29 janeiro, 2022

MAS ONDE ESTÃO AS PESSOAS TODAS DA MINHA RUA?

Não me peguem no braço!
Não gosto que me peguem no braço. Quero ser sozinho.
Já disse que sou sozinho!
Ah, que maçada quererem que eu seja de companhia!

Álvaro de Campos
LISBON REVISITED (1923)


Até há pouco era bom ser sozinho.
Mesmo não sendo sozinho
saber como fazer para ser sozinho:
um recanto qualquer onde a luz não magoasse,
uma música miúda para encostar a cabeça,
um bloco de notas, um lápis…

Quando escrevo, esqueço-me
mesmo que pela lembrança,
seja o esquecimento.
Não há como chegar inteiro ao presente
Sem calcorrear o passado.

O pior de tudo agora é
saber como ir ao Futuro.
Mas… havemos de ir ao futuro,
assim nos garante Filipa Leal, num poema,
e eu acredito. Eu acredito.

Todavia acontece que nesta primavera
sem marços, sem nardos
as palavras massacram-me, molestam-me
e as leituras ardem-me nos olhos
como lágrimas artificiais às quais
faço sérias alergia.

E de repente,
gostava que me pegassem no braço,
de pegar noutro braço
e outros braços se dessem
e, por um dia que fosse,
sermos muitos os “da companhia”.

O que eu mais queria,
nesta primavera sem marços nem nardos,
era abraçar as pessoas todas da minha rua.

[Mas onde estão as pessoas todas
da minha rua que as não oiço,
que as não sinto?]

Lídia Borges

_________________
Fui à "Seara" roubar este poema. Vou dizê-lo à janela. E no final, em tom gritado, vou desafiar as pessoas do meu bairro. Todos me ouvirão? Julgo que não. Vivemos num mundo surdo e mudo. Ainda sem abraços



20 comentários:

  1. Um poema de superior qualidade literária. Uma publicação bem conseguida.

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    1. O que me move
      e me comove
      não é a arte
      mas as emoções
      que promove

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  2. Lídia Borges sabe expressar-se!! Há muito que não a visito.

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  3. Eu sintonizo absolutamente com o Álvaro de Campos, pois também eu, não gosto que me peguem no braço. Quero ser sozinha.
    O POEMA de Lídia Borges é de grande qualidade poética e literária.
    O “roubo” só merece elogios.

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    1. Mais só que mal acompanhado
      arredadas as más companhias
      as que me cercam me dão o braço
      desejo as boas, todas, todas
      do ao meu lado

      E sinto-as

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  4. Concordo mais com a Poetisa do que com o heterónimo de Pessoa.

    Ser sozinho sem o ser
    é estarmos sós quando queremos.

    É melhor ser de companhia, do que querer ter companhia e ser sozinho.

    Gosto muito da forma prática e, simultâneamente, sensível de encarar o mundo da Poesia, como o faz Lídia Borges.

    Um furto desses não é crime, nem tem pena prevista pela lei.

    ADOREI! :)

    Um abraço.

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    1. "É melhor ser de companhia, do que querer ter companhia e ser sozinho."

      Isso!

      Abraço

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  5. Leio a Lídia sempre que consigo entrar no computador sem ser para descansar os olhos e ouvir uma musiqueta ou "ver" uma série que já vi seis ou sete vezes, mas confesso que nunca esteve nos meus planos ser uma pessoa "de companhia", tal como nunca me passou pela cabeça escrever "poemas de companhia" :)

    Muitas das pessoas da minha rua estão em confinamento, segundo ouvi dizer num dos raríssimos dias em que arranjei forças para caminhar dez metros até ao café da esquina. Espero que vão votar mais logo, entre as 18 e as 19h. Eu, dependente sem ser "de companhia" - porque peso - irei votar assim que o MR vier com a velha cadeira de rodas.

    Forte abraço!

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    1. Bastava saber que contámos com o teu voto
      para continuar a lutar pelo que sempre tenho lutado

      Forte abraço

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  6. Ser da "companhia" pode querer dizer, apenas, sermos um Todo interessado, preocupado e empenhado para que a nossa Historia coletiva siga o seu rumo pelos caminhos do Humanismo, que é o mesmo que dizer, por caminhos onde todos tenham as condições essenciais para uma vida digna.
    Eu já votei. E verifiquei que as pessoas da minha rua estão hoje mais "activas". Fiquei contente.

    Um abraço,

    Lídia

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    1. Gosto muito de ser "da companhia", não "de companhia", Lídia. Reparei na diferença :)

      Um abraço!

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    2. Confirmo, hoje
      que as gentes do meu bairro
      estão conforme o Mundo
      que se queda
      surdo
      e mudo

      Fiquei triste
      mas nada
      me pára

      Beijos às duas

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  7. Há um tempo para tudo, tempo de estar só e tempo de dar as mãos!

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  8. Que grandes verdades!
    Uma edição e escolhas muito boas para o dia que vivemos!
    Abraço amigo.

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  9. [E de repente,
    gostava que me pegassem no braço,
    de pegar noutro braço
    e outros braços se dessem
    e, por um dia que fosse,
    sermos muitos os “da companhia”]
    Está tudo nesta estrofe, é pena que muitos nos tentem desviar do rumo certo, com amanhãs que cantam. Por mim não falhei à chamada e lá depositei o meu voto.
    Um abraço

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    1. Força, amigo!
      E não são apenas derrotas
      que nos derrotam

      Abraço

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