28 abril, 2024

"O MEU 25 DE ABRIL DE 1974" - I

Há muito que não me levantara tão cedo. Tinha combinado deixar o carro à porta da oficina para revisão e a chave na caixa do correio, com a indicação da matricula. Isso feito, fui apanhar o comboio na estação de Oeiras com destino a Alcântara onde tomaria a camioneta da carreira de Lisboa- Setúbal e, a meio desse trajeto, tomaria a que me levaria ao destino final as instalações da Siderurgia Nacional, em Paio Pires. No comboio, entre gente sonolenta, de nada de anormal me apercebera. Mal sabia eu que, poucas semanas depois dessa alegria de se ter aberto a uma carreira profissional que fez de mim o que sou agora, outra alegria estava guardada e esta se estenderia ao povo e que fez dele o que ele é agora. Em Alcântara, depois da passagem subterrânea, no quiosque que por ali havia, parei para beber o meu café da manhã entre um pequeno aglomerado de gente operária que comentava, de modo agitado, que de onde tinham vindo terão visto carros blindados e muitos, muitos soldados. Desvalorizei, associando tal conversa às movimentações da NATO, cuja esquadra ainda há pouco tinha, da janela do comboio, avistado não longe do Bugio. 


Foi no percurso para Paio Pires que desvaneci aquela primeira impressão. Nas camionetas, numa e noutra, eram vários os passageiros que portadores de pequenos rádios portáteis iam seguindo as notícias: “Houve um comunicado a alertar para não sairmos de casa!”; “Essa notícia foi dada por um tal posto de comando das forças armadas; “Algo de importante se está a passar, a rádio só passa marchas militares.”; “Isto é golpe, mas de que lado?”


Já nas instalações da fábrica, no pavilhão central, não me dirigi ao meu gabinete mas sim à sala ao lado onde já se tinha iniciado uma entusiástica e ruidosa conversa. E entre um ambiente de  tertúlia e o estilo de comício, as notícias iam surgindo acompanhadas de compreensível especulação de pronto desmentidas por quem citava as fontes ou pondo o rádio em som bem elevado sempre que havia novo comunicado do Movimento das Forças Armadas fazendo calar os comentários mais pessimistas e os que não escondiam o desejo de que tudo corresse mal.


Era eufórico o clima e era quase generalizada a alegria. Alguém fez o ponto-de-situação: O Terreiro de Paço está dominado; os Ministros em fuga “pela porta do cavalo”; a fragata da armada foi neutralizada; o Quartel do Carmo estava cercado pelo MFA e pelo povo apinhado”... A sala onde  estávamos seria espaçosa se não se tivesse juntado tanta gente. Engenheiros, desenhadores, preparadores de trabalho e um ou outro operário todos falavam, uns com os outros em tom tão alto que só se baixava quando acontecia ser lido mais um comunicado.


Ia a manhã por aí fora, quando na sala entra de rompante o encarregado da Oficina de Moldes que, ainda ofegante pela correria, fez apelo desesperado: “É preciso que alguém vá à CUF do Barreiro, outros à Mundet, no Seixal. Há receio que a GNR e a Policia de Choque façam trapalhada!” 


Fez-se silêncio absoluto, mas de pronto foram-se organizando e saindo. Ficaram poucos e entre eles eu. Senti um toque nas costas e virei-me. Dei com uma cara conhecida que me interroga “Tem carro? Se não tem, dou-lhe boleia pois vou para Cascais e sei que mora lá para Oeiras”.

E lá fomos, conversando sobre o sonho que se estava tornando em realidade. Deixou-me à porta da oficina onde a tempo, praticamente em cima da hora do almoço, levantei o carro não sem deixar de comentar, a quem me atendeu, o que estava acontecendo deixando-lhe o espanto estampado no rosto. 

Continua

Siderurgia Nacional - Nave de vazamento de aço líquido.

9 comentários:

  1. Gostamos mesmo de recordar os acontecimentos. E como nos comove sempre o que sentimos, como se estivéssemos a vivê-los de novo.
    Tudo de bom, meu Amigo Rogério.
    Uma boa semana.
    Um beijo.

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    1. O que escrevo, neste caso, foi a pedido... esta primeira parte é passiva, pois estávamos enclausurados na enorme fundição que era a SN.
      A segunda parte, que editarei logo à noite, conta mesmo para a História.

      É sempre um prazer recebe-la neste espaço.

      Beijo

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  2. Foi um dia inesquecível para todos nós!
    Não sei como a fragata de que nos falas foi neutralizada, mas sei que o meu ex-marido e muitos dos seus camaradas, andaram como loucos a limpar e a tentar recuperar os velhos canhões da Torre de Belém, onde se situava o quartel para o qual havia sido transferido depois de terminar a recruta na Escola Prática de Cavalaria, em Santarém. Nunca cheguei a saber se conseguiram, ou não, recuperar aquelas velhas relíquias, porque a minha euforia esbarrou no cepticismo de que estava imbuído quando finalmente chegou a casa. A ideia de ver Spínola no poder não lhe agradava nada, temia que tudo voltasse ao que era dantes.

    Forte abraço, Rogério!

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    1. Inesquecível e marcante sobretudo para quem participou, como foi o meu caso (contarei na segunda parte)

      Quanto à neutralização da fragata... o MFA não andava distraído e fez instalar no alto de Almada uma bateria com elevada potência de fogo, como força de dissuasão... mas, entretanto, a bordo também aconteceu o reviralho e a tripulação aderiu à revolução...

      Abraço grande

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    2. Também calculei que o MFA não confiasse esse hipotético fogo dissuasor aos velhíssimos canhões do forte de Belém...

      Outro abraço grande

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  3. Todos temos esse dia gravado na memória e no coração!

    Abraço

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    1. E sendo necessário perpetuar a memória escrevo sobre isso!

      Abraço

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  4. Teresa Palmira Hoffbauer29 de abril de 2024 às 12:38

    Gostei de ler „O MEU 25 DE ABRIL DE 1974“
    A maioria do povo português admira a coragem dos CAPITÃES de ABRIL.
    Esse mesmo povo que viveu 48 anos de ditadura com o terço na mão.
    Aguardo com interesse a segunda parte.

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    1. Havia só terço na mão?
      Não
      Havia, além de Fátima,
      Havia o Fado
      Havia o Futebol

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