12 julho, 2013

Poesia (uma por dia) - 47



Enquanto

Enquanto houver um homem caído de bruços no passeio
e um sargento que lhe volta o corpo com a ponta do pé
para ver como é;
enquanto o sangue gorgolejar das artérias abertas
e correr pelos interstícios das pedras,
pressuroso e vivo como vermelhas minhocas despertas;
enquanto as crianças de olhos lívidos e redondos como luas,
órfãs de pais e de mães,
andarem acossadas pelas ruas
como matilhas de cães;
enquanto as aves tiverem de interromper o seu canto
com o coraçãozinho débil a saltar-lhes do peito fremente,
num silêncio de espanto
rasgado pelo grito da sereia estridente;
enquanto o grande pássaro de fogo e alumínio
cobrir o mundo com a sombra escaldante das suas asas
amassando na mesma lama de extermínio
os ossos dos homens e as traves das suas casas;
enquanto tudo isso acontecer, e o mais que não se diz por ser verdade,
enquanto for preciso lutar até ao desespero da agonia,
o poeta escreverá com alcatrão nos muros da cidade
Abaixo o mistério da poesia.

António Gedeão (in Voar Fora da Asa)

12 comentários:

  1. Fizeste muitíssimo bem em colocar este extraordinário poema de Carvalho aqui e que eu tomei a liberdade de partilhar no facebook.


    Convido.te a passares pelo "SÃO"(letra grande)para saberes com a realidade se constrói, rrss

    Bons sonhos

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  2. Pelos olhos me passou uma nuvem...
    Um bj

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  3. Enquanto o poeta cantar haverá esperança e toda a cidade será pintada com as tintas de alcatrão.

    Nem as tempestades as apagarão.

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  4. Foi ele que o escreveu, mas podia ter sido o Rogério.

    Foi a sua Alma que lho ditou.

    Beijo

    Laura

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  5. Assim, a poesia não tem mistério nenhum, de facto.

    O poeta é um trabalhador da palavra e a utilidade do que realiza depende da procura do consumidor o que, só por si, diz da sua influência.
    Importa que não se julgue dono da verdade porque não o é efetivamente. Pode dar a conhecer trilhos, direções, acender uma luz aqui ou ali, mas nunca apontar caminhos.

    António Gedeão, um ilustre "esquecido."

    beijo

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  6. Grande poema do enorme Gedeão...
    Não existe mistério nenhum na poesia... o que existe é física, química, trabalho, "saber fazer" e uma coisa tão congénita em nós quanto a cor dos cabelos e dos olhos; às vezes chamo-lhe "dom"... mas chama-lhe o que quiseres. Percebo que essa coisa do "dom" possa remeter para o tal "mistério mesmo misterioso".


    Abraço, Rogério!

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  7. E ainda assim a poesia é tão necessária pela lucidez com que diz o mundo.

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  8. Enquanto o poeta gritar
    A verdade vai escorrer
    Enquanto a alma sangrar
    O poeta não vai morrer.

    Grande "grito" do poeta Gedeão. Lindo e raios partam esta sociedade que há poemas que mesmo que tenham cem anos continuam sempre actuais. Beijos com carinho

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  9. P oesia não é só alegria
    O des cantadas às ninfas e amantes
    E scrita doce enviada a amores distantes.
    S ão dela também as palavras de dor...
    I ra... revolta... E amanhã, tal como dantes
    A manhecerá com ela um dia melhor.



    (Depois quando puderes passa AQUI...)


    Beijinhos
    (^^)

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  10. Hoje os "sargentos" andam à paisana, ou melhor, fardados de ministros...

    Grande Gedeâo!

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  11. Há muito que tenho guardo este poema de Gedeão, leio-o e releio-o, sempre que desponta em mim a desilusão.
    A poesia nunca me decepcionou.

    beijinho

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  12. Gedeão é inultrapassável.
    Bonito momento.
    Grata pela partilha.

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