Já lá vai tempo, a propósito de uma bela frase de Sophia, contava eu que «Poucos anos depois de minha mãe ter deixado de ser uma das meninas da
"loja nova" de Ermidas/Sado e de meu pai ter desistido de ser o rapaz da
camioneta verde, que era fretado para tudo o que era transporte de
carga, eu nascia e de pronto vínhamos para Lisboa, à procura de nosso
destino. E porque o destino foi uma eterna procura dentro dos limites
que o poder de então detinha, fomos andando de casa em casa e meu pai de
emprego em emprego. Foram anos que não sei contar a não ser pelo que
minha mãe cantava. Era de Amália o seu lamento. Se eu gostava? Pode-se lá gostar desse viver, desse cantar... »
Hoje acrescento, que naqueles tempos a vida, não sendo pera-doce, era uma vida onde a tristeza ficava à porta de entrada e cada um, na família, vivia sem conflitos de consciência e de bem com ela e com os outros.
A foto acima, retrata meu pai, taxista em praça fixa mas que ia cirandado pelas ruas todas de Lisboa, é de 1952. Tem um ar prazenteiro, junto ao seu "matateu", que em boa verdade era um carro há pouco adquirido a alguém que saíra do negocio e comprado em sociedade com um meu tio. Meio por meio o valor do carro e da respectiva licença.
Três recordações desse tempo:
- teria eu 9 anos de idade, meu pai exercitava-me os conhecimentos de aritmética e ao mesmo tempo levava-me a consciência do magro salário. O exercício passava por eu calcular, a partir da sua folha diária com registos do taxímetro, pelo valor da bandeirada, quanto lhe tinha entrado em caixa. Depois, colocava em cima da mesa, o dinheiro para ser contado. Ele o fazia. Retirava, ao todo, o assim calculado e o que estava a mais correspondia às gratificações (gorjetas) recebidas. Um dia disse-me, hoje contas tu. Contei e ele nem conferiu. Nesse dia senti-me responsável pelas finanças do lar...Recordo tudo isto e tenho a certeza, meu pai estaria lá! Não sei se na primeira hora se na resposta ao apelo...
- em idade adolescente, meu pai que chegava sempre tarde e sistematicamente ia ao meu quarto para me ver deitado, naquela noite deu com meu leito vazio. Seriam, sei lá, talvez duas da manhã. Esperou-me. Mal dei a volta à chave a porta abriu-se sem que eu tenha feito o gesto final para franquear a entrada. Não deu sermão nem seca. Disse apenas (não garanto se por estas palavras): "Filho, nem imaginas o tempo que se por aí se perde. Espero que possas perder um minuto por um sorriso, dois por uma conversa que não vai dar a nada, três para ouvir coisas vazias de sentido. Mais que isso, é contigo. O tempo que tens para mudar o mundo não é muito. Não percas, mais do que te recomendo, um só minuto. Nessa noite tive uma insónia boa. Dura até hoje.
- já jovem, ao entrar em casa, mesmo em frente da entrada, lá estava uma cardinalícia foto. O ar severo do Cardeal Cerejeira estava naquela minha parede. "Mãezinha, o que se passa?" inquiri a minha mãe e apontei a parede da sala de entrada". "Foi o paizinho. Ontem, quando chegou vinha transtornado. Pendurou a foto e deitou-se. Há, pouco, antes de sair disse para não tirar aquilo dali. Nem sei quem é... depois contou que levou de taxi uns senhores que conversavam sobre alguém que levaram preso e que confessara nem sei o quê. E o paizinho meteu-se na conversa. Sabes como ele é... Um dos homens mostrou-lhe um crachá e ameaçou-o. Nem sei o que te diga..." Ao fim da tarde, a parede jazia vazia. Meu pai, tinha vencido o medo...
A UBER? Já falei disso!
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