"tornaram heróis quem lhes manda arroz à beira do prazo de validade,
quem usa na lapela um broche de caridade."
Foto de Sebastião Salgado
«Foram recentemente assinados 370 novos acordos de cooperação entre o
Estado e as Instituições Particulares de Solidariedade Social (IPSS).
Para o ministro da Segurança Social, Pedro Mota Soares, trata-se de dar
continuidade à construção de um pleno Estado social de parceria.
Percebi que, nesta cerimónia, o Governo anunciou
que vai dar em 2015 mais 14 milhões de euros a estas entidades tão
importantes para o auxílio das populações na prestação de serviços como
apoio domiciliário, gestão de creches e infantários, equipamentos de
apoio a deficientes, apoio a toxicodependentes, entre outros.
Esta
decisão política significa que o Governo tem sensibilidade social? Quer
com esta atitude demonstrar que respeita as IPSS e as considera
verdadeiros parceiros sociais? Com este reforço de verbas estamos a
reforçar o combate à exclusão e à pobreza?
Claro que não. O
Governo transfere competências e atribuições na área da protecção social
para as IPSS porque se trata de uma resposta mais barata, mais precária
e com um menos encargo financeiro para o Estado. Se este Governo
considerasse verdadeiramente as IPSS um parceiro social fundamental,
dignificava as carreiras profissionais e os salários miseráveis da
esmagadora maioria dos seus trabalhadores. Exigia certificação para
estas exercerem determinadas actividades, fiscalizava e tutelava de
forma adequada e eficiente o seu funcionamento, criava em todas elas a
obrigatoriedade de equipas técnicas multidisciplinares, com formação
permanente e avançada, proibia a promiscuidade familiar nos órgãos de
gestão e no quadro de trabalhadores, vigiava os privilégios, regalias e
benefícios de alguns directores destas instituições, que repentinamente
passaram a conduzir carros de alta cilindrada, construíram moradias
residenciais, deram emprego a amigos e familiares e constituíram-se como
plataformas de favores políticos do poder local. Claro que nem todas as
IPSS funcionam assim, mas muitas trabalham neste registo e preenchem
este panorama — não utilizam ferramentas e metodologias de avaliação de
impacto de resultados, não têm o hábito de gerar parcerias nacionais e
internacionais no âmbito de projectos de intervenção comunitária, não
editam manuais de boas práticas, não partilham recursos nem
equipamentos, não protestam nem reivindicam junto do poder político com
medo de perder apoios provenientes de acordos ou protocolos
indispensáveis à sua sobrevivência.
Ajudar as IPSS, sr. ministro,
era desamarrar as instituições desta dependência económica cada vez mais
acentuada, disponibilizando linhas de crédito para suportar, sem juros,
despesas de funcionamento muito pesadas como o gasóleo dos transportes,
a electricidade, os salários e os encargos resultantes da construção ou
a ampliação de instalações.
Transferir para a responsabilidade
das IPSS e para a mão dos privados as funções sociais do Estado é um
crime. Sou radicalmente contra esta decisão política por várias razões:
Primeira:
é anticonstitucional. Diz a Constituição da República no seu artigo 9.º
que são tarefas fundamentais do Estado promover o bem-estar e a
qualidade de vida do povo e a igualdade real entre os portugueses, bem
como a efectivação dos direitos económicos, sociais e culturais.
Estes
direitos são universais e só promovidos pelo Estado é garantida a sua
universalidade. No artigo 63.º do mesmo documento também é referido que
incumbe ao Estado organizar, coordenar e subsidiar um sistema de
Segurança Social unificado e descentralizado.
Segunda: esta
decisão vai destruir o serviço público de acção social e provocar muitos
despedimentos de trabalhadores com vínculo e funções essenciais nos
serviços da Segurança Social.
Terceira: vai degradar a qualidade
das respostas sociais. As classes sociais mais desfavorecidas vão ter de
novamente de ser expostas aos critérios habituais da caridade
tradicional, local e religiosa para serem apoiadas e beneficiarem de
alguns serviços. Do ponto de vista simbólico, tudo se explica — para
pobres qualquer coisa serve e os filhos da burguesia terão sempre vaga
nos prestigiados colégios privados.
Quarta: se o actual Governo de
direita e de inspiração neoliberal quer poupar dinheiro para cumprir as
metas do défice impostas pelos parceiros internacionais, não sacrifique
novamente e de forma cruel os mais vulneráveis. Pode perceber que não
foram os pobres que criaram esta dívida. Pode perceber que esta dívida é
renegociável, pode perceber que pode ir buscar dinheiro com outra
proveniência (cobrar rendas das PPP, taxar as grandes fortunas, combater
a fuga e evasão fiscal).
Quinta: são falsos os argumentos que
defendem que os privados e as IPSS fazem melhor e de forma mais eficaz
este trabalho de protecção social junto das populações. As IPSS estão
mais próximas dos utentes — é falso este argumento. O Estado também está
próximo — os centros de saúde são exemplo desta proximidade, assim como
os serviços descentralizados da Segurança Social. As IPSS são menos
burocráticas — falso. O Estado tem quadros técnicos de qualidade e é
fundamental que os dirigentes técnicos sejam efectivamente os mais
qualificados e assegurem níveis de eficiência e eficácia à máquina do
Estado que lhe atribua maior prestígio, respeito e credibilidade. Os
dirigentes das IPSS nem sempre são qualificados e as suas decisões
sobrepõem-se às dos técnicos que contratam, ficando estes limitados nos
respectivos campos de actuação.
Sexta: os problemas estruturais da
pobreza e da exclusão social não se resolvem com medidas avulsas e
locais. As IPSS são fundamentais neste combate com funções de
colaboração e intervenção complementar mas nunca devem substituir o
papel central do Estado. Promover bem-estar social e elevar a qualidade
de vida dos cidadãos é uma missão de interesse público que não deve ser
adjudicada a terceiros, por mais barato que isso seja. Garantir a
dignidade das pessoas não deve ser um negócio.»
José António Pinto* - Assistente social, no Público de hoje
O autor do texto é conhecido por “Chalana” e em Dezembro de
2013 renunciou a medalha que lhe fora atribuída pelo júri do Prémio Direitos
Humanos constituído no âmbito da Comissão de Assuntos Constitucionais,
Direitos, Liberdades e Garantias da Assembleia da República, medalha de ouro
comemorativa do 50.º aniversário da Declaração Universal dos Direitos do Homem.
São suas estas palavras: “Troco esta medalha por outro modelo de desenvolvimento”. Ver post editado nessa altura