30 outubro, 2011

Homilias dominicais (citando Saramago) - 55

A capa do meu livro* - obra da minha filha mais nova (Andreia Couñago Pereira)

HOMILIA DE HOJE
"A pergunta é duvidosa, não porque sejam duvidosas, uma por uma, as palavras que a compõem, mas porque não se pode saber, exactamente, o que tinha na cabeça o perguntador quando a formulou. Tomá-la à letra, seria demasiado simples: todos contamos histórias. Contam-nas os romancistas, contam-nas os dramaturgos, contam-nas os poetas, contam-nas também aqueles que não são, nem hão-de ser, poetas, dramaturgos ou romancistas. Todo o falar é uma história, as palavras ditas entre o levantar da cama, pela manhã, e o regresso a ela, chegada a noite, incluindo as do sonho, ou as que o sonho descreveriam, representam uma história, contínua ou fragmentada, e podem, como tal e em qualquer momento, ser organizadas em história escrita.p> Mas a pergunta, tal como é feita em francês, e o seria em português também, transporta consigo um outro significado, irónico, talvez pejorativo, que consiste em insinuar que o escritor é um malicioso veiculador de enganos, de ilusões, de falsidades, enfim, de mentiras, para tudo dizer numa só palavra. Isso são histórias, respondemos nós a um interlocutor que, intencionalmente ou não, abusa da nossa credulidade. A diferença, neste caso, está em que o escritor, tudo quanto escreve, escreve-o com intenção, umas vezes clara, outras vezes oculta, óbvia e visível para as necessidades duma história que tem de ser «reconhecida» passo a passo, mas também escondida atrás da imediatidade consciente para que mais profundos possam vir a ser os efeitos de ressonância subsequentes. Digamos, então, que o escritor é um mistificador impenitente e sem desculpa: conta histórias e sabe que as suas histórias não são mais do que isso, umas quantas palavras suspensas em equilíbrio instável, frágeis, assustadas pela vertigem do não-sentido que as empurra, soltas ou organizadas, para o caos dos códigos cuja chave se perdeu.
Mas, não o esqueçamos, assim como as verdades puras não existem, também não existem as puras falsidades. Porque se toda a verdade leva consigo, inevitavelmente, uma parte de falsidade, nenhuma falsidade o é tanto qua não veicule uma parte de verdade. A falsidade contém, portanto, duas verdades: a sua verdade própria («Se eu sou falso e digo que o sou, digo uma verdade»), e a verdade outra de que acaba por ser veículo, voluntário ou involuntário, e leve ela, ou não leve, por sua vez, uma parte de falsidade. Convenho que a clareza, tanto a do pensamento como a da expressão, não abunda no que acabei de escrever, mas a culpa não a tenho eu, a vida é que não é clara.
Se me perguntais, pois, se ando por aí a contar histórias, responderei que sim, que tudo quanto conto são histórias, de umas e das outras, fingimento de verdades, ou verdades do fingimento, mas a história que, em minha opinião, mais deverá importar ao leitor, contra a própria evidência material, não é a que parece ser-lhe proposta na obra escrita. Um livro não é constituído apenas por personagens, situações, peripécias, lances, surpresas, efeitos de estilo, exibições de técnica narrativa, um livro é, sobretudo, o que, nele, puder ser encontrado e identificado com o seu autor. Isto não significa que o leitor tenha de entregar-se a um trabalho de detective ou de geólogo, procurando pistas ou pesquisando camadas tectónicas, ao fim das quais, como um culpado ou uma vítima, ou como um fóssil, estaria o autor. Pelo contrário: o autor está no livro, o autor é todo o livro, mesmo que o livro não seja o autor todo. Não foi para chocar a sociedade do tempo que Flaubert declarou que Madame Bovary era ele próprio. Aliás, pode dizer-se que a afirmação não peca por excesso, mas por defeito: Flaubert foi também o marido e o amante de Ema, foi a casa e a rua, foi a cidade e aqueles quantos, de todas as condições, que nela viviam, pois que a imagem e a compreensão de tudo isso tiveram de passar, inteiras, por um só homem, Gustave Flaubert, o autor. Ema Bovary é Gustave Flaubert porque sem ele seria nada.
Contamos histórias, pois claro. Contamos a nossa própria história, não a da vida, não a história biográfica, mas essa outra que, em nosso próprio nome, dificilmente teríamos a coragem de contar, não por dela nos envergonharmos, mas porque o que há de grande no ser humano é grande de mais para caber em palavras, e aquilo em que somos geralmente pequenos e mesquinhos é a tal ponto quotidiano e comum que não levaria qualquer novidade a esse outro grande e pequeno que é o leitor. Talvez por tudo isto alguns autores, entre os quais me incluo, favoreçam, nas histórias que contam, não a história do que vivem e vêm viver, mas a história da sua própria memória. Somos a memória que temos, e essa é a história que contamos.

José Saramago - "A Pergunta"

* O livro irá na próxima semana para a editora. Estará nas bancas em finais de Novembro

21 comentários:

  1. Antes de mais, parabéns. O esforço traz sempre recompensa e, pelos vistos, a criança já tem data marcada para o nascimento.
    Depois, não posso deixar de citar algumas das palavras (mais mereciam destaque, mas fico-me por estas)da homilia que escolheu: "...e sabe que as suas histórias não são mais do que isso, umas quantas palavras suspensas em equilíbrio instável, frágeis, assustadas pela vertigem do não-sentido que as empurra, soltas ou organizadas, para o caos dos códigos cuja chave se perdeu."
    Ah, a capa, extensão dos afectos familiares, merece louvor.

    Abraço

    ResponderEliminar
  2. Quando lançar o livro, só se me for impossível não estarei lá.

    Gosto da capa, rrss

    Nunca entendi a razão de Flaubert ter tido que responder por Bovary.

    Bom domingo.

    ResponderEliminar
  3. Rogério

    A capa está, quanto a mim, muito boa, apelativa e emotiva.

    Quanto ao lançamento do livro, anuncie aqui com tempo. Professor não pode faltar sem programar tudo e gostaria de estar consigo neste momento tão especial para si.

    Beijo

    ResponderEliminar
  4. Oh! Amei* a capa, é pura emoção, linda!
    Que filha talentosa, eu adoraria estar aí...
    Adoro livros e esse promete, promete!!!
    Ah, mas sou de outras bandas, te admiro muito, sabes.
    Parabéns pelo texto: Saramago(?), acho que sim, não reparei bem.
    Beijos.

    ResponderEliminar
  5. Registei, a capa é fabulosa, a filha tem gosto e talento, já ontem me tinha chamado a atenção desde que a vi na barra lateral e não me esquecerei de procurar o livro em finais de Novembro. Se houver algum segundo lançamento para o norte faz o favor de avisar.
    Palpita-me que estas "Almas que não foram fardadas" têm muito que contar...

    Parabéns e até breve.

    Beijos

    ResponderEliminar
  6. Ah, adorei o que li, o Rogério tem-me levado a gostar de Saramago. Confesso que apesar de Prémio Nobel, nunca foi autor para o qual me inclinei muito. Ignorância minha, falta de tempo, ideias feitas, seja o que fôr, passei por ele e avancei para José Luís Peixoto por exemplo e outros mais novos.

    Estou a aprender consigo a gostar e a ter tempo...

    Beijos

    ResponderEliminar
  7. Parabéns, Rogério!
    Estarei atenta às livrarias, entretanto espero saber da data do lançamento.

    Um abraço.


    (e se me permites...)

    Brancamar

    Lê o 'Letanvado do chão', de Saramago. Depois diz-me se não gostaste...

    Beijinho

    ResponderEliminar
  8. Salve o Escritor!
    Salve sua Obra!
    Nasceu o Livro!
    Capa linda! Parabéns ao pai e à filha.
    Muitos bjs e festejos!
    Viva o retorno do Amigo, após a árdua e aprazível tarefa cumprida!
    Um grande e público bj

    ResponderEliminar
  9. " Somos a memória que temos, e essa é a história que contamos."
    E... só assim faz sentido!

    Felicito-o. Não tenho a menor dúvida de que o livro terá uma boa recepção entre aqueles que gostam de ler e de saber.
    Quanto à capa... Está magnifica! "Fala" do conteúdo, com clareza e delicadeza.

    Parabéns à filha que revela um apurado sentido estético.

    Um beijo aos dois

    ResponderEliminar
  10. Amigo Rogério, depois avisa-nos, sim?
    A capa está óptima!
    Vou querer um volume para mim e autografado, pode ser?
    Depois diga-nos a maneira mais correcta, de adquirir o livro. :)

    ResponderEliminar
  11. Rogério querido,

    Parabéns a você pelo livro que precisa da capa e parabéns à Andrea: belo trabalho!
    Aguardo com alegria antecipada seu livro.
    O texto de hoje me lembrou A Louca da casa de Rosa Montero, em que, magistralmente, fala da criação literária misturada com vida.
    Girassóis nos seus dias. Beijos.

    ResponderEliminar
  12. Caro Rogério
    Mais um execelente excerto de uma das obras de Saramago (creio que não de trata de um livro) mas de facto uma obra não tem que ser própriamente um livro.
    Quanto à obra, a outra propriamente dita, não diz nada sobre a data e o local de lançamento. Espero que nos avise.
    Abraço

    ResponderEliminar
  13. parabens, a capa esta fantastica, adoro a foto e a historia que conta

    o que e a nossa vida senao uma criação nossa?

    Bjinhos
    Paula

    ResponderEliminar
  14. Somos a memória que temos, e essa é a história que contamos."

    O melhor de Saramago.

    ResponderEliminar
  15. Obrigada, Rogério.

    Profundamente sensibilizada!

    Beijo

    ResponderEliminar
  16. Claro que pode Rogério!
    Como não iria aprovar uma decisão sua que tanto me privilegia e honra?
    Com este nó na garganta e fortemente comovida, apenas lhe posso dizer: Muito Obrigada Amigo Rogério!
    A capa do livro está um primor.
    Parabéns à filha mais nova.
    Beijinhos.
    Janita

    ResponderEliminar
  17. Parece - tal filha tal pai

    Meu caro aguardo datas
    para assistir ao parto

    Abraço amigo

    ResponderEliminar
  18. Família de artistas, portanto!
    Bolas! Parabéns! Muito bonita a capa. E forte!

    Beijinhos. Também para a filha, claro!

    ResponderEliminar
  19. Meu amigo, o lançamento do seu livro será uma boa altura para reunir todos os seus amigos,vou tentar não faltar.
    A capa foi feita com um carinho que comove, linda!!!

    beijinhos

    ResponderEliminar
  20. Caro Rogério

    Parabéns pela forma com arrumou as suas memórias, transformando aquela comissão, com alguma habilidade, numa espécie de cento e cinquenta pequenos contos que acabam por ser um bom testemunho histórico, digno de registo para as memórias futuras daquela guerra. Parabéns pela sensibilidade da pessoa que elas revelam.
    Nós somos um povo com lacunas mas também um povo maravilhoso, e não posso deixar de referir esta passagem que revela bem disso: “Todos ficámos também emocionados, tínhamos estado dois anos a fazer uma guerra sem que se nos desenhasse no peito o ódio àquela terra. Nem às terras nem às gentes. (…)”

    Saudações.

    ResponderEliminar