Há coisas que, inevitavelmente, fazem parte de nós...
Rejeitá-las porque nos desgostam?, mas então o que é que ficaria?
I - Poucos anos depois de minha mãe ter deixado de ser uma das meninas da "loja nova" de Ermidas/Sado e de meu pai ter desistido de ser o rapaz da camioneta verde, que era fretado para tudo o que era transporte de carga, eu nascia e de pronto vínhamos para Lisboa, à procura de nosso destino. E porque o destino foi uma eterna procura dentro dos limites que o poder de então detinha, fomos andando de casa em casa e meu pai de emprego em emprego. Foram anos que não sei contar a não ser pelo que minha mãe cantava. Era de Amália o seu lamento. Se eu gostava? Pode-se lá gostar desse viver, desse cantar...
II - Anos mais tarde, talvez uns quinze, outra a relação com a canção. No café Chaimite reunia-se, entre café e fumo, amizades feitas da proximidade de residência, à volta de livros de estudo e sebentas. Aos fins de tarde, a tertúlia era alargada a quem se chegava. No interregno da procura de um destino mais habilitado, aconteciam coisas que me alimentavam a alma. Foi nesse grupo - que também me deu janelas de compreensão do mundo - que ouvi pela primeira vez o "Embuçado". Já não me lembro o significado e o porquê de um grupo lembrar o Rei assassinado para, logo de seguida, cantarolar "Os Vampiros", tendo entretanto lido poesia dos livros idos e únicos, da instrução primária ("quem quer ver a barca bela/ que se vai deitar ao mar"). Coisas por certo ditas assim para distrair vizinhos suspeitos de poderem fazer denúncias...
III - Por essa altura, eram frequentes os encontros, os convívios e as jornadas de luta nos meios académicos por onde aparecia. Em quase todas se cantava. Sentados no chão (fosse qual fosse o chão) ouvíamos irmanados, as vozes, o trinar das guitarras, os fados, as baladas e as trovas. A pouco e pouco o fado foi sendo afastado. José Afonso diria, alguns anos mais tarde: "Quando fui fazendo canções que me afastavam do fado de Coimbra nunca tive a atitude condenatória de dizer que o fado de Coimbra é uma grande merda, por isso acabou, ponto final. Naquela altura vivia-se um intenso período de actividade antifascista e tudo o que fosse tradição tinha de ser rejeitado. Foi uma atitude absolutista, de certo modo despótica, que foi necessário corrigir com o tempo e hoje está a ser corrigida."
IV - Convenci a Teresa e aquela que viria a ser minha sogra a ir ao concerto de Carlos Paredes, nas "Belas Artes". A sala estava apinhada e o concerto ia correndo como eu previa e Minha Alma esperava. Tinham sido ainda poucas as pautas tocadas, quando um coro de vozes berraram: "czardas, carzadas, czardas". As palavras gritadas eram acompanhadas por palmas. Digno, o mestre levantou-se e silencioso abandonou a sala. Num rápido momento a sala tomou-se de arrependimento e silenciosamente abandonou também o salão. Aquela que viria a ser minha sogra ainda me perguntou o que se tinha passado. Acho que lhe terei respondido...
V - Passaram muitos anos (cerca de 40) e passei a escrever neste blogue. A dada altura quis responder a mim próprio porque me sentia português. Encontrei várias respostas que acrescentam ao que atrás escrevi, isto, isto e ainda isto. Se gostei de escrever o que escrevi? Se gostei de viver o que vivi? Que importa gostar ou não, ficou-me na alma e hoje pertence ao mundo. (*)
VI - E o destino, pá? O destino vai sendo construído pelo poder, até isso assim deixar de ser.
(*) Pena a exclusão do fado de Coimbra.
A imagem foi roubada a um amigo recente
Boa noite Rogério
ResponderEliminarFolhas de uma vida escritas como os fados. Mochila às costas procurando paz e pão.
Desgarradas silenciosas que acordam as noites onde se escondem os pobres.
Regressei no tempo com os medos dos senhores do mundo.
Amigo Rogério, engraçado como os nossos percursos de vida se tocam nalguns pontos.
ResponderEliminarTambém os meus pais foram para Lisboa em busca do seu destino...
Também, com 15 anos, nos juntávamos num café e cantávamos e Embuçado e Os Vampiros (esta última em surdina)...
Também, nos sentávamos no chão, as violas e as guitarras em punho, tudo aprendido de ouvido (que ninguém tinha aulas de música, para além das de Educação Musical, obrigatórias no liceu), e cantávamos as trovas, as baladas proibidas...
Pra que comentar? Um beijo por tanto belo!
ResponderEliminarTudo isto existe
ResponderEliminarTudo isto é triste (?)
Tudo isto é Fado!
(Vê coo o fado é de Lisboa? Foi em Lisboa que tudo isso aconteceu....)
Beijinho
Belo Fado este que aqui nos deixas.
ResponderEliminarErmidas/Sado ?
Que bela terra essa, onde tenho belos amigos e amigas dos meus tempos de estudante em Santiago do Cacém.
Não consegui ir ao primeiro link do 'isto, isto e ainda isto' mas "Valeu a pena!"
ResponderEliminarCaro Vítor,
ResponderEliminaro primeiro link é o mais traumatizante...
agora já está funcional
Eu vim para Lisboa sozinho, aos 17, e foi na Cesária que bebi os primeiros acordes de Fado. Sem entusiasmo. O dia em que me apaixonei pelo Fado, descrevi-o ontem. E, curiosamente, foi a partir daí que passeia ser frequentador assíduo da Cesária
ResponderEliminarRogério:
ResponderEliminarEm resposta ao comentário que deixou lá no CR
Quando agendei o post ainda não tinha vindo aqui e, confesso, só agora reparei no asterisco no final. No entanto, quando vi a entrevista do Carlos do Carmo ao Marcelo, fiquei com a sensação que ele terá dito que, no caso de ir a ser reconhecido como PIH, seria o Fado como um todo que seria distinguido, sem distinções entre o liboeta e o coimbrão.
Quanto à opinião do Zeca, eu conhecia-lha, porque tive o prazer de conviver com ele, pois sou amigo do irmão João.
Por isso mesmo, preferi não comentar...
Caro Rogério,
ResponderEliminar"Roube-me" o que quiser. Dos seus "roubos" não tenho medo. Do que tenho medo é dos ROUBOS que este governo de talibans do ultraliberalismo está a fazer a quem trabalha ou trabalhou.
Ainda a propósito do fado (de Lisboa), permita-me que chame a sua atenção para um artigo que há algum tempo publiquei no meu blogue a respeito da canção "Mãe Preta", que foi interpretada, como sendo um fado, por Maria da Conceição e não por Amália Rodrigues como muita gente pensa. O artigo pode ser visto neste endereço:
http://amateriadotempo.blogspot.com/search?q=m%C3%A3e+preta.
O fado, tal como foi cantado por Maria da Conceição, pode ser ouvido no seguinte endereço:
http://youtu.be/5NX32PqN9QY.
Muito bonito o texto. Ótima semana e um grande abraço!
ResponderEliminarEu tenho um Cunhado, que também é de Ermidas do Sado, também foi para Lisboa, de lá veio para o Algarve, e por aqui está ainda. E também tem Pereira no ultimo nome.
ResponderEliminarUm zapping desde o início dos tempos???
ResponderEliminarCoisas de que se gosta, outras nem por isso... e a vida vai seguindo enquanto nos deixam.
Para quando o lançamento?
Fico esperando informação. Se eu puder estarei presente.
Há muito pouco tempo tive que declinar igual convite (mas para fazer a apresentação) de um colega blogueiro, que, depois de virtual passou a amigo pessoal, no meu lançamento... Tive que recusar.
Coisas da vida!
Tudo de bom por aqui. Beijinhos
Meu amigo:
ResponderEliminarPrimeiramente, obrigada pelo link que vai dar ao meu blogue, principalmente porque o fado que escolhi lhe fez lembrar a sua mãe.
Portanto meu amigo o fado acompanhou-o na vida e está-lhe na alma, quer goste ou não.
Quanto ao destino,lembrei-me desta frase de Augusto Cury :
"O destino é uma questão de escolha. "
beijinhos
Uma enorme História de vida...
ResponderEliminarSim, pena terem excuído o fado de Coimbra!
Bom vir aqui...
Te abraço com admiração!
o destino, pá?
ResponderEliminarfoi esse que nos contou e muito será ainda
um abraço
manuela
Ermidas do Sado - pois claro
ResponderEliminarfoi ontem há tanto tempo
que lá estive a entregar um tractor
adquirido pelos operários da Siderurgia nacional
da ex- Siderúrgia
Abraço amigo
Muito interessante este post, incluindo os links, já fui atràs deles, mas ainda vou ter muito que ler, sobretudo aquele do Café Chaimite, que nos diz que "alguns jornalistas deveriam ser incriminados por passadores, devendo ser fortemente penalizados pelo tráfico de produto que, diga-se, ainda por cima é produto marado. Eis que Deus me ouviu (Ele é infinitamente bom, pena é ser lento)..." , é uma ideia em que estou totalmente de acordo, quer quanto a alguns jornalistas, quer ao facto de Deus ser por vezes lento.
ResponderEliminarSerá que hoje há um verdadeiro jornalismo? Ainda não cheguei à conclusão se alguma notícia é confirmada nos tempos que correm. Esse cuidado meticuloso e quase de investigação que se fazia à notícia, não me parece que exista, publica-se na base do boato e do diz que disse e por isso os leitores menos críticos sofrem uma autêntica intoxicação de ideias.
Hoje fico por aqui, mas haveria tanto a dizer sobre estes temas, que teríamos que voltar às tertúlias do Café Chaimite e muitos serões seriam necessários.
Beijos