ele por diversas ocasiões. Era um homem cativante, cultissimo, excelente orador, cavalheiro até à medula. Não se dava pelas horas passarem...
    Excelente se se começar a dar a conhecer a sua obra, quer literária, quer artistica, toda a sua vida, quer se goste ou não dele politicamente.

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