17 novembro, 2013

Geração sentada, conversando na esplanada - 40 (eles escrevem para nos manterem sentados)

(ler conversa anterior)
"Duas cadeiras, lado a lado, numa das principais praças do bairro. Os dois sentados. O senhor Foucault está com os olhos baixos, fixos numa zona do solo - um quadrado preto que anuncia um estranho poço, de grande profundidade.
Não deixando de escutar o que lhe diz o senhor Voltaire, o senhor Foucault, de vez em quando levanta-se, debruça-se sobre esse quadrado negro e olha demoradamente lá para baixo.
O Senhor Voltaire mantém sempre um sorriso no canto da boca que denuncia o sarcasmo - a distância psicológica e moral em relação às coisas de que fala."
Gonçalo M. Tavares, in Noticias Magazine

Na esplanada parece que, após uma semana, ninguém tocara em nada. Parece que não se mexeram dali, nem para mudar de roupa ou de sorriso ou de tema. Apenas o bolo que o rafeiro do senhor engenheiro mastigava parecia ser da fornada do dia. O velho ficou agradado com a minha chegada:
- Olá, meu caro. Pelos vistos fez as pazes com o Gonçalo... já li o seu escrito!
- Não faço pazes com quem não guerreio, limito-me a traze-lo para a esplanada e tentar resolver o puzzle que escreveu...
- Puzzle?
- ...este quebra cabeças. Veja: dois homens, de nomes estrangeiros, espreitam para um buraco, quadrado, fundo, fundo como o diabo, no século passado e depois diz que um deles tem um sorriso ao canto da boca que é de sarcasmo. Tenho de resolver isto...
- Uma charada!...
- Uma metáfora, que merece ser decifrada. Fico aqui sentado até lhe descortinar o sentido e depois começar a pensar!... Para encaixar as pedras, só sentado. Se depois me puser a pensar já posso andar. Pensa-se melhor quando se caminha, quando se anda!... Pensar faz já parte da acção!
- Fico feliz por saber que o senhor, então, não abandonou o interesse pelo escritor!
- ... reconheço que estou fazendo um esforço que a não ter existido já tinha desistido...
- ... aposto que as cronicas do Lobo Antunes ou do Ricardo Araújo Pereira são boa alternativa, são de escrita directa e bem dispostas!
- ... são de uma ironia inteligente, mas dizem tudo. Não deixam nada para o leitor ficar a pensar. Depois de as ler ainda julgo que vale a pena me levantar. Mas acabo por ficar sentado.
- O senhor é ao mesmo tempo exigente e persistente!
- Talvez! Meu Contrário diz isso mesmo de mim!
- E sua alma?
- Minha Alma diz que sou um homem com esperança! 
- Espera então o dia em que o Gonçalo o deixe desassossegado!
- Sinceramente, espero sim!

4 comentários:

  1. Do sarcasmo à revolta o caminho é curto.

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  2. Pois. De facto, para ler Gonçalo M.T, é necessário que a "biblioteca pessoal" de cada leitor esteja muito bem apetrechada, o que nem sempre acontece. Digamos que, no caso de hoje, era necessário reconhecer as oposições ideológicas, filosóficas e até temperamentais entre Foucault e Voltaire.
    Digamos que GMT se deixou embriagar pelo conhecimento e se foi distanciando, lamentavelmente, do leitor comum.

    Bjs

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  3. Hermético aquele Gonçalo M. Tavares! Mas mesmo assim, vou lendo; às vezes fico aquém do texto, mas não desisto...

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  4. Gonçalo M Tavares é um pouco hermético, sim. E Lobo Antunes também... nem todas as suas crónicas ( para já não falar dos livros) são tão lineares quanto possam parecer à primeira vista...

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