06 março, 2017

Como se tudo dependesse da Primavera - III (Classe Média - versão actualizada)


CLASSE MÉDIA
(Cinco anos depois)
Temendo o transito, o marido
já tinha saído
Pôs agua a correr, em temperatura amena
Preparou o que vestir, a roupa interior, o top de renda
e aquela saia rodada
A banheira transbordava

Escoou-a um pouco para que lhe coubesse o corpo
Como sempre fazia, estendeu-se, languidamente,
deixando que o morno, lhe acalmasse a pressa
Voltou a não esquecer os sais com odores de flores
E assim ficou, como sempre, longos minutos
até despertar para o tempo
em gestos resolutos
Não massajou o cabelo, antes o soltou
e usou o habitual champô 
Passou pela pele o creme de amêndoas
e no rosto o costumado anti rugas, levemente aromatizado

Vestiu-se, fez o penteado
Olhando-se de perfil, detrás e de frente
Treinou um sorriso confiante
Na cozinha, ligou a chaleira
Mas hesitou, entre o chá e a prateleira
onde, alinhados, estavam os iogurtes, ricos em bifidus
muito coloridos
e açucarados
Optou, mais uma vez, pelo o de  morango aos pedaços
Esqueceu a tosta com doce de frutos silvestres
e não meteu na mala a caixa de chicletes
Antes de sair, abriu a janela
para que o sol entrasse por ela
Apressou-se, para não chegar atrasada
à esplanada

Chegou, gabaram-lhe  mil vezes o que trazia vestido
a elegância, os cheiros, o penteado e o sorriso
E entrou na conversa sobre os horrores da violência doméstica,
a banalidade dos saldos, o preço dos salões de estética
dissertando, de seguida
sobre as agruras da vida
pelos inconvenientes de se ter um filho,
e nesse ponto preciso
surge-lhe uma mensagem

«Querida, o contrato foi renovado
mas passei a trabalhador precário»

Pela cara dela, perguntaram-lhe o que era
Respondeu - Um anúncio parvo
enviado através do Sapo

Tranquila,
levantou-se e foi buscar uma raspadinha
Rogério Pereira

12 comentários:

  1. Voltou às Conversas de Esplanada?
    Venham de lá elas,
    são interessantes,
    actuais e recordar não custa nada!

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  2. Preocupa-me - e ocupa-me... - o facto de te ver fazer um retrato tão fiel da "classe média". Uma alegoria? Assim o vejo...

    Atenção; não me preocupa nada o facto de seres capaz de uma tal fidelidade, no retrato. Preocupa-me aquilo que é fielmente retratado.

    Abraço.

    Maria João

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    1. Há quem, despreocupadamente, não se incomode...
      Ocorreu-se voltar à abordagem inicial, devidamente actualizada (há 5 anos atrás não havia raspadinhas...)

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    2. Também essas me preocupam, pela frequência e "voracidade" com que são adquiridas, raspadas e rapidamente atiradas para o lixo. Não me tem sido nada difícil perceber que, para muitos, se tornaram num vício, mais do que num habitozinho inofensivo...

      Outro abraço.

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  3. Não sei, não conheço ninguém assim, "mas que as/os há, há"...

    Lídia


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    1. Que sorte... é que são largos milhares...
      Há papelarias em que "os jogos de azar" são o que safa o negócio...

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  4. Em 2012 não frequentava o blogue. Li o outro poema. As diferenças não são muitas, na atitude da classe média. Continua a querer fugir da realidade, a tentar enganar-se a si mesma. Ou pelo menos foi o que me pareceu.
    Abraço

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    1. Se reparares, há uma evolução (relevante)
      antes, era o desemprego
      agora, a precariedade

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    2. Reparei nisso, mas foquei-me mais na alienação da mulher.

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  5. Classe média?
    Só na raspadinha
    Abraço

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