01 abril, 2017

Em dia das mentiras, um conto africano


A VERDADE E A MENTIRA
«Deus decidiu, um dia, criar todas as coisas, as boas e as más.
Criou a noite e o dia, o direito e o avesso, a lua e o sol, o alto e o baixo; e assim, a cada objecto e situação foi criado o seu contrário.
A Verdade foi criada grande, majestosa, de uma beleza incomparável. Por seu lado, a Mentira, era pequena, feia e doentia.
Deus, na sua grande bondade, deu à Mentira uma faca de mato para que melhor se pudesse defender e ter as mesmas oportunidades que a Verdade; depois enviou-as para o mundo.
Verdade e Mentira foram, cada uma, para o seu lado, caminhando e andando.
As pessoas preferiam ouvir a Verdade, era tão atraente pela sua beleza e, com ela, tudo era tão límpido!
A Mentira, rejeitada, começou a sentir crescer, dentro de si, ciúmes e raiva contra a Verdade.
Um dia, decidiu esperar pela Verdade num caminho escondido e provocá-la.
Irrompeu uma briga entre os dois opostos da Palavra. A Verdade, mais forte e mais resistente ficou em vantagem mas, demasiado confiante, distraiu-se. A Mentira, então, aproveitou esse momento de distracção para lhe cortar a cabeça, com a sua faca de mato.
A Verdade, atordoada, cega, procurou às apalpadelas a sua cabeça, a fim de a voltar a colocar no seu corpo. Procurando febrilmente o seu belo rosto acabou por sentir uma cabeça sob os seus dedos e, com uma rapidez e força insuspeitas puxou-a para si e colocou-a no seu corpo.
Mas … foi a cabeça assustadora e feia da Mentira que, na sua cegueira, também tinha decapitado.

Andando e caminhando a Verdade anda pelo mundo com a cabeça imunda da Mentira e a Mentira com a bela e altiva cabeça da Verdade … e os homens já não conseguem distinguir a verdade da mentira!»


Amadou Hampaté Bâ/Tradução Maria Abreu

15 comentários:

  1. Ora aqui está uma grande verdade !

    Um conto muito interessante e que revela uma grande verdade ! :)

    Um beijinho



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    1. Suponho ser um conto tradicional que o autor (que, ao que parece, é senegalês) resolveu publicar...

      São as histórias que o povo conta...

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    2. não é senegalês

      Amadou Hampâté Bâ (Bandiagara, 1901 - Abidjan, 1991) foi um escritor malinês

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  2. Muito interessante.
    Gostei.
    Um abraço e bom domingo.

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  3. A faca, a faca é que era dispensável!

    Agora, é isto! Já tudo é "partido".

    Bom domingo!

    Lídia

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    1. Lídia,
      não sei se a tradução é a mais correcta (não li o original, em francês)mas em África (e no mato)negro sem catana não vai longe... e suponho que era de catana que se tratava. Catana e não faca...

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  4. Gostei muito da história Rogério, mas não concordo, inteiramente, com ela.
    A Mentira pode andar mascarada de Verdade, enganar meio-mundo, fazer mil e uma maldades, mas a Verdade É como o Azeite, mais cedo ou mais tarde, vem ao de cima. Eu acredito nisso.
    Pode-se enganar alguém durante algum tempo, mas não se podem enganar todos, todo o tempo.

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    1. Janita
      a sua generosidade é infinita
      mas está desactualiza
      hoje, há pós-verdade
      o resto não conta para nada

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  5. Não recebeu o meu comentário, Rogério?

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    1. Sim, claro que que sim.
      Contudo, andava ocupado em saber mais sobre o autor do conto.
      E cheguei atrasado, pronto!

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  6. Interessantíssimo este conto-alegoria de Amadou Hampâté Bâ, embora eu acredite que qualquer coisa ainda compele a Verdade a procurar o seu verdadeiro rosto, por muito que a Mentira procure fugir-lhe para poder ostentá-lo a seu bel-prazer...

    Abraço!

    Maria João

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  7. belo conto. gostei de ler...
    a cada um as verdades de que é capaz
    e as mentiras que o cegam...

    fraternal abraço

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    1. Para além da alegoria, o conto (re)descobre que há uma literatura africana...

      e decidi ir espreitá-la

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