18 setembro, 2011

Homilias dominicais (citando Saramago) - 49


Uma amiga, num comentário à minha anterior homilia, escreveu: "Admirar José Saramago, para mim, não será razão válida para concordar com tudo o que ele disse e escreveu.". Tem razão. Não concordei com ele em várias coisas e em algumas até se enganou nas expectativas que tinha (e que por as ter também as ampliou, a quem o leu). É o caso da frase com que encerra este escrito seu. Mas se discordo dele numa frase, num paragrafo ou num texto - inteiro que seja -, logo vêm a seguir mil frases, mil parágrafos ou mil textos onde a concordância, para além de poder (ou não) existir, me faz pensar (ou fazer entrar em desassossego) que é coisa que tende a desaparecer mesmo a quem teria, por dever de oficio, a obrigação de o fazer:

HOMILIA DE HOJE
"Grande alvoroço nas redacções dos jornais, rádios e televisões de todo o mundo. Chávez aproxima-se de Obama com um livro na mão, é evidente que qualquer pessoa de bom senso achará que a ocasião para pedir um autógrafo ao presidente dos Estados Unidos é muito mal escolhida, ali, em plena reunião da cimeira, mas, afinal, não, trata-se antes de uma delicada oferta de chefe de Estado a chefe de Estado, nada menos que As veias abertas da América Latina de Eduardo Galeano. Claro que o gesto leva água no bico. Chávez terá pensado: “Este Obama não sabe nada de nós, quase que ainda não tinha nascido, Galeano lhe ensinará”. Esperemos que assim seja. O mais interessante, porém, além de se terem esgotado As veias na Amazon, as quais passaram num instante de um modestíssimo lugar na tabela de vendas à glória comercial do “best-seller”, de cinquenta e tal mil a segundo na classificação, foi o rápido e parecia que concertado aparecimento de comentários negativos, sobretudo na imprensa, tratando de desqualificar, embora num caso ou noutro com certos matizes benevolentes, o livro de Eduardo Galeano, insistindo em que a obra, além de se exceder em análises mal fundamentadas e em marcados preconceitos ideológicos, estava desactualizada em relação à realidade presente. Ora, As veias abertas da América Latina foi publicada em 1971, há quase quarenta anos, portanto, a não ser que o seu autor fosse uma espécie de Nostradamus, só com um hercúleo esforço imaginativo seria capaz de adiantar a realidade de 2009, tão diferente já dos anos imediatamente anteriores. A denúncia dos apressados comentadores, além de mal intencionada, é bastante ridícula, tanto como o seria a acusação de que a História verdadeira da conquista da Nova Espanha, por exemplo, escrita no século XVII por Bernal Díaz del Castillo, abunda, também ela, em análises mal fundamentadas e em marcadíssimos preconceitos ideológicos. A verdade é que quem pretender ser informado sobre o que se passou na América, naquela América, desde o século XV, só ganhará em ler o livro de Eduardo Galeano. O mal daqueles e outros comentadores que enxameiam por aí é saberem pouco de História. Agora só nos falta ver como aproveitará Barack Obama da leitura de As veias abertas. Bom aluno parece ser."
José Saramago, in Eduardo Galeano

8 comentários:

  1. Concordo inteiramente, que quanto mais fontes literárias ou outras tivermos, mais reflectimos, independentemente da concordância ou não com o que lemos. E não podia estar mais de acordo com Saramago, que o conhecimento da História é fundamental para conhecer e saber interpretar o presente e faz muita falta a muitos comentadores e não só...
    beijinho e boa semana

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  2. Os críticos do Galeano são mal-intencionados, como bem diz, Saramago, e demonstraram ignorância da História da América Latina. Que leiam Galeano para aprender!
    Como sempre, excelente post!

    Girassóis nos seus dias.
    Beijos

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  3. Será que Obama já leu o livro que Chavéz lhe ofereceu?
    Se o leu, não aprendeu nada...

    Um abraço.

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  4. Pois é amigo Rogério, nem sempre estamos de acordo com tudo, mesmo com algumas passagens de Saramago, mas o que conta
    é o seu todo, e esse é verdadeiramente único!

    Esperemos que Obama aprenda alguma coisa, bem precisa.

    Beijinho

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  5. Com o grande Saramago

    até aprendemos a discordar
    e após a leitura a aplaudi-lo

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  6. nao devemos concordar em tudo com as pessoas que admiramos, senao nao ha nada para conversarmos e aprender :)

    Bjinhos
    Paula

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  7. Não sabia nada disto, amigo Rogerito! Ainda bem que se aprende ao virmos aqui.

    Obrigada e... bons textos e bons ensinamentos.

    Beijo

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  8. Podemos admirar sempre a inteligência de quem quer que seja, embora por vezes se lamente a utilização que faz dela. O que não é obviamente o caso de Saramago.

    Boa semana

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