14 dezembro, 2014

Contos de Natal - IV (Por não ter conseguido comprar um sorriso?)

(Conto inspirado por uma noticia antiga 
hoje cada vez mais repetida)


Há muito que abandonara o ter de estar a tempo para fazer o quer que fosse, ou estar com quem quer que seja. Contudo, se controlasse o tempo constataria que cumpria rigorosamente, à hora certa, a rotina que a ele próprio há muito se impusera. Só raramente sabia o dia, semana, mês em que fazia o que ia fazendo. Deixara, também, de se importar com essa escala do tempo. Ninguém lhe perguntava há quanto a filha partira. Se o fizessem não saberia responder. Nem há quanto lhe deixara ela de lhe escrever, ou telefonar. Ao principio sofrera com a partida como sofrera com a inesperada viuvez. Quando? Há cinco, há dez anos? Quase ao mesmo tempo em que deixou de medir o tempo, deixou de se importar com as ausências. Ao certo, ao certo, nem se dava pela sua própria presença. Era como se não existisse há cinco, há dez ou talvez mais anos. Era como se ele próprio tivesse partido. Já não ligava à Sua Alma nem mantinha aquele diálogo acalorado com o Seu Contrário, que a pouco e pouco se afastou do seu juízo. Estava só, até de si.

Naquele dia acordou sobressaltado. Na cama, tateou ao seu lado a procurá-la pois parecia ter sentido o seu calor, o respirar manso e o seu cheiro doce. Pronunciou o seu nome como num chamamento. Depois repetiu, e repetiu, enquanto se levantava e percorria toda a casa. Percorreu-a três vezes até confirmar que ali estava apenas ele.

Lavou-se e escanhou-se. Vestiu-se escolhendo, demoradamente, a roupa. Foi à gaveta e recolheu todas as moedas e uma nota pequena, tudo o que lhe restava da pensão magra. Guardou tudo sem contar nem se lembrar de quando vociferava contra ministros e políticos a quem acusava, a esmo, pelo seu empobrecimento. Saiu. Entrou no café ao fim da rua. Pediu um café. A empregada trouxe-o. Ele pagou com um generosa gorjeta, disse, "fique com o troco", e ficou à espera que se lhe alterasse o rosto. E nada, como resposta um seco "obrigada" e mais nada. Deixou passar algum tempo e pediu outro. Na altura de pagar colocou sobre a mesa tudo o que tinha. A empregada transfigurou o rosto, não no sorriso em que tanto tinha investido, mas num ar de surpresa com um misto de submisso agradecimento e uma exclamação "tanto?". Depois foi-se com um sumido "obrigada". 

Nos dias seguintes não comeu, a esperança de obter um sorriso amigo dava-me a energia necessária para cada caminhada. E andava, e andava. Sentou-se num banco, por baixo de uma arvore imensa de tronco desnudado. Apercebeu-se quanto o seu corpo estava frio de um frio que não sentiu. À sua frente apareceu então o sorriso, aquele que não procurava. A Morte estendeu-lhe a mão e disse "Anda". E ele foi.
Se controlasse o tempo, teria dado conta ter sido quase à hora e no mesmo dia em que o Menino nascia.

9 comentários:

  1. Para quê controlar o tempo? Ou deixar que ele nos controle? A vida é bem mais bonita quando não se oferece resistência.
    Há quem diga que nos escombros também se pode encontrar a felicidade, é só deixá-la emergir ao nível do sorriso e aninhar-se no rosto, num tempo real, que é apenas um flash na escala da eternidade...
    Um abraço.
    Gostei tanto!!!

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  2. O tempo é muito difícil de controlar. Quando somos pequenos cada hora parece um dia. Quando atingimos a idade adulta, o dia não chega muitas vezes para tudo o que queremos fazer, e quando vamos para velhos então cada dia passa com a ligeireza de uma hora. Outra coisa, quando somos crianças, todos nos querem ao pé, é tudo beijos e carinho. Quando somos velhos a unica que não nos larga é a solidão.
    Um abraço e uma boa semana

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  3. Tantos assim por aí, pobres, desamparados e sozinhos.
    A morte é a única que lhes estende a mão.
    Emocionei-me meu amigo.

    beijinho


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  4. Amarga pode ser a solidão, com efeito. Só que quando ao lado de alguém é bem pior !

    Eu conheço ambas : prefiro estar só a mal acompanhada.

    Do conto gostei , até porque está bem escrito. O que não novidade.

    Boa semana :)

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  5. ~ ~ ~ Triste, mas muito real. ~ ~ ~

    ~ Se me tivesse encontrado, não lhe faltaria o sorriso e uns minutos de conversa.

    ~ Sou praticante e militante do sorriso amigo e recebo mais do que dou.

    ~ ~ Animada e agradável semana. ~ ~

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  6. Esperei até poder vir cá sem contar o tempo. Fiz bem!

    Não sei quando os nossos melhores contos/sonhos de Natal deixarão de ter tanta tristeza a embrulhá-los.
    Há lugares em que luzem estrelas verdadeiras em todas as ruas. São poucos? Talvez, mas eu sei que existem. Este Natal há mais gente (ainda) sem poder comprar sorrisos, pelo que as falsas estrelas deveriam ser apagadas para que melhor se visse a realidade.

    Um beijo

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  7. um conto de natal dos dias hoje.

    muito bem contado e escrito

    forte abraço, meu Caro Rogério

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  8. Vem uma última ilusão, a de comprar o que não se tem: um sorriso, uma atenção. Mas como comprar se não se tem dinheiro. Daí ao estágio no banco é um fósforo.

    E vem a glória e redenção da ceia de Natal, a ficar cada vez mais escassa, cada vez mais fria. Chega um dia não apetece.

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  9. Muito triste e, infelizmente, muito real e muito atual.

    Muito bonito e muito bem contado.

    Gostei.

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