12 fevereiro, 2016

«Metamorfose» - Solicitaram uma história impossível, e eu contei-a

Sinopse: Tudo começa com "Ele" a acordar num dia ímpar, em que tudo se resolve para os dois. "Ele" e "Ela", enamorados, rendem-se à paixão e, a partir daí, durante 40 semanas, os acontecimentos sucedem-se numa vertigem de ocorrências e fenómenos que o mundo cientifico, mobilizado, não consegue explicar. O mundo vai ficando diferente, não só para os personagens, mas para toda a gente. Deus, não sendo maltratado, não fica bem neste retrato por mim contado. Uma história impossível? Impossível é apenas aquilo que ainda não aconteceu...
Viria a ser editado pela Pastelaria Studios Editora - Outubro 2012
 O primeiro sintoma – Levantou-se mais cedo de que era seu costume e sentiu-se como há muito não se sentia, sem contudo se dar bem conta de como de facto era o seu sentir. Lavou-se, barbeou-se e, como sempre, encaminhou-se para a cozinha onde preparou o frugal pequeno-almoço. Bebeu a caneca de leite olhando através da janela. Deu um primeiro olhar em volta e depois um outro, detendo-se em todos os pormenores do que se avistava dela: a praceta, os logradouros, o carro do vizinho da frente que saía, a rua transversal onde o trânsito ainda era raro. Fixou-se nos pombos que sempre por ali esvoaçavam e depois no Tejo, ao fundo. Encheu os pulmões do ar fresco da manhã. Ia estar um maravilhoso dia de fins de Junho, pensou. Bebeu o resto do leite e foi-se vestir. A mãe, que se cruzou com ele no corredor, deu-lhe o sorriso matinal, “tão cedo?”, comentou como quem cumprimenta. Respondeu com uma piada a que ele próprio achou graça e sorriu, por dois motivos, pela própria graça dita e como resposta ao cumprimento. Poucos minutos depois saía. No caminho cruzou-se com o vizinho, que vivia no terceiro andar do prédio ao lado do seu. Cumprimentou-o sorridente com “bom dia, passou bem” que nunca antes acontecera, em tantos anos de vizinhança indiferente. Mal pronunciou um “Bom dia, tudo bem?” e continuou o caminho com destino à esplanada, onde contava ler o jornal e planear como preencher o dia. Ao passar junto ao logradouro, o da palmeira grande, no canteiro que lhe desenhava o limite com o empedrado, deu-se conta daquilo que, se antes existia, lhe passara totalmente despercebido. As plantas, não muitas, mas todas as que havia e que rodeavam os agapantos roxos e brancos, apresentavam hastes novas e viçosas. Hastes novas, viçosas e de cores diferenciadas das hastes velhas ou se não velhas, das que já existiam antes destas e que pareciam ser rebentos novos. Novos e estranhamente mais belos. Pareciam enxertos a partir dos quais a planta primitiva deixaria ser o que até ali tinha sido. Calhando a natureza era assim que procedia sempre que qualquer planta crescia. Ele é que estaria diferente e hoje, por qualquer inexplicável razão, é que de tal se dera conta. Curvou-se e estendendo a mão, partiu uma das hastes novas. A seiva projetou-se como se dentro dela uma força inusitada a expelisse em jorro. Estranhou, sem ter a certeza de ter razão em estranhar.
Tirou um cigarro e prosseguiu, esquecendo aquele pequeno reparo mas culpando-se de nunca reparar nas coisas belas e de nem sempre saber desfrutar delas. Ia a meio do seu primeiro cigarro e sentiu-se ligeiramente agoniado como se o seu organismo pela primeira vez, em já muitos anos de vício, invertesse o sentido do apelo, quase exigência, de tão longa dependência. Deitou fora o meio cigarro, pensado que lhe saberia melhor o que fumaria depois de bebido o café. Entrou no centro comercial e comprou o jornal. Desceu ao piso de baixo, onde ficava a cafetaria e no balcão, fez o cumprimento habitual e o habitual pedido: “Pago dois e levo um”. A empregada, mil vezes o ouvira pedir assim o seu primeiro café, antecipando o pagamento de outro que beberia cerca de uma hora depois, mas comentava sempre aquilo que considerava ser um pedido com espírito engraçado. Saiu com a chávena na mão. A saída naquele piso dava acesso a uma pequena esplanada. Pousou o café e o jornal e sentou-se no seu canto. Antes mesmo de passar os olhos pelos títulos do dia, tomou a decisão de passar à procura mais ativa de emprego. Desacreditara que o envio do curriculum poderia dar qualquer resultado prático. Nem bebeu o costumado segundo café, que ficara pago, fez-se à vida. Tudo indicava que aquele dia ia ser diferente, e foi com essa certeza que dali partiu

Mais sintomas – Contrariamente ao sentimento que nela se tinha instalado, de medo e insegurança, naquela manhã sentia-se diferente. Não, não era o retorno da confiança nem o instalar de qualquer ideia nova quanto ao futuro. Não sabia explicar. Não havia razões para ter outro sentimento do que aquele que há mais de um mês a tomara. Da sede já tinham chegado ordens para antecipar o fecho dos projetos de investigação em curso, e os dois estagiários tinham sido já dispensados e cortadas as bolsas para financiar mais ocupações de recém-licenciados.
Tinha falado com o namorado há minutos e ambos tinham comentado esse bem-estar inexplicável. “Vem da alma”, disse ele e ambos riram. Tinham em comum a certeza de que compete às almas tarefas menores na procura da sobrevivência do corpo, entregue às vicissitudes de um tempo pouco favorável ao que todos designam por futuro. Combinaram encontrarem-se ao fim da tarde e desligaram com a brincadeira do costume: “Desliga tu”, “Não, tu primeiro”, para de seguida desligarem ambos ao mesmo tempo.  
De momento estava a redigir o parecer da instituição sobre o último relatório referindo alterações quanto às previsões do aumento de mais uns centímetros do nível da água do mar. Fazia-o com o desagrado de quem pratica uma rotina que nada tem a ver com trabalho científico. Até os jornais do dia já referiam, em antecipação, a notícia sobre aquilo a que pomposamente chamavam parecer. Importante seria, isso sim, dar continuidade aos estudos de impacto sobre os ecossistemas marítimos e sobre a fauna costeira, quer do aumento desse nível, quer em consequência do aquecimento dos mares.
A Marília, funcionária administrativa, veio interromper-lhe os pensamentos e o trabalho. “Doutora, o professor pede, para quando puder, passar lá no gabinete”. Não tinha mais dúvidas, era chegada a temida mas esperada altura. Por educação e espírito metódico tinha aprendido e desenvolvido a espontaneidade de associar às observações sistemáticas de uma tendência os efeitos inevitáveis sobre a forma de consequência: o professor iria anunciar-lhe que o seu trabalho ali tinha terminado. Que iria deixar de ter verba para poder ser continuado. Alisou o cabelo com ambas as mãos. Tinha o consolo daquele inexplicável bem-estar interior e quis colocar na apresentação alguns retoques para que o seu parecer estivesse ao nível do seu sentir. Ensaiou algumas palavras de circunstância e que seriam de manifestar compreensão. Rejeitou liminarmente a ideia, que chegou a passar-lhe pela mente, de se insurgir contra a atual situação. De resto não saberia exatamente que palavras usar nesse cenário de reação.
“Posso?”, perguntou ao entrar no amplo gabinete do professor. “Senta-te aí, e espera só um pouco.” Sentou-se e esperou, procurando não pensar em nada. Não pensado não corria o risco de se afastar do discurso de resignação que tinha preparado. Enquanto esperava olhou em redor para perceber a possível origem daquele odor ligeiramente florado, embora ténue, que sentira até mesmo antes de entrar. O professor não usava flores no gabinete e nem tinha por hábito usar qualquer perfume. Suspendeu a procura percebendo que o professor a olhava fixamente.
O ar dele era carregado, a testa ligeiramente franzida e enquanto reconduzia os óculos à posição certa, num tique comum a todos os que usam óculos, iniciou a conversa com uma voz pouco condizente com o seu ar sério, pois era como se estivesse na sala de aula, a transmitir em tom didático uma teoria. “Doutora, temos aqui matéria de elevada preocupação”. Pareceram-lhe aquelas palavras um tanto deslocadas para iniciar o discurso esperado, mas admitia que o professor estaria a passar, tal como ela, por uma experiência nova e que, para ele também dolorosa, carecia de rodeios. “Desde ontem que estão a chegar, por via diplomática e com classificação de reservado, relatórios que têm origem em vários centros da comunidade científica.” Estendeu-lhe uma pasta “Tem tudo aí, leia e prepare-se para uma reunião que está a ser coordenada pelo Porto, mas que se vai realizar aqui com gente de todo o lado. A ministra da tutela já está inteirada e virá assistir ao final da reunião para participar nas conclusões. Os diretores das diferentes instituições e centros estão já a trabalhar sobre esta mesma informação” à medida que o professor ia falando as feições iam-se descontraindo como se aquela simples transmissão lhe aliviasse a tensão provocada pelo segredo que estava a ser partilhado. O mesmo se passava com ela que, à medida que o ia ouvindo, se iam dissipando os receios para no lugar deles se instalar a curiosidade e a perceção de estar perante questão de grande gravidade: “E de que se trata, professor?”, “Todos esses documentos, oriundos das mais diversas partes do mundo, referem baixas impressionantes na salinidade da água do mar. Há dados, como os do golfo de Omã, onde a água é praticamente a de um rio… e nem uma única espécie marinha a ser atingida a ponto de essa alteração lhe causar a morte. Há no meio dessa papelada relatórios de especialistas de biologia genética e biologistas moleculares que dão conta de mudanças inexplicáveis em todas as espécies analisadas. Por enquanto apenas foram detetadas modificações morfológicas visíveis em dois pontos muito distantes, um no Chile outro na África do Sul… a comunidade piscatória desses países ainda não reagiu e a imprensa até há duas horas atrás não sabia de nada.” Interrompeu e olhou o relógio para depois propor “Vá doutora, já passa um pouco das 11, se achar bem mandamos vir alguma coisa para comer e ficamos por aqui. Acha que 2 horas lhe bastam para ler tudo isso e falarmos de seguida? “ A resposta foi um sorriso, ambos sabiam bem quanto gostavam, uma e outro, trabalhar sob pressão…

Como se fosse a primeira noite – Ele e ela encontraram-se à nova hora aprazada, depois de ela lhe ter ligado a dizer que iria chegar só à hora do jantar e que jantariam no mesmo restaurante onde dois anos antes o fizeram juntos pela primeira vez. Durante a espera do que escolheram para comer e durante o tempo em que comiam não falaram de outra coisa para além do que tinha mudado as suas vidas. Ela falou, vagamente, do projeto e da reunião convocada de emergência. Ele falou, sem detalhes, do conteúdo do seu novo trabalho. Falaram deles e dos planos de vida que imaginaram passar a poder ter. Saíram da cidade. Para onde foram prolongaram a noite, trocando gestos de afetos, alongando beijos e caricias até os corpos se darem uma e outra vez, sob o olhar conivente das flores cujas pétalas se ruborizavam contrastando com as cores daquele leito de erva refrescada pela brisa da noite e pelo humos de uma terra que se agitava, ela também, sob a volúpia dos amantes. Amaram-se como se fosse a sua primeira noite.  

11 comentários:

  1. Tudo está bem quando acaba bem, no amor.
    Muito bom, Rogério!

    Beijinhos :)

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    1. Não acaba aqui, o amor
      (seja lá isso o que for)
      é uma passagem
      para a outra margem

      O conto ainda acaba melhor...

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  2. Um conto muito interessante. que gostei de ler e que me instigou a curiosidade pela continuação. As águas do mar ficarem doces, sem que todas as espécies marinhas sofressem alterações, era a resolução do problema para a falta de água do planeta. Desde que claro o homem não continuasse a poluí-lo.
    Espero a continuação.

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    1. Fez leitura atenta, mas não despreze nunca os primeiros sinais...

      vai ver que a segunda parte lhe agradará ainda mais!

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  3. Li atentamente a primeira parte da tua História Impossível e gostei muito... também eu penso, às vezes, que escrevo poemas impossíveis...

    Beijo!

    Maria João

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    1. Que pena
      que seja impossível um poema...

      Os teus alterariam o Mundo

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    2. ... mas eu escrevo-os, Rogério! :)

      Esse impossível, que tu defines como o que ainda não aconteceu, é quase sempre a minha temática favorita!

      Bjo!

      Mª João

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  4. Gostei dos ingredientes. Espero que a leveza do "ar", a atmosfera positiva desse primeiro dia, sejam capazes de tornar possível uma certa história que parecia mesmo impossível.

    Fico à espera do resto.

    Bj.

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    1. Não haverá surpresas quanto à impossibilidade
      de o Mundo mudar
      da forma como vou contar...
      Só há uma esperança
      é que seja a humanidade a produzir tal mudança

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  5. Estou a pensar... que gostava tanto que o que está a acontecer nesta história fosse possível.
    Vou ler o final

    beijinho

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  6. Vou passar para o final.

    Agora, com esta escrita, nada é impossível...

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