Se Brecht fosse vivo
faria deste conto um teatrinho
- Que está a pensar com esse olhar tão fixo?
- Espero que a abelha saia dali e me liberte o material para eu poder pensar no que está a acontecer...
- Não percebo!, diga-me isso de outra maneira para que eu possa perceber!
- Estou à espera de poder usar o arame e reconstruir este momento que estamos vivendo...
- Com o arame constrói o pensamento para poder ter a visão do
momento?... Olhe, a abelha já voou... Não se importa de eu ficar a ver
como constrói a realidade trabalhando o arame?
- Fique. Veja só: pega-se assim, firmemente. Depois vai-se fazendo um
pequeno arco, lentamente... mas com força. Repete-se o procedimento e
surge aqui à frente outro arco quase igual. Repete-se, e assim
sucessivamente, vamos desenvolvendo ciclos e ciclos com o arame...
- Faz muita força de dedos nessa manipulação?
- Neste ponto, já não... e é isso mesmo o que queria perceber... ao
principio, para fazer cada ciclo, foi preciso, agora o próprio arame
vai-se pondo a jeito... parece estar viciado e isso favorece a forma que
lhe vou dando...
- Percebo! A partir de um dado momento os ciclos desenvolvem-se com o vício da forma inicial que foi dando...
- Isso mesmo! O arame, depois de bem manipulado, quase
que automaticamente assume a forma pretendida... é uma espiral... parece
uma mola, só que não impulsiona nada. Fica como a vê aqui, parada.
- Olhe, está-se a acabar o arame!...
- Vou passar a fazer círculos de diâmetro mais reduzido. Acho que chegámos ao ponto em que estamos agora...
- Mas... está a voltar atrás?
- Passámos os ciclos viciosos e, à falta de arame... digamos que temos
que voltar atrás e reduzir os ciclos que tinham sido maiores. Passo a
fazer ciclos recessivos... e, à frente, a fazer ciclos mais reduzidos...
- ...que vão parar?
- Quando não houver mais arame!
- O fim está à vista... foi excelente este exercício! Mas como é que saímos disto?
- Neste momento vamos a tempo... É sair destes ciclos e endireitar o arame... mas com o vício...
- Com o vício?...
- Só à martelada!
- Acho que é uma boa solução. Procuremos o martelo, então.
- Olhe ela voltou!, mas pousou neste outro lado... vai esperar que ela vá embora e voltar a trabalhar no arame?
Parte III (18.Jan.2013)
(saíram os dois, procurando o martelo)
- Olhe ela voltou!, mas pousou neste outro lado... vai esperar que ela vá embora e voltar a trabalhar no arame?
- Trabalhar no arame naquele momento foi uma decisão errada. Uma metáfora para resultar tem que ser bem trabalhada e usar-se nela o material adequado...
- Escolher o arame foi uma opção errada?
- Não!, errado foi ter metido lá o martelo... em vez de se ter entendido
que ele era usado para desfazer os círculos viciosos, todos leram que o
que era preciso era desatar à martelada...
- Os sinais dos tempos sobrepõem-se às intenções edificantes... então e
agora?... noto que está a olhar para o belo insecto com o mesmo olhar
fixo...
- Estou a tentar discernir se o insecto é abelha ou vespa... Há uma
grande confusão à vista desarmada... o que mais se parece com uma vespa é
uma abelha, o que mais se parece com uma abelha é uma vespa...
- Tem razão, eu próprio as confundo. Dizem das abelhas que são trabalhadoras e calmas e que as vespas são carnívoras e bravas...
- As abelhas têm uma organização social invejável mas vulnerável... as
vespas atacam as abelhas, invadem-lhes os favos e devoram-lhes as
larvas. As vespas maiores, mais vorazes, até as comem...
- Não sabia... agora reconheço a importância de ficar aqui a olhar... mas... como vamos perceber a diferença?
- Primeiro olhamos para reter a imagem, a forma das patas, o abdómen, o
tórax... Depois aproximamo-nos. Se nos atacarem, são vespas..
- Aproximemo-nos então!... Olhe, voou e pousou naquela flor...
- Era abelha!
- Era abelha! Podemos recapitular o observado ainda agora?
- Não consigo, tenho um problema de memória...
- E eu de observação... estamos então condenados à confusão... a só perceber quando nos vierem morder...
- Nem mais! O nosso drama é continuarmos sem memória!
- E de observação! Há um vespeiro reunido e muitos ainda julgam tratar-se de uma colmeia!!!
- E de observação! Há um vespeiro reunido e muitos ainda julgam tratar-se de uma colmeia!!!
(Saem como se tivessem receio de estarem a ser escutados)
Parte III (18.Jan.2013)
Os Zzzz´s próprios dos vespeiros eram inteiros e os olhares dos vespas
se perdiam pela ornamentação dourada da bela sala, olhando as abóbadas
do tecto, como que a inquirir a resposta: "e como fazer, sem que as abelhas acordem e se revoltem?" Do lado direito, da fila primeira, logo da primeira cadeira, se levantou um vespa. Levava na mão uma pen que
inseriu para mostrar um vídeo para ilustrar a palestra. Elevando a voz
para que fosse ouvido de modo entendido, disse antes das imagens
passarem:
"Evitemos esta imagem voraz. Evitemos mostrar o que não deve ser mostrado, como hoje soubemos não deixar escutar o que foi dito. Alimente-mo-nos das abelhas de forma menos evasiva, mais...persuasiva. Não esqueçam que temos a vantagem de sermos confundidos e tomados por salvadores e amigos... de estar a cumprir um desígnio... de este sacrifício ser um imperativo e desse imperativo ter um único sentido: o do extermínio!"
(findo o vídeo, o orador foi muito aplaudido e depois disso os vespas foram saindo)
Parte IV (22.Jan.2013)
- Ferreira Fernandes, internacionalizou-te a metáfora depois de te ler até aqui. Escreveu que para a Europa não há vespas más...
- Não acredito que ele o tenha escrito...
- Escreveu, escreveu, e acho que até espreitou o teu vídeo, e falou na voracidade consentida... e com a mordacidade que lhe é conhecida, titulou a sua crónica assim "Não há vespas más"...
- E não disse mais nada? Não falou nos enganos dos eleitores que votam nas vespas que se fazem passar por abelhas?
- Não, disso ele não falou! O que ele descreveu foi a técnica dos japões em defender as colmeias do ataque das vespas... e da displicência dos cientistas franceses...
- Tens a certeza que o Ferreira Fernandes não escreveu mesmo nada?, nem sequer coisa insinuada?
- Nada, internacionalizou-te a metáfora e com algum sentido! Acho até que lhe devias estar agradecido...
- Agradecido?, se ao menos ele denunciasse a metamorfose que por aí tem andado e que agora requer ainda maior cuidado...
- Metamorfose? Estás a falar de quê?
- Das "abelhespas", abelhas que deixaram de o ser sem que sejam vespas. Falam como se fossem abelhas mas procedem como as vespas!
- E são vorazes?
- Sim, também, mas disfarçam bem...
- Ah!
(saem do palco, conversando, sem que se oiça o que dizem)
Parte V (16.Fev.2018)
O favo era amplo, largo. No centro uma mesa igual a tantas existentes no ninho-colmeia, que também pode ser considerado vespeiro. Pousados frente a frente dois abelhespas sorriam-se reciprocamente perante o ar neutro de um outro indistinto insecto. Pareciam ambos pacíficos até deixarem de o ser e a cada um o sorriso desaparecer. Sobre os golpes desferidos não importa a descrição sendo certo e sabido que um vai ser comido.
Começou a voragem dos abelhespas por eles próprios.
Cá fora, ouvem-se comentários das abelhas: "Que se devorem uns aos outros. Será a salvação da colmeia."
Começou a voragem dos abelhespas por eles próprios.
Cá fora, ouvem-se comentários das abelhas: "Que se devorem uns aos outros. Será a salvação da colmeia."
CAI O PANO
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