31 março, 2018

A dignidade que dou à Páscoa

 túmulo de Cristo

A dignidade que dou à Pascoa inibe-me de dar e receber coelhinhos e até mesmo de desejar que seja feliz.  Fico-me pelos desejos, sinceros, de Boa Pascoa e, assim, respeito a forma como cada um a sente e celebra. Refiro, com frequência ser ateu sempre com aquela ironia avinagrada que sublinha sê-lo, graças a Deus.

Mas vamos ao que me trouxe:

Quando um homem morre, mesmo que tenha tido projeção por palavras e obras e por isso tenha sido temido pelos poderes da sua época, pode acontecer não ser esquecido e perdure na memória.
Mas se o mesmo homem vier a ser um mártir por proclamar a igualdade e por resistir ao poder, mesmo que Pilatos lave daí as suas mãos, pode acontecer o que veio a acontecer: uma mudança no curso da História, com o fim do esclavagismo e a queda do Império Romano. É essa a dignidade que dou à Páscoa, o que não me inibe de gostar... de amêndoas.

30 março, 2018

Sexta-feira Santa e aquela frase cínica...



Tenho, desde sempre e hoje mais uma vez, assinalado este dia pela parte que a muitos esquece. Mas tal insistência, embora já canse, não desisto dela.Cá vai:
Se Israel condiciona a população de Gaza a visitar Jerusalém durante as comemorações da Páscoa, e até mata, não ligue a nada.
always look on the bright side of life
Se agora, tal como já aconteceu, a NATO está em vias de «melhorar a rapidez e a capacidade letal das forças norte-americanas na Europa» e isso significa ter a guerra à porta, que importa? 
always look on the bright side of life
Se este mês, tal como no passado, recebeu magro salário, e ainda assim vai ser chamado, deixá-lo. 
always look on the bright side of life
Se ontem, tal como no outro dia, soube de gente faminta, siga.
always look on the bright side of life
Se neste ano, tal como no ano passado, centenas de bombas terão rebentado, passe ao lado.
always look on the bright side of life
Se Trump foi eleito e se barimba no Direito Internacional, qual o mal?
always look on the bright side of life
Se há povos que elegem e são governados por não eleitos, que há de errado em tais preceitos?
always look on the bright side of life

Se há milhões de crucificados neste dia...
Diga aquela frase cínica "É a vida"...
... e olhe sempre pelo lado bom que ela tem ainda.

28 março, 2018

A propósito daquele teatrinho... o Eufrázio lembrou-me isto

A SENHORA DA LIMPEZA 

Antes de chegar às galerias identificaram-me com um sorriso.
Subi no magnífico elevador, conduzido por um delicado polícia.
Sentei-me nas galerias e olhei para baixo. Lá estavam os representantes da nação. Os eleitos da república. As palavras cruzadas, as ideias esgrimidas, as bandeiras nas lapelas, os passos perdidos, os aparelhos políticos. Os credos e os farsantes. Desiguais.

Inocente segredei a um jovem cabisbaixo, companheiro de galeria
- Coisa linda esta democracia.

Lá em baixo também estavam os meus, pouco numerosos ainda mas a combater pela maioria que vive nos subúrbios de tudo.
Lá em baixo quase todos esquecidos de subir os olhos para as galerias, tricotavam a verve, gesticulavam poses de verniz.
De quando em vez disparavam blasfémias, partilhavam impropérios para mais tarde se abraçarem à hora do repasto.

Inocente o jovem cabisbaixo, segredou-me
- Comigo um dia isto será diferente.

Terminada a sessão plenária os deputados saíram como estava previsto. O amplo salão ficou vazio, soberbo e solene. De tantas memórias.
O salão ficou vazio mas eu deixei-me ficar até ser convidado a sair pelo mesmo delicado polícia. Foi um dia que resolvi festejar em silêncio.

Procurei um restaurante no belo bairro de São Bento e sentei-me à mesa.
Serviram-me o intragável discurso do primeiro ministro, em diferido.
Os àcidos bem convergiram, mas não foram eficazes para digerir o falacioso paraíso.
Fechei os olhos, abri os olhos e pedi o livro de reclamações, onde escrevi - " O que me serviram está fora do prazo. Quando chega a nossa vez ? "

Levantei-me da mesa sem pagar. Os empregados ficaram a ler o meu protesto.

Lá fora ouvi alguns aplausos mas fiquei na dúvida quanto ao seu voto.

Dei uma volta ao quarteirão e na passagem ainda olhei para a fachada do restaurante, Larguei um viva à República, à liberdade e ao 25 de Abril.
Para meu espanto a porta rangeu. Começou a abrir-se lentamente.

Era a senhora da limpeza.
Eufrázio Filipe, 

27 março, 2018

Teatrinho - encenação de uma obra de ficção (ou talvez não) -II

1º Acto 
Cenário - O palco está às escuras, o pano está levantado e a cena passa-se na sala das sessões do Palácio de São Bento, onde apenas emerge da penumbra a silhueta da República. À frente do hemiciclo, desarrumadas, algumas cadeiras e várias mesas. Ouvem-se as  pancadas conhecidas e o cenário passa a ficar tenuemente iluminado. Entra uma mulher, com passada enérgica. Leva um balde, uma vassoura, uma esfregona e um rodo.  Vai vociferando sem que se perceba uma única palavra até que vai à boca de cena e diz de forma clara. 
Mulher - Esta sala está um horror. Se respeitassem a República faziam como se faz num certo sitio, quando acabassem deixavam tudo arrumado, pois para limpar estaria cá eu. Isto, é, desde que não emporcalhassem tudo. Já não não basta a javardiçe das decisões...
Voz - Disseste falta de respeito? Foi isso?
Mulher - Foi mesmo isso! Mas... quem fala?
Voz - Sou eu, a República!
Mulher - A República? Onde?
Voz - Aqui onde me vês  (um foco ilumina a estátua)
Mulher - Ah!, ingrata. Levas já com a esfregona na cara!
Cai o Pano lentamente, 
enquanto a mulher ensaboa energicamente a estátua

2º Acto
Cenário - Levanta-se o pano, o hemiciclo está deserto, a República jaz ensaboada e nas bancadas dos deputados, do lado esquerdo do hemiciclo e nos lugares do líderes, três focos iluminam um rodo, uma vassoura e uma esfregona. Entra um homem, em passada larga e vem a assobiar uma marcha. Na mão trás uma mala de ferramentas. Chega ao centro e olha para o lado esquerdo.
Homem - Que distração... aquela mulher... olha que preparo!... 
Voz - E já viste o meu estado?
Homem - Quem me fala?
Voz - Sou eu, a República!
Homem - A República, onde?
Voz - Aqui onde me vês  (um foco ilumina a estátua)
Homem - Ah!, ingrata. Com este escopro e este martelo vou-te dar o devido restauro! 
Cai o Pano lentamente, 
enquanto a República sai em fuga. Entra o narrador

Estimado público a República está em fuga (aponta a vassoura), mas volta. 
Não esta, mas outra... por ventura mais limpa (aponta a esfregona) e deixa lá atrás o lixo todo (e aponta, por fim, o rodo!)