Resumo do conto (publicado no ano passado):
É um conto que escrevi não como divertimento mas como um aviso. Muitos
dirão que pinto o futuro de muito negro e que tal é impossível. Mas... o
impossível é tão só e apenas aquilo que ainda não aconteceu. Por outro
lado, haverá a tranquilidade de pensar que ainda faltam muitos anos para
2090 chegar.
Tudo se passa em 2090. As personagens, Bruna e Miguel, são um jovem casal. Ela gere um micro-oficio que administra dois deprimidos: Miguel entrega-se à mesma actividade mas a sua dimensão é já de maior responsabilidade pois emprega 26 deprimidos com diferentes escalões. Cumprem um horário generoso de 20 horas semanais o que lhes permite usufruir todos os benefícios de uma sociedade avançada, onde avanços tecnológicos inimagináveis reduziram ao mínimo o esforço humano e também a necessidade de trabalho. Este é assegurado por uma imensa prol de deprimidos, agrupados por diversos níveis de depressão. O primeiro nível é de elevada aptidão e competência, o nível 5 corresponde ao deprimido inútil que é segregado dada a falta de préstimo. O conto inicia-se com os primeiros sintomas de Bruna e o anúncio de uma quase certa gravidez.
Contudo Lisboa hoje abriu-se ao futuro, e tudo pode acontecer...
Miguel não estava atrasado. Tinha todo o tempo se o soubesse bem
planear. Pegou no seu TelLog e verificou onde se situava a maior fila
de espera, se no supermercado se nos postos de carregamento ali à volta.
Tinha o seu veículo eléctrico com pouca carga e as tomadas existentes
no condomínio não lhe mereciam confiança...
Enquanto bebia uma chávena de leite morno, programou-se, iria primeiro
ao posto de carregamento 48, tinha aí disponibilidade dentro de meia
hora. Reservou 15 minutos de carga. Reservou também uma maço de cigarros
e um café, no quiosque local.
Enquanto bebia o leite, olhava a praceta deserta e em redor, nos prédios
à volta, ninguém se assomava à janela. Um preocupação lhe tomou por
momentos os pensamentos "E se o bairro atingir o nível limite de
habitantes deprimidos?" Já acontecera em outros bairros e, nesses
lugares, todos os dispositivos de domótica
integrada foram desligados e todos os serviços públicos, desde a
recolha de resíduos sólidos à entrega de encomendas, passaram a ter os drones desactivados (aos deprimidos era vedado o acesso aos avanços da tecnologia).
Voltou ao quarto e espreitou Bruna, que dormia. Olho-a enlevado, depois
saiu, sem a acordar. Deixou-lhe uma mensagem no seu TelCom "Já venho.
Bj."
À saída da porta, dispensou o uso da manga telescópica e da passadeira
rolante que o poderia levar ao carro. Estava um dia soalheiro,
apetecia-lhe andar um pouco e ainda tinha presente o que há tempos
acontecera ao ficar encarcerado na manga umas horas pois o deprimido
encarregue da reparação da avaria tinha entrado em depressão elevada e
levou tempo a encontrar um substituto.
Chegado ao posto accionou a encomenda, encostando o seu TelLog ao sensor
e, de pronto, um braço robotizado pegou no cabo enquanto o outro braço
dava acesso ao ponto de carregamento. Verificou no visor se a encomenda
correspondia ao encomendado e premiu a tecla "OK".
Dirigiu-se ao quiosque encostou o seu TelLog à célula local e
respondeu-lhe ao gesto uma voz metálica "Recolha os seus cigarros e o
seu
café. Obrigada por dar preferência ao nosso posto"
No supermercado, apenas uma contrariedade: a reposição da prateleira
2453 não tinha funcionado pelo que o artigo pedido não estava
disponível. O deprimido que tinha essa missão entrou em elevada
depressão, como lhe informava o visor.
Anulou esse item na encomenda e o carro robotizado percorreu o
supermercado abastecendo um a um todos os itens da encomenda. Após
conferir, premiu a tecla "OK" no TelLog, e a tal voz metálica lhe
agradeceu, com "Volte sempre!" perguntando de seguida "Pretende entrega
via drone?" Negou clicando na tecla adequada, pegou no saco e saiu.
A caminho, o TelCom anunciaria no modo alta voz.
"Últimas noticias: o INFARMED acaba de licenciar medicamento que permite prolongar o estado de depressão dos níveis 1 e 2, passando estes indivíduos a terem uma vida útil de cerca de 20 anos"
"Boa!" pensou Miguel. Chegado a casa encontrou Bruna já levantada mas muito pálida.
- "Que tens?"- "Passei a manhã a vomitar. Sabes? Acho que estou grávida!" Miguel ficou radiante. Era a segunda boa notícia do dia. Beijo-a com ternura e afagou-lhe o ventre.
Ela, correspondeu àquele beijo com a mesma intensidade com que se sentia
beijada. Há muito que o Miguel não o fazia. Depois sentaram-se na
cozinha, evitando a sala espelhada, onde em tempos, para simular estarem
acompanhados a semearam de espelhos e se sentiam compensados das ruas
vazias, olhando os seus reflexos.
Naquele momento queriam mesmo sentirem-se na intimidade. A gravidez de Bruna, que depois viria a ser confirmada, levava ambos a sentir essa necessidade. Falaram de projectos futuros, de como a vida iria mudar com um novo ser, da necessidade de se programarem de modo diferente, de como teriam de alterar a forma de gerir seus ofícios. "Podemos passar a gerir no modo virtual, os TelOficios estão em saldo e podemos configurar o software de forma a controlarmos o teu e o meu", sugeriu Miguel.
Naquele momento queriam mesmo sentirem-se na intimidade. A gravidez de Bruna, que depois viria a ser confirmada, levava ambos a sentir essa necessidade. Falaram de projectos futuros, de como a vida iria mudar com um novo ser, da necessidade de se programarem de modo diferente, de como teriam de alterar a forma de gerir seus ofícios. "Podemos passar a gerir no modo virtual, os TelOficios estão em saldo e podemos configurar o software de forma a controlarmos o teu e o meu", sugeriu Miguel.
Bruna reagiu em lamento, comentando a insegurança de ter a actividade do
seu Oficio suportada apenas por dois deprimidos com o nível 2 de
depressão e à beira do previsto "fim do período de vida útil" pelo que a
sua entrada no nível de depressão seguinte requereria mais apoio
presencial. Miguel tranquilizou-lhe a ânsia. E lembrou-lhe a notícia do
medicamento INFARMED. "Se começarem o tratamento nos dias mais próximos
terão a capacidade actual por mais 10 anos e, nessa altura, já a nossa
criança terá mais autonomia" argumentou Miguel. Bruna, convencida,
aceitou que fizessem a encomenda do aparelho naquele instante.
Ele fê-lo através do TelLog, exclamando "boa, a entrega será imediata!" e
de seguida fizeram a encomenda do anunciado tratamento no sítio da
farmácia virtual...
Passados 15 minutos, o quadro monitor da demótica do condomínio
assinalava uma entrega proveniente do drone 327 e que este aguardava o
aviso de recepção. Miguel, clicou "OK" no TelLog. Bruna foi buscar o
aparelho e em gesto apressado libertou-o da embalagem. Olhando o
aparelho era, na aparência, igual aos dois outros apenas se diferenciado
pela cor. O TelLog era azul, o TelCom amarelo e aquele era vermelho.
"Configuramos já?" perguntou Bruna antecipando a resposta ligando o
pequeno portátil.
Entrou no menú geral e clicou em "registe-se"
Inseriu os dados do seu Oficio, identificação fiscal, número de
deprimidos no activo, nível de depressão e número do Cartão de Cidadão
(neste campo, havia uma nota, "o chip do CC assegura a rastreabilidade
dos inputs). Parou.
- "Miguel, o que significa isto?"
- "Acho que cada função a controlar tem por base a identificação da pessoa a controlar, deve ser isso!"
Bruna continuou para o menú das funcionalidades, passando o aparelho a
apresentar uma tela com várias linhas em frente às quais tinha um espaço
um apor um pisco:
- - relógio de ponto - v
- - atraso tolerado - v
- - localizações fora do Oficio (integra GPS) - deixou em branco
- - localizações dentro do Oficio (integra planta do edifício) - v
- - Lista de Tempos por Tarefa (integra Plano de Trabalho) - v
- - Tolerância para tempos despendidos fora do Plano - deixou em branco
De seguida clicou "em passar à tela seguinte" e apareceu o alerta "o campo 6 é obrigatório" e Bruna volta a inquirir Miguel:
- "Porquê este campo obrigatório?"
- "Acho que se não preencheres esse campo deixas de poderes receber
alertas sobre os riscos de incumprimento do Plano de Trabalho, deve ser
isso!"
Bruna fica a pensar e depois exclama:
-"Ah, pois é!, agora me lembro quando estivemos a configurar no outro
micro-portátil as encomendas a lançar nos supermercados, havia algo
assim semelhante... até tinha um alerta sobre os riscos de mantermos
conversa com os os deprimidos locais para além de um certo tempo...
avisava que colocava em risco o completar-se a encomenda... lembras-te?"
Dizendo isto, foi ao campo 6 colocar o pisco.
E continuou a introduzir os dados. Após validar toda a configuração, pediu ao Miguel se podiam passar para a sala de espelhos.
"Sabes?, preciso de ver gente!"
Nesse preciso momento recebia no TelCom, pela função alta voz, a seguinte mensagem:
«Última hora. Feitos hoje os testes em carga sobre a nova fábrica de montagens de automóveis da Wolkswagen. Com as novas tecnologias de automação, todas as operações foram robotizadas bastando um único deprimido, com a qualificação de 1º nível de depressão, para assegurar o seu funcionamento. A CIP já comunicou ao Governo o Programa de recolocação dos 250 deprimidos que passam ao quadro de excedentários prevendo-se que, desses, 20% possam ser integrados em Ofícios de manutenção.»
PARTE II - 25 ANOS MAIS TARDE
Ia fazer no dia seguinte 25 anos. E na sala, que já tinha sido de
espelhos, relembrava o que aquela sala o fazia lembrar. Tinha ideia de
ali ter gatinhado, de ali ter aprendido a andar, de ali ter dito a
primeira palavra (embora não se recordasse qual, admitia ter sido a
palavra "mãe"), de ali ter assistido ao ar feliz do pai dizendo-lhe
ainda criança "olha a mãe tem uma depressão benigna, tem assegurada
cura".
Nessa altura nem conhecia todas as palavras que seu pai empregara, mas o rosto e o tom com que o dissera, faziam-lhe adivinhar que as noticias sobre a mãe eram boas. E foram, sua mãe Bruna regressara a casa, curada sem riscos de ser qualificada como deprimida. E foi nesse mesmo dia que a sala de espelhos deixou de fazer sentido. Dia após dia, serão a seguir a serão, a sala era onde a família se reunia. Nunca mais foi necessário simular que havia gente, para além da gente que ali havia. Eram só três, mas a sala passou a estar cheia.
Nessa altura nem conhecia todas as palavras que seu pai empregara, mas o rosto e o tom com que o dissera, faziam-lhe adivinhar que as noticias sobre a mãe eram boas. E foram, sua mãe Bruna regressara a casa, curada sem riscos de ser qualificada como deprimida. E foi nesse mesmo dia que a sala de espelhos deixou de fazer sentido. Dia após dia, serão a seguir a serão, a sala era onde a família se reunia. Nunca mais foi necessário simular que havia gente, para além da gente que ali havia. Eram só três, mas a sala passou a estar cheia.
Fazendo esse retorno ao passado, ocorreu-lhe que o passado é mais que a
memória que cada um guarda. Animado de um propósito subiu a escada.
Tinha de descobrir quem seus pais seriam e qual seria o passado dos
deprimidos. No sótão estaria a resposta. E procurou-a. Havia lá de tudo o
que ficara fora de uso. A um canto, jazia tecnologia antiga,
aparelhagem diversa e descontinuada. Tralha. Pegou naquilo que em
aspecto mais se aproximava dos Tels em uso. Tentou ligar, mas não
acontecia nada. Aturadamente foi tentando até que se ligou. Cedo
percebeu que nem por ser coisa antiga lhe seria vedado o acesso.
Raciocinou que os sucessivos up grades das actuais redes mantinham a lógica da primitiva que lhe dera origem. Foi insistindo, experimentando hipóteses... E, a dada altura, "Bingo!" exclamou para consigo.
Raciocinou que os sucessivos up grades das actuais redes mantinham a lógica da primitiva que lhe dera origem. Foi insistindo, experimentando hipóteses... E, a dada altura, "Bingo!" exclamou para consigo.
Ao entrar, a primeira imagem era enigmática, tinha o que lhe parecia ser
um barco e uma frase "Nada é definitivo num naufrágio, havemos de
corrigir o rumo errado!" Que quereria aquilo dizer? Fez outras
tentativas para encontrar a resposta e de cada vez que tentava mais
perplexo ficava. Poema? O que seria um poema?
Leu e releu, e começou-se a fazer na sua mente alguma luz... e uma
pista: aquele nome, igual ao seu. Quem seria ele? Anotou a data,
Dezembro de 2012. Foi há 100 anos. Ia a progredir na pesquisa, quando
sua mãe o chamou:
- "Rogério, tens o jantar na mesa, daqui a nada está tudo frio, filho!"
E desceu a correr.
No outro dia, e no outro, e no outro, muitos a fio, não descolou do propósito. Passado meses quase tinha a certeza de quem era (seria neto de um dos netos deles) mas não tinha qualquer dúvida de que a classe dos deprimidos era originária dos precários do século passado. A luta dos precários de então
tinha-se gorado e a sociedade tinha mudado. Meteu-se-lhe então na
cabeça um desafio: "Porque não regressar à luta? Porque não fazer
renascer a esperança?" E voltou a ler o poema. Nunca tinha lido um poema assim, na verdade, nunca tinha lido nenhum poema na vida.
Passaram meses sobre a descoberta e a decisão de iniciar uma
investigação. Para a investigação que tinha enveredado, faltava-lhe
encontrar o algoritmo que conseguisse desligar cada chip de cada
deprimido de forma a que este não fosse controlado sem que o sistema de
controlo e os planos de trabalho fossem dar o alarme aos ofícios onde o
deprimido estava alocado. Resolvido e testado o algoritmo iniciaria o
plano.
Passaram meses sobre o teste do algoritmo, sobre o sucesso do teste e
sobre o inicio do plano. Na sala, que antes tinha sido de espelhos, 397
rostos aguardavam poder contribuir para o que se fosse seguir: como
desactivar todos os sistemas: da logística à domótica, dos tempos de
controlo aos chips dos controlados, do accionamento dos drones à
recepção de encomendas, dos braços robotizados a todos os "OKs"
programados.
Consensualizado o plano, cada um foi para o seu lado, munido de uma tarefa, clara, precisa.
Consensualizado o plano, cada um foi para o seu lado, munido de uma tarefa, clara, precisa.
A data combinada? 25 de Abril!
A senha? "Conversa Avinagrada"!
Lembro-me tão bem deste teu conto, Rogério... a ver vamos! Parece-me impossível que um bule de porcelana chinesa orbite em torno de Júpiter, no entanto, não posso provar que ele por lá não ande. (Que o Dawkins me perdoe; já não estou muito segura de que a porcelana seja chinesa e de que o planeta seja mesmo Júpiter...)
ResponderEliminarAbraço!
Maria João
Curiosamente, estive a ler hoje uma entrevista a António Damásio que "toca" esta questão, aqui: https://www.publico.pt/2017/11/05/ciencia/entrevista/antonio-damasio-1791116. Vale a pena.
ResponderEliminarLídia
Li e gostei muitíssimo,Lídia!
EliminarNão acredito em pássaros de corda
ResponderEliminarIsto lembra-me um livro chamado «Sonham os andróides com ovelhas eléctricas?». Sobretudo a parte dos espelhos. Faltando nessa obra o lado de que é possível transformar a sociedade... para melhor. Lembra-me tal livro, pela ausência de estímulos "naturais" que evite as pessoas não entrarem em descompensação emocional. Um dos temas centrais era a empatia, a dificuldade de se sentir empatia...
ResponderEliminarÉ uma ideia que merecia desenvolvimento em algo maior... é um tema real, actual.
ResponderEliminarGostei muito, um cenário bem estruturado, um fio condutor e venha daí essa luta, o ser humano é um resistente.
Abraço