23 dezembro, 2013

CONTOS DE NATAL - II ( "O Grande Arrepio" - Um conto premiado )


Vinha com a costumada ansiedade. Não conhecia outra e esta já se lhe tinha colado no rosto, moldando-lhe a feição. Sempre se vira assim e sempre assim os outros a viam. Não era uma jovem qualquer e tudo lhe levava a crer que não seria uma normal mulher. Não se sentia rejeitada. Ela era rejeitada, assim ela pensava. Era-o em casa, na escola, entre possíveis amigos, na vizinhança. Era-o desde criança. Seu refugio era a procura de outros amigos. Amigos virtuais, anónimos e também aqueles que fingiam não o ser. Horas a fio despendidas, frente ao seu computador, eram ganhas às horas de grande solidão. Frente ao teclado construía mundos inexistentes em pequenas frases ou em comentários. Procurava e editava fotos da natureza, dos álbuns musicais, de gatos e insectos, seus animais predilectos. Ia assim ocupando o tempo... Sentia ter duas vidas e não gostava de nenhuma. Foi pensando em tudo isto, com a cara do costume, que se aproximou daquele pequeno miradouro sobre a praia, local tantas vezes escolhido para tentar preencher um angustiado e constante vazio. Aquele que naquela altura sentia. Lá, por onde se deixava ficar, pousado sobre a grade de protecção, estava um pequeno pássaro. Saltitava. Quase lhe não ligava, quando se surpreendeu pelo passarito, que em vez de fugir assustado, limitou-se a dar um pequeno pulito, não saindo do sitio em que se encontrava pousado. Tomou tal alheamento como um desafio e avançou ostensivamente. Nada, o pássaro na mesma ficava. Resoluta avançou até quase ao pássaro se encostar, inclinou-se e procurou-lhe o olhar. O pássaro olhou-a, também, de lado com olhar de pássaro, sem medo nem susto mas com ar astuto. Surpreendida por não ter voado nem lhe rejeitar a presença, nem deu pelo insólito de o passarito lhe falar. Respondeu o que lhe ocorreu, dizendo o que então disse com o olhar perdido no mar. Ficaram assim os dois tempos esquecidos. Ela contando suas agruras, desventuras, lutos, rejeições, pequenos e grandes desgostos, insistindo sempre que o mal era dela. Ele, contou-lhe o que via pelo mundo, os locais por onde voava, o esforço em vencer o vento, o frio de dormir ao relento, a dureza da vida e da procura de comida. Desenroladas ambas as vidas, sobressaltou-se o pássaro com o que ela disse: "Não devia ter nascido, minha vida é um arrepio". O pássaro olho-a fixamente, como se fosse gente. Gente compreensiva e inteligente: "Olha o grande arrepio não é nascer, é crescer. Toma minhas asas por empréstimo e dá-lhe o melhor préstimo. Voa e conhece, conhecer é crescer sem te sentires rejeitada". E dizendo isto desapareceu deixando-lhe ficar as asas que lhe ofereceu. Ela experimentou, ganhou confiança e voou. Primeiro com cautela desmedida do sitio onde estava para a árvore que por ali havia perto. Depois fez um voou longo, sobre o mar até chegar ao deserto. Voou por todos os locais que o pássaro lhe contou. Tinha apenas um dia e era preciso usá-lo bem. Fê-lo de dia e de noite. Passou a linha do horizonte. Voou, voou, voou...
Muito chegado o prazo que o pássaro lhe tinha dado, voltou ao local para a devolução das asas emprestadas. Ia eufórica, radiante e uma energia diferente transparecia-lhe do semblante. No local, esperou. Esperou, mas o pássaro não vinha nem chegou. Estava na hora, e agora? Como devolver as asas com que voara. De repente as asas lhe desapareceram e ela percebeu com tristeza que ele as levara sem um último encontro. Sentou-se no chão. Não chorou porque um sem saber o quê não deixou. Não sentiu angústia nem desgosto, mas apenas pena de não poder contar que acabara para ela, pelo que acabou de viver, "o grande arrepio" de crescer... Nem deu por quem se aproximou e quando deu, depressa se levantou. Era um um jovem, quase homem. Nem belo nem feio, atencioso e de voz terna. Falou-lhe com uma voz que lhe pareceu familiar. Depois das primeiras palavras de encontro, ela falou-lhe desinibida o que contava dizer ao pássaro. Ele ouvia-a atentamente, como se fosse novidade tudo o que ela lhe ia contando com vivacidade, sem vestígios de qualquer ansiedade, daquela que ela julgava lhe ter moldado o rosto...
Rogério Pereira
Julho.2011
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Este conto inscreveu-se no "regulamento" do CONCURSO de ESCRITA CRIATIVA 2011, promovido pela querida amiga Eva Gonçalves, do blogue "Including the kitchen sink", respeitando o titulo que lhe foi dado "The Big Chill", e foi o vencedor.

7 comentários:

  1. Quando temos um olhar de "modo de pássaro", podemos voar nas asas do sonho e transformar a realidade quando poisamos.
    Belo conto, amigo.

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  2. muitos contos para contar

    são os meus votos de Boas Festas!


    um abraço, Rogério

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  3. Muitos Parabéns!... ;))

    Uma narrativa que prende e, ao mesmo tempo,permite o voo, a quem o desejar.

    Um beijo

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  4. Que lufada de ar fresco, acordar na véspera de Natal, sentar-me e começar o dia com este conto.
    Terei que ser parco nas palavras... OBRIGADO!

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  5. a grandeza da vida, de saber crescer e sem deixar de sonhar...

    um abraço e bom Natal

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  6. O Rei dos Leittoes deseja-te um Natal sem porcos e um ano novo sem coelhos. Saudades da velha amizade blogosférica.
    Pata Negra

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