30 abril, 2018

O que seria, o que seria do cinzel sem a cantaria?

La Maza*

Se eu não acreditasse na loucura
Na garganta do rouxinol
Se eu não acreditasse que no monte
Se esconde o trigo e o medo
Se eu não acreditasse na balança
Na razão do equilíbrio
Se eu não acreditasse no delírio
Se eu não acreditasse na esperança
Se eu não acreditasse no que controlo
Se eu não acreditasse no meu caminho
Se eu não acreditasse no meu som
Se eu não acreditasse no meu silêncio
O que seria, o que seria do cinzel sem a cantaria?
Uma massa feita de cordas e tendões
Uma confusão de carne com madeira
Um instrumento sem melhores pretensões
De pequenas luzes montadas para uma encenação
O que seria, coração, o que seria?
O que seria o que seria do cinzel sem a cantaria?
Um testa-de-ferro do traidor dos aplausos
Um servidor de passado em uma taça nova
Um eternizador de deuses do pôr-do-sol
Júbilo fervido com trapo e lantejoula
O que seria, coração, o que seria?
O que seria o que seria do cinzel sem a cantaria?
O que seria, coração, o que seria?
O que seria o que seria do cinzel sem a cantaria?
Se eu não acreditasse no mais duro
Se eu não acreditasse no desejo
Se eu não acreditasse no que acredito
Se eu não acreditasse em algo puro
Se não acreditasse em cada ferida
Se não acreditasse no que rondei
Se não acreditasse no que esconde
Tornar-se irmão da vida
Se eu não acreditasse em quem me escuta
Se eu não acreditasse no que dói
Se eu não acreditasse no que fica
Se eu não acreditasse no que luta
O que seria, o que seria o que seria do cinzel sem a cantaria?
Uma massa feita de cordas e tendões
Uma confusão de carne com madeira
Um instrumento sem melhores pretenções
De pequenas luzes montadas para uma encenação
O que seria, coração, o que seria?
O que seria o que seria do cinzel sem a cantaria?

Silvio Rodriguez

*traduzi por cinzel, não sei se bem se mal

29 abril, 2018

Um conto ao Domingo - XIII (O Gato)


O gato chamava-se Gato, não por falta de imaginação ou falta de madrinhas (o Gato foi, além do "dono da casa", o primeiro macho da família). O gato chamava-se Gato porque alguém, ninguém se lembra quem, o chamara "anda cá, gato" e o Gato, de pronto, respondeu com um "miau" ternurento ao chamamento. 

Lembram-se do Gato não pelas cortinas caídas, reposteiros arranhados, ou jarras partidas em resultado daquele seu exercício de se passear, lento e dengoso, sobre as prateleiras do móvel da sala onde se expunha (e até hoje continua exposto) um autêntico acervo da memória que o "dono da casa" fazia (e faz) questão em olhar diariamente. Lembram-se do Gato porque ele era a referência da sua própria humanidade: "Se a inteligência tivesse escala, bem podíamos ser  mais humanos..." Lembram-se do Gato, pela sua habilidade em lidar com aquilo que julgava (sim ele tinha esse juízo) ser o temperamento daquela família e de cada um, isoladamente. Com a diplomacia, doçura e afectividade à medida.

Entre o "dono da casa" e o Gato havia um pacto: ele sancionava a liberdade ao Gato de ocupar todos os espaços, o Gato retribuía-lhe não ocupando o espaço que entendia ser cativo do "dono da casa". A liberdade usava-a repartindo todos os regaços e colos, mas na hora do sono ia ter com a dona para aos seus pés dormir, na hora do comer era à dona que ia pedir. Ás vezes miava, mas a comunicação preferida era a de uma agitação contida.
O Gato era um exibicionista, um verdadeiro artista. Bastava que a família estivesse reunida e sem lhe prestar atenção, ele não perdoava a distração e lá vinha aquela correria doida e o salto felino, trepando a parede ao fundo. Ele não se inibia de públicos gestos obscenos com a inesperada namorada, um peluche já com bastante uso, animal indistinto que todos jurariam ser um urso e que o "dono da casa" trouxera de Hannover, como prenda em retribuição de uma ausência...

Um dia, na janela soalheira que escolhera para seu pouso de todas as manhãs, aconteceu. Um pombo atrevido sobrevoou-lhe o sono e o Gato, num gesto mal reflectido de resposta à provocação, quis ripostar e lá foi... pelo ar. A queda, todos a supunham mortal. O "dono da casa" desceu a escada, três lances em corrida, degraus saltados a quatro e quatro na ânsia de acudir ao Gato. Já na rua, agarrou-o a custo pois o Gato declarava o susto com as garras e com o desespero. O "dono", mesmo arranhado, ia conferindo se estavam todas as sete vidas. Estavam. 
Nessa noite, o Gato dormitou um pouco no colo do seu salvador, até adormecer, como costumava fazer, ao colo da Maria João. Da segunda vez que caiu daquele terceiro andar, nada há que contar: a experiência fez com que tudo parecesse normal.

Epílogo

Perto de um ano depois da João ter saído de casa para ocupar o pequeno apartamento da Cruz Quebrada, ligou chorosa. O Gato desaparecera. O Gato desaparecera sem deixar rasto em todos os lugares onde o procurara, em todas as portas em que batera. O "dono da casa" esboçou um sorriso triste e pensou "A densa mata do Vale do Jamor é um apelo a qualquer felino, que se danem os ratos e que se satisfaça o Gato com verdadeiras fêmeas, mais atraentes que um usado peluche..."
Mesmo na incerteza desse destino, dava-lhe descanso pensar que fora esse o que tinha tido...

(Reeditado, original publicado em Novembro de 2013)

28 abril, 2018

...somos todos "Desenhadores de Sonhos"


Sim, sou um desenhador de sonhos. De certa forma, somos todos Desenhadores de Sonhos. Desenhamos-os de diferentes formas, mas a melhor é desenhar por gestos, gestos-ação, acompanhados de palavras-de-ordem, ou de cânticos, ou de protestos...

Porque só agora publico isto? Porque até julgava este trabalho perdido...

27 abril, 2018

A península da Coreia, Kim e a metáfora do Maceta

As imagens correm por aí e traem a expetativa que o "mundo ocidental" ia criando e acirrando, cabendo a Trump papel relevante, da ameaça ao insulto. O epíteto de "homem-foguete" correu mundo. 
Hoje é um dia histórico e todos querem ficar bem na fotografia, até Trump.
«O momento decisivo foi, no entanto, como anunciámos, o anúncio por Kim Jong-un, a uma «sessão plenária extraordinária do Comité Central do Partido dos Trabalhadores», de que, «no âmbito da chamada Ofensiva para a Paz, a RPDC iria parar com os ensaios nucleares e o lançamento de mísseis balísticos intercontinentais, e iria encerrar o centro de ensaios nucleares da base de Punggye-ri».
 Mas talvez a metáfora do meu amigo Maceta aconteça e Trump seja o derradeiro lançamento de Kim, antes de encerrar Punggye-ri.

24 abril, 2018

A Liberdade acaba, quando se perde a memória

Que se avivem memórias de Abril
E tenhamos a certeza que,
se a memória se perde,
pode muito bem voltar a acontecer
como se fosse a primeira vez.
Talvez não tudo
Mas um pouco, já seria tanto 

23 abril, 2018

Dia Mundial do Livro e do Autor? Pois então que seja hoje!


Pois então que seja hoje que dou destino ao que resta do meu livro. Um pequeno stock, que me olha interrogativo quando abro o armário. Sempre que isso acontece, e já lá vão mais de 6 anos, parece que oiço o coro de livros perguntando,"quando?" 

Contei-os, e pensei que talvez valham qualquer coisa para o destino que lhes tracei, doa-los. Isso! vou doa-los aos "desenhadores de sonhos" que mais rigorosamente dão, no registo nacional de pessoas coletivas, pelo nome:


Quem quiser adquirir memórias dos meus afetos, raivas, angustias e medos, por terras de Angola, durante a Guerra Colonial, a troco de um donativo, envie um mail para o endereço. 
desenhando1974sonhos@gmail.com
E, entretanto, fica um escrito que pode ser lido logo na página 5
«Contamos histórias, pois claro. Contamos a nossa própria história, não a da vida, não a história biográfica, mas essa outra que, em nosso próprio nome, dificilmente teríamos a coragem de contar, não por dela nos envergonharmos, mas porque o que há de grande no ser humano é grande de mais para caber em palavras, e aquilo em que somos geralmente pequenos e mesquinhos é a tal ponto quotidiano e comum que não levaria qualquer novidade a esse outro grande e pequeno que é o leitor. Talvez por tudo isto alguns autores, entre os quais me incluo, favoreçam, nas histórias que contam, não a história dos que vivem e vêem viver, mas a história da sua própria memória. Somos a memória que temos, e essa é a história que contamos.»
Saramago?
Pois! Claro!

22 abril, 2018

Um conto ao Domingo - XII ("A Maior Flor do Mundo")

Ilustração de  Sílvia Mota Lopes Costa
Era uma vez uma menina pequenina, bonita, que já fora ladina e que agora vivia muito triste e já mal brincava.

Nada a entretinha e nada a fazia sorrir, a ela que sempre andara a saltar e a rir. E era muito esperta, muito atenta, a tudo o que se passava à volta dela. E quando parecia que não se passava nada, ela levantava uma pedra. E era vê-la contente e divertida com tanta vida. Eram  minhocas, formigas, bichos de conta sem conta a fazerem-na divertida. Mas depois, não, nada a animava.

Atenta como era, a menina sofria com as coisas más que ouvia e que toda a gente contava. Conhecia poucos lugares, apenas conhecia o seu quintal e a rua ao fundo, mas já sabia todas as tristezas do mundo.

Era essa a tristeza da menina.
Um dia, estava a menina como sempre estava, sentada e sem alegria, quando um pássaro, sem sequer lhe pedir licença, veio pousar-lhe no alto da sua cabeça. A menina sorriu, e cumprimentou:
"Bom dia senhor pássaro!"
O pássaro viu quebrado o encanto que a natureza lhe tinha dado de não permitir falar e respondeu, ainda admirado de o poder fazer:
"Bom dia linda menina, posso saber a razão do teu sofrer?"
E a menina de pronto lhe contou que do mundo só conhecia gente má e a tanta maldade que era feita. O passarinho deixou a cabeça da menina e esvoaçou, suspenso no ar como um beija-flor, olhando a menina de frente falou com entusiasmo e calor:
"Mas sabes? no mundo há boa gente. Há meninos bons, com gestos belos".
E de seguida contou como é que um menino salvou uma flor que estava condenava  à morte, contou tim tim por tim tim como a salvara de tal sorte e como a flor salva, para se tornar exemplo das coisas belas que os humanos fazem, se tornou a maior flor do mundo. À medida que o passarinho contava o rosto da menina se iluminava:

"E eu posso conhecer esse menino e essa flor?"
"Sim, como tu não tens asas eu pouso em cima da tua cabeça e te indico o caminho", disse o passarinho. E lá foram, a menina e o passarinho pousado na sua cabeça e indicando o caminho para conhecer o outro menino que salvou a flor, a maior flor do mundo. 

Depois de saber e de ver, a menina nunca mais entristeceu e todos os dias o passarinho lhe veio cantar ao beiral, baixinho, como que a lembrar que há gestos que salvam vidas, nem que sejam as de uma flor. 

E foram muitas as outras coisas que a menina viu. 
Veja também aqui e sorria, como ela sorriu

DEDICATÓRIA: Porque se trata (mais uma vez) de uma reposição, volto a dedico este pequeno conto a quem o ilustra e nem sabe porque desenha uma menina com um pássaro na cabeça

19 abril, 2018

Embuçada, escuta bem / Que hoje não fique ninguém / Embuçado nesta sala


Este meu espaço, aberto e arejado, dá abertura a qualquer criatura. Ultimamente tem acolhido "anónimos" que assinam e outros, que não o sendo, vai parar ao mesmo, pois entram com nomes que não lembra ao Diabo e  se assinam mascarando o perfil.
Aceito isso, pois em tempos fui eu próprio (de certo modo) clandestino.

Escreveu uma tal Mafalda, que não tem a ver nem com o Quino nem comigo, e que me provoca, assim:
«...Esqueceu-se do "Marcelinho", um Sistema criado com a matemática "perfeita", 2.413.956 votos passam a 52% e a Presidente de Todos os 10.325.500 portugueses, nessa altura porque, hoje, já somos menos.
Votar para euro-deputados que não podem propor, nem vetar Leis e, aprovar coisas no Parlamento vindas "de fora" por estarmos algemados a uma Dívida que não pára de crescer... "A bem dos Portugueses" quase me fez vomitar... devo estar a abusar do vinagre...»
Disse ela.

"Pois!", digo eu (e de pronto me ocorrem palavras de Saramago, que sempre deu a cara)

18 abril, 2018

Siria, outro bombardeamento, outras vítimas

«O conflito Sírio conheceu novos desenvolvimentos na última semana. A coligação ocidental formada pelos EUA, França e o Reino Unido, atacaram posições do regime controlado por Bashar Al-Assad. Este ataque surge como retaliação pelo uso de armas químicas contra a oposição rebelde em Ghouta oriental. O serviço Telenews registou um total de 124 notícias e 4 horas e meia de emissão sobre o tema»
Claro que, ao meu estílo, com este texto introduzo uma irónica analogia. O bombardeamento que refiro é com notícias. A negrito sublinho o tipo de arsenal usado. Quanto à intensidade de fogo, "de salientar a cobertura da RTP1 com 2 horas de emissão e 50 notícias emitidas".

As vitimas, os incautos telespetadores, desconhece-se  o balanço e o estado em que ficaram as cabeças. Já, como pode ler aqui, "O balanço militar do bombardeamento de 14 de Abril é surpreendente : 103 mísseis teriam sido disparados pelos Aliados. Teriam sido destruídos 71 em vôo pelo Exército Árabe Sírio. Um laboratório militar desocupado teria sido arrasado e instalações de dois aeródromos foram atingidas. Este dilúvio de fogo não teria causado mais que três feridos e não teria matado ninguém. Se Donald Trump, Emmanuel Macron e Theresa May queriam mostrar a sua força, acabaram sobretudo mostrando a sua impotência."

16 abril, 2018

Aristóteles, as redes sociais e outras coisas mais...

 
«O homem é um ser eminentemente social porque ele tem absoluta necessidade de agrupar-se, reunir-se a seus semelhantes não só para atender aos fins que busca e deseja, mas também para satisfazer suas necessidades materiais e de cultura.» 

No tempo de Aristóteles, ele tinha razão. Hoje, tem menos. O homem tende a ser um ser eminentemente facebookiano e não será pessimismo esperar que a próxima geração odeie uma boa conversa em família, pragueje contra um sindicalista, não tenha um único livro em casa e, de música, só atente àquela que acontece sem recurso a qualquer instrumento ou artista para a produzir.

Afirmava ainda Aristóteles que o homem, para viver isolado, só se for um bruto ou um Deus. Naquele tempo, mal sabia o filósofo que nos estamos transformando numa humanidade bruta de onde se exclui uma minoria de deuses (não eleitos) que a governa.

A imagem acima é uma montagem minha. Frequentemente, além de interregnos para coisas belas e outros para coisas muito más, também faço os meu interregnos para coisas parvas... porque, não sendo um Deus, esforço-me para passar por parvo, na esperança de não me tornar num muito e venerado bruto.

15 abril, 2018

Um conto ao Domingo - XI ("A FLAUTA, aquela que agora me faz tanta falta")

 

"Não vás para o calor, filho." Minha avó era a mãe de todos os filhos deste mundo. Tratava-me assim a mim e a todas as crianças da vizinhança e as que por lá apareciam. Eu obedecia-lhe enquanto me lembrava, depois disso, não, e metia-me quinta fora descobrindo coisas de descobrir e encantar.

Naquele dia, o sol estava tão abrasador que até meu avô decidira suspender a sua faina e sentar-se junto ao palheiro, debaixo de uma velha oliveira, há muitos anos plantada junto a um pequeno canavial. Sentara-se a fumar o que eu entendia ser sinal de valer a pena me aproximar e tomar-lhe um pouco da sua atenção. Foi o que aconteceu. Olhou-me e percebeu que eu esperava dele qualquer coisa daquelas que costumavam acontecer quando lhe aparecia e ele tinha tempo para me dar.

Decidiu-se nesse dia por coisa que não tinha feito antes. Levantou-se, andou uns metros, poucos, curvou-se sobre uma das canas, a mais verde e a que lhe parecia mais adequada, e cortou-a com a navalha. Aquela navalha, sempre afiada e que sempre lhe vira usar em tão variados usos, desde cortar o queijo e os côdeas de  pão, cortar erva para os coelhos ou podar as videiras, até o que agora ia fazer, com aquela pequena cana.

Não sabia o que seria, mas não perguntei para não quebrar o encanto do que ia acontecer. Seus gestos eram certeiros, como se não fizesse outra coisa na vida senão executar, com precisão, pequenos recortes numa verde cana, que ia cortando. Cortou primeiro um segmento, para aí com um palmo, dos dele ou o dobro o triplo dos meus. Depois um pequeno orifício, entalhado.

Tinham-se passado alguns minutos sem palavras. Não eram necessárias pois lhe bebia atenciosamente os gestos. "É uma flauta" - disse, percebendo que me interrogava sobre o que seria. "É uma flauta igual à daquele menino, de uma cidade distante, tão distante daqui, que se tu quisesses lá ir e partisses agora, só lá chegarias velho. Velho como eu" - abanei a cabeça  para dar a entender que percebia a distância. "...e foi há muito tempo atrás, há tanto, que para assistir ao acontecido apenas o avô do avô do meu avô o poderia ter visto" - abanei a cabeça, à mesma, dando a entender que percebia o há tanto tempo que tinha sido, e ele continuou a contar, enquanto eu ia dividindo a minha atenção entre o que habilmente fazia e o que ia contando: "...pois essa cidade foi invadida por ratos pequenos mas que se transformaram, com o tempo, em ratos cada vez maiores. Ratos enormes e gordos. Enormes e maus, que tudo roíam e destruíam, espalhando o terror e pondo os habitantes da pacata cidade fechados em casa, sem saírem dela. Os ratos tomaram conta da cidade e só faziam e espalhavam maldade.  O governo e os senhores que faziam leis e tomavam conta da ordem na cidade, deixaram de o poder fazer." - eu ia ouvindo e me impressionando com o conto, com o rosto dele - tão sereno - o com os movimentos das mãos, que tinham abandonado a navalha e iam agora colocando uma folha de papel da sua carteira de mortalha e que lhe servia, normalmente para fazer os cigarros. -  "Então os mais velhos da cidade, reunidos, resolveram  fazer saber que dariam grande riqueza a quem salvasse a cidade. Logo alguém, pequeno como tu, apareceu oferecendo-se para o fazer a troco de nada." -

Nesta  altura a mortalha estava colocada e o trabalho pronto. Faltava só experimentar, mas continuou a contar - "O menino que se tinha oferecido, foi para a rua e todos os vizinhos se inquietaram com tal acto que lhes parecia muito arrojado e cheio de perigo, pois os ratos nunca perdoaram a quem antes o tinha tentado. Foi então que o menino, tirou da pequena algibeira uma flauta igual a esta. E tocou. Tocou alto, uma melodia tão bela e que a cidade nunca ouvira. Ficou tocando e os ratos foram aparecendo, mas sem atacar o menino. Quando a praça estava pejada de ratos o menino foi andando, andando e tocando. Tocando e andando. E os ratos atrás dele como que encantados pela melodia que o menino ia tirando daquele pequeno instrumento." - Meu avô parou de contar e experimentou a flauta que tinha acabado de fazer. Soprou-a devagarinho e o som saiu baixinho. Meu avô sorriu, orgulhoso do feito e retomou o conto.

"O menino com todos os ratos da cidade atrás dele saiu, pelo grande portão, que as cidades tinham então. Quando percebeu que todos tinham saído e já nenhum rato ficara dentro parou de tocar e correu, correu, correu. Correu, entrou na cidade pelo portão de onde saíra e fechou-o dando sete voltas à chave. Toda a cidade aclamou o salvador, cantou e dançou enquanto os ratos, lá fora, sem ter que comer, acabaram por morrer" - Eu fiquei tão contente como se fizesse parte daquela cidade de antigamente e recebi das mãos do meu avô a flauta pronta e experimentada.

Metia-a cuidadosamente no meu pequeno bolso. Dias a fio, daqueles que se seguiram, frequentemente tirava a flauta do bolso e tocava-a. Garanto-vos que mil ratos enormes, disformes, centenas de dragões e toupeiras, daquelas que arrasam batatais e outras sementeiras, me seguiam até passarem para lá do portão da quinta, que eu imaginava ser o portão, como as cidades do conto tinham então...
Rogério Pereira
NOTA DO AUTOR - Reedito este conto para que passe a constar nesta série de contos ao domingo. Reedito, igualmente a nota de então: "Os contos do meu avô eram, como já referi em anterior post, reconstruções ou adaptações de outros que mais tarde fui descobrindo na sua versão original. Este, reconto como a memória me permite, é um muito livre plágio de um conto, célebre, dos irmãos Grimm: O Flautista de Hamelin. Esta versão é mais interessante que a original."

13 abril, 2018

Centeno canta bem, mas pela pauta errada


Canta bem Centeno e Bruxelas encanta-se. Os portugueses, muitos deles, nem fazem a mínima ideia que a pauta é a pauta errada. Tivesse Centeno a pauta certa e lhe ouviríamos, com a mesma voz grave e aquele mesmo sorriso de menino, falar de como o deficit podia dar uma grande volta ("Sem juros, Estado teria superávite de quase 3% do PIB").

Se por um lado a pauta é a errada, também não pode ser certa a canção que canta.

E se Centeno enquadrasse as metas do défice pela redução da desigualdade na repartição da riqueza?
«... Almeida Garrett escreveu em Viagens na Minha Terra: "Aos economistas políticos, aos moralistas pergunto se já calcularam o número de indivíduos que é preciso condenar à miséria (...) para produzir um rico."

Por mais que o recusem, a questão está na crescente desigualdade da repartição da riqueza criada entre capital e trabalho. Dados do Instituto Nacional de Estatística revelam que, em média, as remunerações do trabalho representam metade do valor da produção em Portugal. Em sectores como o petrolífero, o valor acrescentado bruto (em linguagem menos económica mas mais entendível, a riqueza criada) por hora de trabalho é de 198,4 euros, enquanto o valor da remuneração por hora de trabalho é de 40,1 euros, o que significa que o trabalhador em oito horas de trabalho por dia trabalha para pagar o seu salário em 1,6 horas, sendo as restantes 6,4 horas trabalho não pago, logo mais-valia da Galp. Ou se se olhar para o sector energético, em que a EDP e a REN acumulam lucros obscenos, a remuneração por hora de trabalho é de apenas 9,2% do valor produzido, o que significa que ao fim de 44 minutos o trabalhador tem o seu salário retribuído, dando mais de sete horas do seu trabalho em regime não pago.

Os que se opõem ao aumento real dos salários, agitam o espantalho da competitividade em defesa de uma economia assente em baixos salários ou persistem numa legislação laboral afeiçoada aos interesses de exploração do trabalho melhor fariam se, em vez de lamuriosas palavras, guardassem recato perante as desigualdades e a pobreza. Continuar a falar de pobreza à margem da exploração, ou seja, da apropriação da mais-valia produzida pelo trabalhador, é um exercício de cegueira política que só servirá aos que reproduzindo o empobrecimento vão subindo uns lugares na lista dos mais ricos da revista Forbes.»
Jorge Cordeiro, in "A pobreza não cai do céu"


12 abril, 2018

Não, não estou cansado!

Fala-me Brecht, num poema intemporal:
"Dizes tu:
Que esperaste muito tempo. Que já não podes ter esperanças.
Que esperavas tu?
Que a luta fosse fácil?

Não é esse o caso:
A nossa situação é pior do que tu julgavas.

É assim:
Se não levarmos a cabo o sobre-humano
Estamos perdidos.
Se não pudermos fazer o que ninguém de nós pode exigir
Afundar-nos-emos.
Os nossos inimigos só esperam
Que nós nos cansemos.
Quando a luta é mais encarniçada
É que os lutadores estão mais cansados.
Os lutadores que estão cansados demais perdem a batalha."
A resposta, ao meu poeta:
Cansado? Sim, claro!
Demais?
Nem pensar!

10 abril, 2018

Trump e a trupe


Notícia de hoje, da TeleSur, dá conta que a escalada verbal de Trump é uma ameaça à ordem mundial e que as motivações de tal escalada serão o desvio das atenções dos graves problemas internos do país, os muitos imbróglios em que se encontra envolvido, para além de problemas fiscais. 

Julgo que, tendo problemas da mesma índole, quer a May quer o Macron, terão sintonia de propósito e, daí, o perigo efetivo de vir a acontecer algo que, se acontecer mesmo, talvez nem eu e nem quem me lê sobreviva para contar.

José Goulão escreve que estamos "À beira do abismo" e eu acredito que estamos mesmo.

09 abril, 2018

Bruno de Carvalho, Trump e as minhas rogériografias


Há que insista em compará-los.
Eu, assinalando-lhes as diferenças
E descubro inesperadas semelhanças

Um não é louro
Louro é o outro

Um gesticula assim
O outro gesticula assado

Um acaba de deixar o face
O outro ainda twitta

Um é rouco
O outro ronca

Um foi eleito por muitos
O outros foi-o por poucos

Um arrisca acabar com um clube
O outro arrisca acabar com o mundo

Onde então as semelhanças?

É que eles, afinal
Têm o cérebro igual

Caso não acredite, 
e... medite

Se quiser aprofundar o estudo
"A fisiologia do cérebro explica tudo"

08 abril, 2018

Um conto ao Domingo - X ("o regresso da gaivota e a sua boa nova")


"Olá" - grasnou ela, do lado de fora daquela mesma janela onde outrora tinha pousado.

"Olá" - respondi-lhe da mesma maneira, dirigindo-me a ela, sabendo por situação passada que não fugiria à minha aproximação. Não fugiu, como então. Sabendo já o que fazer, fiz o que antes tinha feito, julgando saber que me procurava para que lhe desse daquele alimento que as gaivotas esperam poder comer quando pousam nas nossas janelas. Ela ia depenicando e olhando. Depenicando e olhando. Após a décima depenicadela olhou-me como olham as gaivotas e interrogou-me.

"Não me perguntas porque regresso?"

Surpreendido e até contristado por nem sequer me ter ocorrido tal pergunta, respondi por palavras dela.

"Não são muitos os homens que alimentam a liberdade, agora que é hora em que ela mais periga!", foi o que me disseste em tempos. Julguei que teu regresso teria a ver com o mesmo reconhecimento!..."

"E tem, mas também te trago uma novidade. E porque é boa, quis vir dar-ta. Como o bando me espera, tenho que ser rápida. Desde o ano passado não tenho parado. Cruzei mares, sobrevoei desertos, pousei em mil um beirais. Vi muito, por esse mundo, guerras, desmandos e, apesar de tudo...", grasnou levemente, como se estivesse emocionada, e continuou, no ponto em que tinha ficado "... apesar de tudo são cada vez mais os homens que, como tu, me alimentam o voo e se batem pelo sonho da igualdade, combatem cercos de autoridade, de injustiça mascarada, de prepotência e de rituais de guerra."

E grasnando ao bando que naquele momento ia passando, voou ao seu encontro e lá foram, mais uma vez, em direção ao mar, naquele elegante voo que as gaivotas usam quando trazem boas notícias.
NOTA PARA O LEITOR - Este conto, que lembra o outro, não aconteceu o que não quer dizer que amanhã não venha a acontecer...

Rogério Pereira 

07 abril, 2018

As razões da prisão de Lula ou o Brasil invadido


O "novichoc" jurídico

A invasão do Brasil deu-se através de uma onda tipo "novichoc jurídico" que minou os canais institucionais através de uma espécie de diarréia mental fatal para a honorabilidade dos seus agentes públicos. Ao que parece, a ameaça externa, com preparação interna na área militar, seria de uso das armas em caso de falhanço nos artifícios jurídicos. Assim se deduz da tranquila informação do general Villas Boas.

Pode-se também pensar que a execução da vereadora Marielle foi uma demonstração da pontaria dos atiradores nas cidades, já fartamente conhecida nos campos onde a população forja os seus líderes mais imediatos que vão sendo eliminados por "jagunços" a mando da elite rural.

O golpe introduzido por Temer foi definido como "democrático e justiceiro", mas os seus executantes estão processados por corrupção. Os custos da operação "justiceira" devem ter levado a fonte financeira do golpe a dar um basta nos biliões distribuidos e na crescente chusma de adeptos de mão estendida em troca de uma mentira conveniente.

O que importa agora é entender :

porquê esta sanha contra um operário brasileiro que teve a ousadia de se tornar exemplo mundial de Presidente da República e criar um programa para acabar com a fome de 50 milhões de cidadãos;

retirar as crianças do trabalho escravo;

integrar todos os brasileiros no sistema jurídico constitucional;

criar medidas para permitir que todos os estudantes, quaisquer que sejam as origens étnicas, possam cursar as universidades;

abrir o caminho de desenvolvimento para todas as regiões do país e levar água e energia elétrica para todas as casas;

apoiar as mais diversas iniciativas de produção e criação de emprego;

atender aos problemas de saúde dos milhões de brasileiros;

promover a integração do Brasil nos mais altos escalões da política mundial;
projetar a economia brasileira em associações internacionais pioneiras;

afirmar a soberania da Nação perante todo o planeta;
cooperar com os países latino-americanos para superarem as condições de atraso e subdesenvolvimento;

receber da ONU os louvores pelas conquistas democráticas que animaram os países africanos e asiáticos, ainda em condição de miséria e domínio colonial disfarçado, a levantarem a cabeça ...

Se calhar, foi exatamente por Lula ter feito tudo isto que o imperialismo animou o processo golpista que Temer iniciou e os juizes de vários escalōes se prestaram a dar um tom de justiça.

O STJ envergonhou não apenas o povo brasileiro como a comunidade jurídica internacional ao condenar sem provas um herói nacional à prisão para evitar que concorra às eleições e reponha a democracia que foi enxovalhada no Brasil.

06 abril, 2018

UNICEF, UNICEF para que é que serve? Serve de incentivo? Que seja só por isso!


A minha Teresa, ministra das finanças cá de casa, não tem a mania do défice na dimensão  esquizófrenica de Centeno, mas sempre vai olhando para a despesa.
Diz-me ela: "Com tanta quotização, um dia não chega p´ro pão. Ele é a quota dos Bombeiros, ele é a do Partido, ele é a ADO, ele é a Desenhando Sonhos, ele é a CPPME, a assinatura da Seara Nova, o Avante e agora também a UNICEF? Vejam lá, até a UNICEF! E esta p´ra qu´e serve?"

Como prezo a sustentabilidade da harmonia caseira, quis dar-lhe a devida justificação e fui à procura de argumento. Procurei a mensagem recebida.  Digitando o endereço para o vídeo recomendado não fui dar a nenhum lado, digitei vários. 

E dei com este:

Pronto, amanhã quando ela voltar à carga, tenho a resposta pronta.

05 abril, 2018

Lula foi dentro. Pronto, tudo acabado, caso encerrado? Não, claro! Agora é que começa.


Para quem, como eu, salta da Europa para a Síria e daí para Queijas, em Oeiras, para logo ter de ir a correr ao Iemen, voltar a dar uma olhadela à Venezuela, e depois de me assegurar que a May deu um tiro no pé, atravesso o Atlântico e, confesso, a realidade passou a ser uma vertigem. 

Lula foi preso e há quem julgue que, ao ser encarcerado, o caso está encerrado.

Errado!

Agora é que a mudança começa. Porquê  tal crença? Ora essa?! O Chico tá nessa, meu patrono dá amem! Se eles confiam, eu confio também!

04 abril, 2018

Afinal Ms. Skripal sofreu síndroma gripal..

Diz-me um amigo, que há muito estimo, que a bonita do retrato terá sido premiada com um milagre de Páscoa. Sustenta ele no seu escrito:
«A moça da fotografia foi alegadamente envenenada com um agente químico de categoria militar e DEZ VEZES mais potente que o VX (produção ocidental!)!
O milagre é que a jovem não morreu e já está porreira!»
Pelos vistos o tal Novichok é um flop (dá forte, mas passa depressa). 
O que não passar depressa é a trapalhada em que a May meteu (quase) a Europa inteira...
Cabe agora a pergunta sacramental: "ONU, ONU, para que nos serves tu?"

03 abril, 2018

O regresso da ISA GT e o seu horroroso alerta...


A Isa era uma nossa amiga. Deixou saudades a sua partida e também deixou interrogações sobre o silencioso, porque não explicado, abandono do seu espaço. 
O seu último post embora não contivesse nenhum aviso, se bem lido (e visto) fazia adivinhar a decisão, pois não era nem doce nem travessura
Lembram-se dela?

A Isa, apareceu agora e tivemos, os dois, comentários cúmplices. A fechar, enviou-me um último, que depois veio a retirar. Contudo, cheguei a recolher a mensagem que me abstenho de reproduzir na integra. Fica este extrato:
(...) Desfiar séculos de corrupção e manipulação não cabe em caixas de comentários e, cada um tem de investigar por conta própria, porque contado é demasiada informação que só se pode digerir, se for tomada em colheres de chá para não dar um curto-circuito no nosso computador biológico que já andam a tentar fazer download para um chip e, se não acredita, veja a nova empresa do "testa de ferro" Elon Musk porque, até vai ser fácil roubar a alma a quem não souber que a tem.

02 abril, 2018

«A única coisa necessária para o triunfo do mal é que os homens bons nada façam»

Edmund Burke
(citado pela ISA num comentário)
Balanço da Semana Santa
Trump citou May e esta citou Macron
E as declarações subiram de tom
Assim foi a Semana Santa

Ocidente reforça abraço
Que se estendeu até à NATO
Assim foi a Semana Santa

A não comprovada ameaça externa
Alimentou o discurso de guerra
Assim foi a Semana Santa

Os vencidos da Syria
Unem-se na Guerra Fria
Assim foi a Semana Santa

Na Venezuela apertou-se o cerco ao povo
Em Gaza matou-se de novo
Assim foi a Semana Santa

Mata-se na Colômbia novamente
E no Perú, cai o Presidente
Assim foi a Semana Santa
Por cá, a imprensa destaca
em títulos de caixa alta
ter havido mais mortos estrada

Assim foi a Semana Santa
Onde mal se ouviu falar de ressurreição

01 abril, 2018

Um conto ao Domingo - IX (Páscoa 1971 - Luanda, num dia de "perfeita e inesperada integração racial.")

"(...) A praia a que chegámos estava pouco menos que apinhada. Páscoa, dia de feriado era uma das causas. A outra, o tempo convidativo, quente, como quase sempre.

Não vou perder tempo descrevendo atitudes normais de quem como nós, afastados meses a fio de lazeres, de corpos desnudados de mulheres, de enleio de olhares e maneios insinuantes, aparentemente convidativos mas, de facto, distantes. Falo da estranheza, comentada entre nós três, de nem um negro se vislumbrar, nem no areal, nem à beira-mar. Lá bem dentro da água calma, sim. A uma distância prudentemente afastada de reprimendas, nadavam e brincavam. Sobre uma barcaça, lancha, ou que fosse que se tinha virado, um grupo se divertia. Subiam ao bojo da embarcação e de lá mergulhavam, uns com estilo, outros a macaquear sabe-se lá que pequenos demónios aquáticos que, na frescura tépida do Atlântico, encontravam omissas vítimas ou sereias que se esgueiravam sem se deixarem apanhar por aquele esbracejar. Faziam-no incansavelmente e durante o tempo que durou o nosso quase igual devaneio, mergulhando e nadando por ali entre ondas e mar de gente da nossa cor.

Longe estava a Senhora do Mar que só serve a navegantes e não a conjunturais veraneantes. Após o banho de mar, o banho de sol. Silenciosos, todo o tempo, até os corpos se enxugarem e um se atrever a lançar assunto, o que aconteceu: «Rico dia», disse o Alma Redonda, para não ser ele a puxar conversa, mas a incentivar a que um de nós o fizesse. Fê-lo o Alma Séria, interrogando-me: «Rogério, que dizes? Não vamos ter isto em Nharea, mas teremos certamente mais sossego que lá no Norte.» Respondi, lembrando-me do que Minha Alma tinha já dito, repetindo a sua ironia: «Nharea? Terra baptizada por preto, só pode ser feia.» Rimo-nos todos e relembrámos tempos há pouco passados, as deslocações ao Quitexe, as emboscadas por que eles passaram, os medos e as mortes. Alma Redonda atalhou assunto, achando o tema do passado totalmente deslocado do prazer de ali se estar. (...) Estávamos assim nesta cavaqueira, quando da praia um grito e um gesto na direcção do mar fez, para aquele sítio apontado, toda a gente olhar: «Tubarão, tubarão, tubarão!»
Alguns gritos e grande confusão. Confusão no areal e lá no barco emborcado, onde o bando de negros tinha estado a saltar. Toda a gente via, sem bem notar, se barbatanas, se caudas, se dorsos, se tudo isso misturado num numeroso cardume de, fosse o que fosse, o certo era ser de grande volume. Os braços negros, freneticamente nadavam. Os braços brancos, da praia, freneticamente chamavam: «Fujam, fujam para aqui»; «venham, venham»; «nadem, nadem.» E nadavam desesperadamente na direcção do areal de onde os gritos, aflitos, se continuavam a ouvir num espectáculo um tanto desproporcionado com a distância a que ficava o tal cardume. Já o primeiro negro chegara ao areal e ainda estava bem longe da barcaça o primeiro dos supostos tubarões. Correu um ou outro branco a amparar um e outro negro, esgotado pelo esforço. Correu também o Alma Redonda também a socorrer, enquanto se ouvia alguém dizer: «Raça canalha. “Turras” do caraças. Pena os tubarões não os paparem a todos.»

Ainda não estava tudo isto dito, quando os peixões começaram a saltar harmoniosamente. Uns em saltos alongados, outros para o ar, parecendo gozar com o sucedido. Sempre me tinham dito que os golfinhos eram inteligentes, mas nunca me disseram que tinham tão sarcástico sentido de humor e tão elevada eficácia em diligências apaziguadoras:

«Faltam em terra golfinhos para continuarem a tarefa de tão perfeita solidariedade e integração racial», sentenciou Minha Alma com o ar mais sério deste mundo…"