14 fevereiro, 2012

Dia dos Namorados, com gestos não tabelados...

Ela acordou com um acordar dentro de um número par. Ele já tinha saído sem o beijo 29 e ela reagiu com o encolher de ombros 32, da tabela dos afectos. Apurou-se no trajar 112 a condizer com o dia, tomou o pequeno almoço do menu, o 9 habitual. Saiu. No emprego, o mesmo desvelo nas tarefas 6, 12, 28 e 42 e também nos procedimentos depois. Na pausa para o almoço, fez as compras da tabela do dia festivo, e comeu a correr. A tarde, como a manhã, as mesmas tarefas, mas por ordem inversa. Há hora regulamentar, saiu. E a correr, sempre a correr, comprou-lhe a prenda 79 do catálogo das ofertas. Em casa, pôs a mesa, as velas, as flores e foi preparar o jantar com a receita 108, que já antes fizera e ele tanto gostara. A mesa estava bela e foi experimentar as luzes e a música a tocar, regulando o som à altura do falar. Findo tudo, esperou... estava na hora que o catálogo do tempo indicava para o seu chegar.


Ouviu-lhe os passos. A chave a rodar. Levantou-se, segundo o gesto 52 da rotina das chegadas. A porta se abriu, mas ele não entrou. Com os olhos pousados no chão, disse: "Anda, vamos ali, temos que falar". Sem pensar em nada, atordoada, saiu como estava. No percurso que ensaiavam para algures, junto ao mar, ele lhe contou a conversa tida com o encarregado e da incerteza quanto à indemnização. Depois não mais falaram. Sentaram-se no paredão com o olhar a se suicidar no mar. Deram-se as mãos, numa ternura de gestos, pela primeira vez sem numeração no catálogo dos afectos... 

25 comentários:

  1. Muito belo e original.

    Parabéns

    Um abraço

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  2. O imprevisto a trocar-lhe as voltas dos números dos afectos...
    Gostei. Afinal não há presente nem comida nem velas nem música que sejam mais doces que um dar de mãos...

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  3. E foram felizes pela primeira vez...
    Um bj querido amigo

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  4. Caro Rogério
    Sabe, enquanto ia lendo imaginava um ser humano transformado em robot com todos os gestos préviamente programados. A parte final é dum realismo impressionante.
    Há sempre um momento na vida em que "há tempo tambem para amar".
    Um abraço sensibilizado.
    Rodrigo

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  5. Penso que a sua ironia, num texto primorosamente bem escrito, veio ao de cima, se não fosse trágica a situação de tantos casais que vivem sem se esquecerem que devem namorar todos os dias.

    Beijo

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  6. Este é um texto que faz mesmo kudikular a alma!
    Escreve-se bem aqui, com um toque de Eça, o que melhor se sente.
    Na ternura dos gestos que não negoceia afectos...

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  7. Se não fosse quase trágico, seria lindo.
    Gostei muito da forma como revelas as tristes rotinas que enfeitam os nossos dias, a excepção é obviamente o seu despedimento.

    Beijo e feliz dia dos namorados.
    Felizmente tu ainda tens uma amante, a tua Teresa ...
    Enche-a de beijos, hoje e sempre ;)

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  8. Que Dia dos Namorados mais inusitado.

    Não fora a beleza do texto a que já nos habituaste e seria muito mais dramático. Felizmente o amor aconchega o coração e, havendo cumplicidade, tudo se resolverá, né amigo?

    Feliz dia com a tua Namorada

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  9. Excelente texto e, ademais, tristemente actual.


    Bom namoro para si e para a Teresa, rrss

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  10. Acho de devia também escrever um romance... com certeza não perderia por nada tão belas palavras, que me parece, saber junta las tão fácil e espontaneamente. A bela poesia corre lhe nas veias e ainda bem que sou uma sortuda por poder conhece la.
    Feliz São Valentim

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  11. Belíssimo texto! Às vezes é nos momentos difíceis da vida, que mais se sente o âmago da mesma e é sempre no amor que se encontra o essencial dos dias.

    Beijos Rogério e dias felizes para si e para a sua Teresa, assim vividos a pensar nos outros, como aqui.

    Branca

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  12. gostei muito. original e muito bem escrito.

    abraços

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  13. Muito original. Muito atual, infelizmente. Refiro-me à tabela dos movimentos, claro... Quanto ao desenlace... infelizmente já passei por ele mais do que uma vez. E não tinha tabela de comportamentos...
    Já passou!

    Happy Valentine's Day!

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  14. Relato muito criativo e original na forma de olhar o mundo e as relações que se atam e desatam com dias e gestos marcados...


    (A felicidade de ter um companheiro - amante - marido de longa data)

    Beijocas

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  15. Um conto com muitos contos dentro, infelizmente cada dia mais actual. Pessoalmente irrita-me esta moda importada do S. Valentim.

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  16. Que coisa coisa mais linda!

    Até na vida robotizada, há um momento de dar as mãos e sentir o prazer de desfrutar o enlevo dos afectos, sem tabelas nem padrões.
    Assim se cimentam as relações.
    Lindo!
    Parabéns aos dois namorados, amantes, amigos.

    Beijinhos

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  17. A espelhar, tão bem, um outro cenário para o dia, este em que o catálogo diz que é especial e diferente de todos os outros. Um cenário, infelizmente, bem mais real na finalização deste dia, que dizem ser especial.

    Um beijinho, Rogério

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  18. Excelente. È essa rotina que acaba com um amor. Cada dia deve ser diferente e ter uma beleza única. Consegue-se naturalmente. Há quase 8 anos que os meus dias são diferentes e cheios de boas recordações. Continuamos a namorar todos os dias. Beijinhos

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  19. Li o teu "post" e, a seguir, peguei no "Correio da Manhã",eletrónico já se vê, e apercebi-me que o PR vai iniciar umas palestras, "Roteiros para o futuro", ali para os lados de Cascais. Ele anda muito preocupado com a taxa de natalidade dos Portugueses e quer incentivar as pessoas. Cumpre-me dizer que já fiz a minha obrigação: os meus dois filhos têm mais de quarenta anos. E quanto a fazer mais, adeus minhas encomendas, estou com setenta e dois anos...
    Contudo interrogo-me em relação a gente mais nova. Com o prolongamento dos horários de trabalho, a redução do tempo de férias,semanais ou anuais, a redução dos salários, os despedimentos, pior ainda se não há indemnizações,eu pergunto-me onde irá parar aquele "score" luso, ultimamente muito badalado, das "duas vezes por semana", agravado por todas as troikadas possíveis e imagináveis e ao que parece inesgotáveis.
    É lindo dar as mãos ao fim do dia, mesmo quando as perspectivas são negativas, como o "post" refere.
    Com alguma imodéstia disse que já tinha feito a minha obrigação. Mas pergunto-me se o PR estará a fazer a dele.
    Um abraço,Rogério.
    Jaime

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  20. Excelente o teu texto

    Até o s. Valentim iria apreciar
    Abraço

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  21. ...e, infelizmente, estamos mais que tabelados só que a maioria nem se apercebe disso, todo o sistema está criado e preparado para nos transformar em máquinas bem oleadinhas ;)


    Bjos

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  22. Meu amigo:
    Esta a realidade de tantos casais a quem a perspectiva de um futuro lhes está vedada.
    Resta a mão na mão e o olhar a se suicidar no mar.
    Lindo e veradeiro demais este seu texto que a mim tanto diz.


    beijinhos

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  23. ...resta apenas o mar, as mãos nas mãos...

    Lindo texto Rogério.
    beijinhos
    cvb

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