29 agosto, 2022

A NÁUSEA

 


«Eu já disse, mas vou re­petir: / Não se re­presa um rio, / Não se en­gana a na­tu­reza, / Faça a re­presa o que quiser, / Pois o rio cedo ou tarde vai ar­ranjar um jeito de rasgar a terra, / Abrir um ca­minho, / E voltar a correr em seu leito de origem.» Estes versos de Pessoa ocor­reram-me nos úl­timos dias, qual tábua de sal­vação, face à náusea pro­vo­cada por no­tí­cias (?) ao que pa­rece con­si­de­radas per­ti­nentes para fa­zerem man­chetes e en­cherem tempo de an­tena em ho­rário nobre.

Pri­meiro foi o anúncio da cam­panha «Sake Viva!», lan­çada pela Agência Na­ci­onal de Im­postos do Japão, a pedir aos jo­vens entre os 20 e os 39 anos que apre­sentem pro­postas para ajudar a... au­mentar o seu pró­prio con­sumo de ál­cool. Isso mesmo. A ju­ven­tude está a beber menos, então ve­nham de lá ideias para que beba mais. A eco­nomia agra­dece, diz o go­verno, pre­o­cu­pado com a con­tínua queda da re­ceita tri­bu­tária sobre o ál­cool: 1,7% do total em 2020, contra três por cento em 2011 e cinco por cento em 1980. Ironia das iro­nias, con­vida-se a ví­tima a for­necer a arma do crime.

De­pois, para o caso a ordem dos fac­tores é ár­bi­trária, foi a ine­nar­rável co­ber­tura da dis­puta do ca­dáver de José Edu­ardo dos Santos, da tras­la­dação para Lu­anda do corpo do an­tigo pre­si­dente em plena cam­panha elei­toral an­go­lana, e do ale­gado apro­vei­ta­mento po­lí­tico das ce­ri­mó­nias fú­ne­bres.

Por úl­timo, mas não menos im­por­tante, a saga do co­ração de D. Pedro IV, que Rui Mo­reira foi levar a Bra­sília para par­ti­cipar (?!!) nas co­me­mo­ra­ções do bi­cen­te­nário da in­de­pen­dência do Brasil. O em­bai­xador bra­si­leiro em Lisboa, Rai­mundo Car­reiro Silva, pro­meteu que o órgão con­ser­vado em formol e de or­di­nário li­te­ral­mente guar­dado num cofre fe­chado a cinco chaves seria re­ce­bido «como se o pró­prio im­pe­rador es­ti­vesse a re­gressar ao país». A re­lí­quia, diz o pre­si­dente da Câ­mara do Porto, é um «bem cul­tural in­subs­ti­tuível» que deve ser re­gu­lar­mente ex­posto para que as novas ge­ra­ções per­cebam o seu «sig­ni­fi­cado». Qual seja não se sabe, o que se sabe, isso sim, é que o apa­rato em torno do co­ração que há 188 anos deixou de bater vai animar, a 7 de Se­tembro, a cam­panha para a re­e­leição de Bol­so­naro. «No dia 7, es­tarei pela manhã em Bra­sília, com o povo na rua, com a tropa des­fi­lando», pro­meteu o ac­tual pre­si­dente, que quer trans­formar as co­me­mo­ra­ções da in­de­pen­dência em ma­ni­fes­ta­ções de apoio ao seu go­verno.

A res­pon­sa­bi­li­dade disto não pode ser as­sa­cada à dita silly se­ason, ex­pressão in­glesa para a pre­tensa «es­tação parva», o pe­ríodo de Verão em que ale­ga­da­mente não se passa nada porque po­lí­ticos e co­men­ta­dores en­car­tados vão a ba­nhos e ficam com o ho­ri­zonte do um­bigo obs­truído com areia, porque isso foi chão que deu uvas.

Dou a mão a Pessoa: «A vida é uma grande feira e tudo são bar­racas e sal­tim­bancos...»

Anabela Fino, no Jornal  AVANTE/A Talhe de Foice

6 comentários:

  1. Meu caro Rogério
    Acredita que é verdade foi a primeira coisa que li no avante, não me perguntem porquê mas nos jornais começo sempre pela ultima página.
    Esta semana as noticias tem sido um fartote de rir e indignação ao mesmo tempo.
    um abraço

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    1. É verdade: o trágico anda de braço dado com o ridículo...

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  2. Também li uns títulos sobre o assunto. Achei tão estranho tanto um como o outro que acabei por não ler os artigos.

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  3. Tens toda a razão, Rogério: o trágico anda frequentemente de braço dado com o ridículo, quanto mais não seja para iludir a náusea, tal como a Metoclopramida - produto farmacêutico - a ilude, em caso de doença física...

    Um abraço!

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  4. Uma tragicomédia, a do coração é absolutamente tétrica!

    Abraço

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  5. Não tenho dado importância às notícias, a não ser as familiares, já que tenho vários com problemas graves de saúde.
    .Abraço e saúde

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