A cada vez maior interpenetração entre o governo da
Suíça, a Nestlé e outras grandes multinacionais e a estratégia helvética
de cooperação para o desenvolvimento representam uma ameaça cada vez
mais premente sobre os recursos aquíferos de todo o planeta. A ganância
privatizadora da água que move as maiores empresas globais do sector
alimentar encontra em Genebra uma poderosa alavanca que mina o acesso
universal à água como um direito humano fundamental.
Franklin Frederick, Jornal GGN/O Lado Oculto
Em Fevereiro deste ano o governo da Suíça anunciou a criação de uma Fundação em Genebra com
o nome de “Geneva Science and Diplomacy Anticipator” (GSDA). O
objectivo desta nova fundação é o de regulamentar novas tecnologias,
desde drones e carros automáticos à engenharia genética, os exemplos
mencionados pelo ministro dos Negócios Estrangeiros da Suíça, Ignazio
Cassis, na ocasião do lançamento público desta iniciativa. Segundo
Cassis, as novas tecnologias estão a desenvolver-se muito rapidamente e
esta Fundação deve “ antecipar” as consequências destes avanços para a
sociedade e para a política. A Fundação será também uma ponte entre as
comunidades científicas e diplomáticas, daí sua colocação estratégica em
Genebra, que abriga várias organizações internacionais, desde a ONU até
a Organização Mundial do Comércio. O Ministério dos Negócios
Estrangeiros da Suíça contribuirá com três millhões de francos suíços –
2,72 milhões de euros – para a fase inicial da Fundação de 2019 até
2022. A cidade e o cantão de Genebra contribuirão cada um com 300 mil
francos suíços para o mesmo período e esperam-se contribuições do sector
privado.
O longo braço da Nestlé
Como
presidente desta nova fundação foi escolhido o ex-CEO da Nestlé Peter
Brabeck-Letmathe e como vice-presidente o ex-presidente do Instituto
Federal de Tecnologia de Lausanne – EPFL (sigla em francês) – Patrick
Aebischer, desde 2015 também membro da Comissão Directiva do Nestlé
Health Science, fundado em 2011 pela Nestlé e localizado justamente no
campus da EPFL. A escolha de Peter Brabeck e de Patrick Aebischer –
ambos com notória ligação à Nestlé – para dirigir esta nova fundação tem
razões muito claras. Representa primeiramente o reconhecimento do poder
da Nestlé dentro do governo da Suíça – um ex-CEO da Nestlé é, por
definição, competente para dirigir esta iniciativa. Mais preocupante
porém, a escolha de Peter Brabeck é mais um exemplo da “parceria” cada
vez mais estreita entre governos e grandes companhias transnacionais,
levando ao estabelecimento de uma oligarquia corporativa internacional
que vem paulatinamente tomando o poder real dentro das democracias
ocidentais. Como CEO da Nestlé, Peter Brabeck passou a maior parte da
sua carreira lutando contra toda a forma de regulamentação estatal do
sector privado; o caso mais conhecido foi a acção contra a
regulamentação das normas de marketing dos produtos alimentares
infantis, principalmente o leite em pó. O conflito entre a Nestlé, sob
a direção de Peter Brabeck, e o IBFAN – International Baby Food Action
Network (Rede Internacional para a Amamentação Infantil) – é célebre.
Mas a ironia maior – e o maior perigo – é que a escolha de Brabeck para
presidir a esta fundação indica que o objectivo real desta iniciativa é
justamente impedir qualquer forma de regulamentação pelo poder público
que possa impor qualquer limite aos lucros procedentes dos avanços
tecnológicos do sector privado. Não é de se esperar também que esta
fundação venha a defender qualquer protecção da esfera pública ou do
meio ambiente face às possíveis ameaças colocadas à sociedade pelos
novos avanços tecnológicos; muito pelo contrário, a escolha de Brabeck
indica que esta fundação tem como objectivo prioritário a defesa e a
promoção do sector privado. O que pode esperar-se desta fundação são
propostas de auto-regulamentação pelo sector privado no caso de
conflitos demasiado explícitos, ou seja, nada de efectivo. E como esta
Fundação é uma iniciativa do governo da Suíça – certamente depois de
conversas com o sector privado – e está localizada em Genebra, ela já
dispõe, desde o início, de uma enorme influência e creio que os
movimentos sociais organizados devem seguir atentamente os passos
futuros desta fundação, pois esta encarna uma enorme ameaça à
democracia.
E apenas alguns meses depois do lançamento desta nova
fundação, o governo da Suíça anunciou que Christian Frutiger, actual
“Global Head of Public Affairs” da Nestlé (Director Global de Negócios
Públicos) vai assumir, dentro de pouco tempo, a vice-presidência da
Agência Suíça para o Desenvolvimento e a Cooperação – Swiss Development
and Cooperation (SDC em inglês, DEZA na sigla em alemão) - ou seja, a
agência do governo da Suíça responsável por projectos de ajuda ao
desenvolvimento noutros países. Mais um exemplo da crescente colaboração
entre o sector privado e o poder público, mas desta vez numa área muito
mais sensível, a da cooperação para o desenvolvimento. E mais um
exemplo também da influência e presença cada vez maior da transnacional
Nestlé dentro do governo da Suíça.
Recurso à espionagem
Esta
presença não é nova nem recente. É importante lembrar, por exemplo, que
o SDC não só apoiou a criação do Water Resources Group – WRG – a iniciativa da Nestlé, da Coca-cola e da Pepsi para privatizar a água,
como o próprio Director do SDC é membro do Conselho Directivo do WRG.
A contradição entre o facto de a Suíça possuir um dos melhores
serviços públicos de saneamento e distribuição de água no mundo mas
utilizar o dinheiro dos impostos dos cidadãos suíços para apoiar a
privatização da água noutros países, através da parceria do SDC com a
Nestlé, não parece ser um problema. O orçamento para a cooperação
internacional da Suíça para o período 2017-2020 é de cerca de 6635
milhões de francos – um pouco mais de seis mil milhões de euros. Como
vice-director, Christian Frutiger terá bastante influência sobre as
decisões relativas à aplicação de parte destes recursos. Ainda mais
importante: como vice-director, Frutiger será responsável directo pela
Divisão de “Cooperação Global” do SDC e pelo programa ÁGUA. Christian
Frutiger iniciou sua carreira na Nestlé em 2007, como “Public Affairs
Manager” – Gestor de Negócios Públicos – depois de ter trabalhado na
Cruz Vermelha Internacional. Em 2006 a marca de água engarrafada da
Nestlé “Pure Life” tornou-se a sua marca mais lucrativa e em 2007, com a
compra do grupo Sources Minérales Henniez SA, a Nestlé tornou-se a
empresa líder em água engarrafada dentro do mercado suíço. E em 2008,
apenas uma década depois de seu lançamento, “Pure Life” tornou-se a mais
vendida marca de água engarrafada em todo o mundo. Dentro deste
contexto, era natural que o trabalho de Christian Frutiger na Nestlé se
concentrasse, desde o início, no tema ÁGUA. E em 2008 rebentou na Suíça o
escândalo da espionagem da Nestlé. Um jornalista da TV da Suiça
francófona denunciou num programa que a Nestlé contratou a empresa de
segurança SECURITAS para infiltrar espiões no interior dos grupos
críticos à Nestlé dentro da Suíça, sobretudo na organização ATTAC. A
espionagem comprovada ocorreu entre os anos de 2002 e 2003, mas há
evidências de espionagem até ao ano 2006. A ATTAC abriu um processo
contra a Nestlé e contra a empresa SECURITAS e em 2013, finalmente, a
justiça da Suíça condenou a Nestlé por ter organizado esta operação de
espionagem, indicando o envolvimento de pelo menos quatro directores da
empresa na operação. Durante este período, Christian Frutiger teve um
papel fundamental e muito bem sucedido em minimizar o impacto da
operação de espionagem na imagem da Nestlé na Suíça, o que certamente
contribuiu para a sua promoção à posição que ocupa hoje. O facto de a
Nestlé ter organizado uma operação ilegal de espionagem dentro da Suíça,
e de ter sido condenada pela justiça deste país por causa disso, não
teve qualquer efeito nas relações da empresa com o governo suíço e
sobretudo com a Agência de Cooperação para o Desenvolvimento, como seria
de esperar.
Ninguém perguntou ao então CEO da Nestlé, Peter Brabeckc,
que se a sua empresa é capaz de tais acções dentro da própria Suíça, o
que poderemos esperar então do comportamento da mesma empresa noutros
países com garantias democráticas mais frágeis? Espiar cidadãos na
Suíça, utilizando para este fim a infiltração de agentes disfarçados e
sob nome falso é, no mínimo, de uma enorme falta de ética.
Fúria privatizadora da água
Mas
parece que a ética não foi um dos critérios que o SDC levou em conta
ao contratar Christian Frutiger que, em todo este episódio, manteve o
silêncio, jamais se desculpou perante as pessoas espiadas pela empresa
para a qual trabalhava e ainda fez tudo para minimizar o impacto do
problema, ou seja, pactuou com a falta de ética de seu empregador. Mas a
contratação de Frutiger como vice-diretor do SDC aponta para problemas
muito mais profundos e abrangentes, sobretudo no que se refere ao tema
ÁGUA, pois parece claro que a sua escolha para esta posição tem tudo a
ver com isso. A indicação de Peter Brabeck para presidir à nova fundação
do governo da Suíça em Genebra e a de Christian Frutiger como
vice-presidente da Agência de Cooperação para o Desenvolvimento da Suíça
revelam uma articulação entre o sector privado e o governo suíço no
sentido de aprofundar as políticas de privatização – sobretudo da água –
e o controlo das corporações sobre as políticas públicas. Mas esta
articulação vai além do governo da Suíça, ela vai dar-se, sobretudo, ao
nível das agências e organismos internacionais presentes em Genebra,
pois Christian Frutiger será responsável pelo diálogo com muitas dessas
organizações. O que estas novas funções de Peter Brabeck e de Christian
Frutiger indicam também é que o sector corporativo transnacional está a
organizar-se e a articular-se muito conscientemente ao nível dos
governos para assegurar que suas necessidades e propostas políticas
sejam atendidas.
Não deve esperar-se muita reacção das principais
ONG’s da Suíça diante de tudo isto, principalmente pelo facto de o SDC
ser o principal financiador de quase todas elas, o que explica o
silêncio profundo em torno da Nestlé e das suas acções dentro da Suíça.
Um exemplo recente deste silêncio ocorreu no Brasil, por ocasião do
Fórum Mundial da Água realizado em Brasília, em Março de 2018.
Como este
Fórum é, na realidade, o Fórum das grandes empresas privadas, a Nestlé e
o WRG estavam presentes, dentro do pavilhão oficial da Suíça, junto com
organizações como HELVETAS, HEKS/EPER e Caritas Suíça, três das maiores
agências de desenvolvimento privadas da Suíça - e todas apoiadas pelo
SDC. A HEKS/EPER – das siglas em alemão e francês respectivamente – está
ligada à Igreja Protestante da Suíça, como a Caritas Suíça está ligada à
Igreja Católica. Durante o Fórum, 600 mulheres do Movimento Sem Terra
ocuparam por algumas horas as instalações da Nestlé em São Lourenço,
Minas Gerais, para chamar a atenção para os problemas causados pela
empresa e pelo indústria engarrafadora de água em geral. Nenhuma destas
organizações da Suíça manifestou qualquer solidariedade com o MST,
nenhuma condenou as práticas da Nestlé, nenhuma sequer mencionou, no seu
regresso à Suíça, que esta ocupação tinha acontecido. Mas HEKS/EPER e
Caritas Suiça afirmam lutar pelo direito humano à água e “apoiam” os
movimentos sociais – mas não quando estes se colocam contra a Nestlé. Em
São Lourenço, na região do Circuito das Águas em Minas Gerais, e em
muitos outros lugares no Brasil, há problemas com a exploração de água
pela Nestlé e com movimentos de cidadãos que tentam proteger as suas
águas. HEKS/ EPER tem um escritório no Brasil, mas jamais se aproximou
dos grupos que, no Brasil, lutam contra a Nestlé.
Estados cúmplices
O
SDC tampouco considera os problemas com a Nestlé em diversas partes do
mundo – não apenas no Brasil – como uma razão para reavaliar a sua
parceria com a empresa. Há problemas muito bem documentados com os
engarrafamentos e os bombeamentos de água da Nestlé nos Estados Unidos,
no Canadá e em França, por exemplo, países considerados democracias
estabelecidas. O que há de comum entre todos eles é que os governos se
colocam, sempre, a favor da empresa e contra os seus próprios cidadãos.
Na cidade de Vittel, em França, a situação é absurda: estudos realizados
por órgãos do governo francês indicam que o aquífero de onde a
população de Vittel retira sua água e de onde a Nestlé também recolhe a
água engarrafada como “VITTEL” encontra-se em risco de esgotamento. Não
há condições de o aquífero suportar, a longo prazo, as necessidades da
população local e da empresa de engarrafamento da Nestlé. Solução
proposta pelas autoridades francesas: construir uma tubulação – pipeline
– de cerca de 50 quilómetros para buscar a água numa região vizinha à
de Vittel para atender às necessidades da população – deixando à Nestlé à
exploração das águas do aquífero!!!
No condado de Wellington,
Canadá, constituiu-se um grupo local – o Wellington Water Watchers –
para proteger as suas águas da exploração da Nestlé, que conta com o
apoio do governo local para renovar sua permissão de continuar
engarrafando água. Em Michigan, nos Estados Unidos, o problema é
semelhante. Nada disso parece incomodar o governo da Suíça, o SDC ou
Christian Frutiger – e se tais problemas ocorrem nestes países, o que
não poderá acontecer em países bem mais frágeis na sua organização
social e política?
No momento em que preparei este texto a Europa
sofria uma intensa onda de calor. Havia racionamento de água na França,
riscos de incêndio em vários locais. Grandes cidades como Paris sofriam
com recordes de temperaturas nunca registados antes e o consumo de água
aumentava. Por outro lado, os gelos derretem-se cada vez mais e a água
torna-se cada vez mais escassa. As fontes de águas subterrâneas, muitas
das quais fósseis, são uma importante reserva para o futuro e deveriam
permanecer intocadas. Mas a ganância leva as empresas engarrafadoras
como a Nestlé a adquirirem cada vez mais fontes de água. O quadro é o
mesmo em todo o planeta – as poucas águas ainda não poluídas
encontram-se cada vez mais nas mãos de poucas empresas. No Brasil do
governo Bolsonaro a situação é ainda mais grave, com um ministro do meio
ambiente cuja tarefa é facilitar a tomada dos recursos naturais
brasileiros pelo capital estrangeiro. É importante lembrar que o
principal accionista do grupo AMBEV é o cidadão suíço-brasileiro Jorge
Paulo Lemann, que certamente dispõe de excelentes canais de comunicação
com o governo da Suíça. E a AMBEV também faz parte do WRG que, aliás, já
abriu o seu primeiro escritório no Brasil para apoiar a privatização da SABESP.
O
que está a acontecer na Suíça é apenas a ponta do iceberg, a parte
visível da articulação internacional das grandes corporações e a tomada
do espaço público de decisões políticas pela oligarquia corporativa
mundial. Temos de ficar atentos e de nos organizarmos para defender as
nossas águas, a nossa Terra e a nossa sociedade.
Publicado n´O LADO OCULTO
ResponderEliminarNão podias ter feito uma súmula para não termos de ler isto tudo?
Ah, já sei... é uma estratégia para nos teres cá amanhã de novo. 😊
Eu volto... vou ali dormir e volto mais tarde.
Beijinhos ensonados
(^^)
Longo mas verdadeiro.
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