19 março, 2014

Vinagrada (ou a verdadeira razão que baptiza este espaço)

(texto que me veio à ideia ao ler este post

Ele, criança, seguia os movimentos das mãos da mãe que com gestos lestos preparava a refeição. Naquele tempo, ou a falta de conduto ou a chegada do suão determinavam o que comer. E era mais difícil superar a penúria do que suportar aquele vento quente que abrasava tudo. A faca afiada ia cortando em pedaços todos os ingredientes. O tomate aos quartos, os pimentos em finas tiras transversais, como que para ornamentar. A cebola picadinha, picadinha. O alho ainda mais picado e o pepino, depois de feitas as rodelas, iam sendo também cortados em pedaços, uns maiores outros mais pequenos, como se obedecesse o corte a regras geométricas, precisas. A criança não tirava os olhos dos gestos, embora fossem exactamente os mesmos dos que foram antes, e antes, e nos outros dias até ali. A mãe pressentindo-lhe o insistente olhar, pergunta-lhe "queres, ajudar?" Ele abanou a cabeça, esboçando um leve sorriso de agrado. A mulher pousou a faca, passou as mãos pelo avental e arrastou o banco para perto da mesa. Ele subiu, sozinho e um pouco a custo. "Pica aqueles coentros" disse a mãe, enquanto pegava na pequena bilha de barro, com pequenas pedras brancas embutidas configurando desenhos de flores mal talhadas. Despejou na malga um pouco de água. Mesmo muito pouca, pois o que contava era a frescura. Temperou com um fio de azeite e quatro colheres de vinagre, juntou-lhe óregãos e bocados de pão migados à mão. A criança estendeu-lhe a pequena tábua com os coentros, para que os juntasse. Sentaram-se e a mãe serviu, depois de acrescentar uma pitada de sal. Comeram silenciosamente a vinagrada.
____________

Mantenho o gosto de cozinhar e, lembrando-me desses tempos, peço sempre a quem me olhe, que me ajude e ... pique os coentros.

12 comentários:

  1. Lindo, adorei. E nada de vinagre, afinal
    Kis :=)

    ResponderEliminar
  2. Gaspacho… ou arjamolho!!

    Um prato que faço com frequência mas que me sabe melhor em Portugal porque quem o faz sabe fazê-lo à alentejana… uma versão deliciosa para acompanhar sardinhas assadas!
    Rogério… do que me fez recordar neste momento! : )

    O prato favorito dessa mãe e do seu filho.

    ResponderEliminar
  3. Bom dia Rogério.
    Estava à espera que me convidasses. Gosto dos cheiros e dos sabores tradicionais da nossa cozinha e sempre que posso meto a mão na massa

    Esta semana fizemos assim mesmo como escreveste. Juntou-se o que havia e no fim cercamos a salada com um lento fio de azeite.

    Um abraço retribuindo carinho e amizade.

    ResponderEliminar
  4. Ler este poste tão apelativo na sala de espera de um aeroporto pode ser desesperante.
    Bem, vou comer uma sandes antes de bater as asas...

    :)

    ResponderEliminar
  5. hoje é um petisco de luxo...mas, "ontem" era um tapa-fomes.

    ResponderEliminar
  6. Faço-me convidada desta deliciosa receita nada avinagrada.
    Memórias que o gosto apura.

    beijinho

    ResponderEliminar
  7. Com a aproximação dos dias quentes, começa a apetecer esse tipo de refeição.
    Sabe Rogério? O meu prato preferido em tempo de férias, o famoso gaspacho, com sardinhas assadas e batatas cozidas com pele...

    Abraço!

    ResponderEliminar
  8. Belo quadro do menino
    com sua mãe a enredar o suão
    e, quem sabe? a precisão
    sem horizonte e sem destino?

    ResponderEliminar
  9. Deixou-me de agua na boca...

    ResponderEliminar

  10. Nunca provei uma vinagrada... mas feita pelas tuas mãos imitando os gestos da senhora tua mãe... confirmo que provaria de bom grado!

    Obrigada por me dares a conhecer este ternurento retalho da tua memória
    (^^)

    ResponderEliminar