21 setembro, 2018

O Escritor Possui Deveres?

«(...) não é meu objetivo desqualificar o texto puramente voltado a entreter, o plano é demonstrar a capacidade da literatura como arte que transcenda este aspecto superficial envolvida na atividade. Veja Mia Couto, por exemplo: branco, formado, descendente de portugueses, soube não apenas se apropriar da ficção como algo seu (em termos estilísticos), mas captar a alma do povo e da terra de Moçambique, onde cresceu, sendo não apenas um porta voz de seus sentimentos, ele atua em causas próprias do lugar (entre elas a preservação de animais nativos), usando muito de seu conhecimento e prestígio para tal. Assim, o moçambicano não apenas enxerga o mundo pelos olhos sensíveis do artista, valoriza as riquezas de sua terra, e luta contra as mazelas que a atormentam.

Ainda dentro desse viés, temos José Saramago, conhecido atuante de causas fortes e necessárias, dentro e fora da literatura. Segundo Ronaldo Lima Lins, em seu artigo Que Medo nos Contamina “Saramago, que ocupava como intelectual um lugar deixado por Sartre, aproveitando o Prémio Nobel para virar uma figura política além de seus romances, sentia as limitações da literatura dentre seus contemporâneos. Valia-se independentemente do fato de o escutarem. Criava espaços de constrangimento, inclusive entre Estados ou povos, o bastante para romper, de algum modo, com o isolamento à que se via relegado".

O relevo concedido pela distinção traz à reboque um renome internacional. É como um estadista de uma grande nação, neste caso a da literatura, cujos movimentos chamam à atenção. A época e a tradição de suas instituições permitem isso, diferentemente do que acontecia no século XIX, quando o importante, o que pesava, para lá da individualidade selecionada pelo sucesso, era o tipo de atividades que a constituía. Ou seja, o escritor português usou muito de sua influência enquanto artista para lutar por causas que lhe eram relevantes além da ficção, e dentro dela, cultivando em sua produção um debate subtil, delicado e profundo, sobre questões polémicas, mas enraizadas na população de sua época. Portanto, Saramago, quer nos discursos, quer no plano das narrativas, nos quais exerceu, enquanto lhe foi possível, a tarefa de construtor de teses, entre histórias que, de certo modo, metaforicamente, retomavam dados da realidade.
Deste texto, que na fonte é bem mais extenso, ocorrem-me palavras de Saramago: "O cidadão que o escritor é não pode ocultar-se por trás da obra. Ela, mesmo importante, não pode servir de esconderijo para dar ao autor uma espécie de boa consciência graças à qual ele poderia dizer que está ocupado e não tem tempo para intervir na vida do país."
 

Mas Saramago foi agora mais longe, soube-o (só) hoje. Vai ter tempo para intervir na ordem do mundo, no lugar próprio, na ONU.
Do que se trata? De uma carta inspirada no seu discurso de 1998:
CARTA UNIVERSAL DOS DIREITOS
E OBRIGAÇÕES DOS SERES HUMANOS
(ler aqui)



Sem comentários:

Enviar um comentário