08 dezembro, 2016

Hoje, em Paço de Arcos, uma bonita homenagem à memória de José de Castro...


Eram algumas dezenas de pessoas, poucas, as que rodeavam a estátua-memória do actor José de Casto (1931/1977). A convocação da memória acontecera na véspera. Entre gente bonita e outra ali reunida estavam eleitos do meu partido, outros (poucos) de outros partidos, o Presidente da Junta de Freguesia,  familiares de actor falecido e a vereadora Marlene Rodrigues. Depois de discurso enquadrado (Voz de Paço de Arcos), a vereadora, nada intimidada pela presença de Eunice Muñoz e Fernando Tavares Marques, pegou num papel que levara, projectou a voz e nela a sua própria alma. E disse um poema:

O ACTOR

O actor acende a boca. Depois os cabelos.
Finge as suas caras nas poças interiores.
O actor pôe e tira a cabeça
de búfalo.
De veado.
De rinoceronte.
Põe flores nos cornos.
Ninguém ama tão desalmadamente
como o actor.
O actor acende os pés e as mãos.
Fala devagar.
Parece que se difunde aos bocados.
Bocado estrela.
Bocado janela para fora.
Outro bocado gruta para dentro.
O actor toma as coisas para deitar fogo
ao pequeno talento humano.
O actor estala como sal queimado.

O que rutila, o que arde destacadamente
na noite, é o actor, com
uma voz pura monotonamente batida
pela solidão universal.
O espantoso actor que tira e coloca
e retira
o adjectivo da coisa, a subtileza
da forma,
e precipita a verdade.
De um lado extrai a maçã com sua
divagação de maçã.
Fabrica peixes mergulhados na própria
labareda de peixes.
Porque o actor está como a maçã.
O actor é um peixe.

Sorri assim o actor contra a face de Deus.
Ornamenta Deus com simplicidades silvestres.
O actor que subtrai Deus de Deus, e
dá velocidade aos lugares aéreos.
Porque o actor é uma astronave que atravessa
a distância de Deus.
Embrulha. Desvela.
O actor diz uma palavra inaudível.
Reduz a humidade e o calor da terra
à confusão dessa palavra.
Recita o livro. Amplifica o livro.
O actor acende o livro.
Levita pelos campos como a dura água do dia.
O actor é tremendo.
Ninguém ama tão rebarbativamente como o actor.
Como a unidade do actor.

O actor é um advérbio que ramificou
de um substantivo.
E o substantivo retorna e gira,
e o actor é um adjectivo.
É um nome que provém ultimamente
do Nome.
Nome que se murmura em si, e agita,
e enlouquece.
O actor é o grande Nome cheio de holofotes.
O nome que cega.
Que sangra.
Que é o sangue.
Assim o actor levanta o corpo,
enche o corpo com melodia.
Corpo que treme de melodia.
Ninguém ama tão corporalmente como o actor.
Como o corpo do actor.

Porque o talento é transformação.
O actor transforma a própria acção
da transformação.
Solidifica-se. Gaseifica-se. Complica-se.
O actor cresce no seu acto.
Faz crescer o acto.
O actor actifica-se.
É enorme o actor com sua ossada de base,
com suas tantas janelas,
as ruas -
o actor com a emotiva publicidade.
Ninguém ama tão publicamente como o actor.
Como o secreto actor.

Em estado de graça. Em compacto
estado de pureza.
O actor ama em acção de estrela.
Acção de mímica.
O actor é um tenebroso recolhimento
de onde brota a pantomina.
O actor vê aparecer a manhã sobre a cama.
Vê a cobra entre as pernas.
O actor vê fulminantemente
como é puro.
Ninguém ama o teatro essencial como o actor.
Como a essência do amor do actor.
O teatro geral.

O actor em estado geral de graça.

Herberto Hélder
NOTA: Há imagens. Quando as tiver, edito-as

7 comentários:

  1. Fabuloso, o poema do Herberto Hélder!

    Voltarei para ver as imagens!


    Maria João

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    1. Fabuloso, o José de Castro

      Sabias que, com ele, teve Amália um "caso"?

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  2. Que belíssimo poema (que não conhecia...) Obrigada!Só mesmo no meu concelho...

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    1. José de Castro o terá merecido

      (Graça, Paço de Arcos nem Freguesia é!...)

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  3. Deve ter sido uma bonita homenagem. Não me recordo do actor. Vou ver na net o que encontro sobre ele.
    O poema é lindíssimo e não conhecia. Também Herberto Hélder é dos poetas que menos conheço.
    Abraço e bom fim de semana

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  4. com um grande poema se premeia a arte...

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