Cap II - Por terras de Angola (cont.)
Um curandeiro eficaz
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21 – Um lugar para cada coisa, cada coisa em seu lugar – Amanhecera com o sol anémico do dia anterior. Encaminhei-me para a enfermaria. A companhia dos veteranos tinha partido com o raiar da primeira claridade do dia e era muito cedo. Resolvi ir fazer os meus arrumos nas prateleiras da farmácia e pôr as coisas a meu gosto no posto médico, onde existia uma maca, um armário clínico, um quadro de ardósia, umas quantas cadeiras e a secretária. Tudo num branco já amarelado pela “patina” do tempo. Tinha pouco para arrumar e parecia ridículo procurar flores para enfeitar o ambiente. Lá fora não havia flores e estas são são recomendáveis para um ambiente que se pretende asséptico. Limitei-me a afixar nas paredes algumas páginas de um atlas do corpo humano que tinha comprado em Lisboa do qual escolhi páginas sobre procedimentos básicos de primeiros socorros, cuidados a ter para prevenir as infecções hospitalares, reposição de luxações, garrotes e outras que, por bem ilustradas, cumpriam com o objectivo de decorar e fornecer informação adequada e eventualmente de consulta útil. Arrumei respeitosamente o estetoscópio em cima da secretária ao lado de um calendário do ano passado e por cima do livro com os dizeres “Registo diário de doentes”. Só então reparei no livro, que abri. Tinha, por linha escrita à mão, a data, o nome, indicações que pareciam indecifráveis, dizeres de diagnóstico e por fim a medicação prescrita. Foram necessários vários minutos não para reconhecer o livro, pois ele é igual a todos os que tinha visto nos hospitais militares, mas para interiorizar que a partir dessa manhã seria eu o responsável pelo seu uso. O Meu Contrário, bem acordado, dizia-me perante o silêncio da Minha Alma estremunhada: “Rogério, não te preocupes demasiado pois tens na mão o receituário, basta que acertes no diagnóstico”. Tremi, para logo Minha Alma me sossegar: “Lembra-te do que o outro te disse, pede evacuação a qualquer caso mais complicado”. Depois de ter percebido a lógica da arrumação dos medicamentos fui-me ao armário clínico e continuei a tarefa agora do material de pequena cirurgia imaginando o seu uso e a minha falta de aptidão para o acto…
22 – “Furrié dotor, esminino tem muntu quente nus cabeça e dói os corpo todo” – Estava a separar as lâminas dos bisturis, as boas das que me pareciam ser de não usar, quando o António, um dos pretos contratados como guia e tradutor, assomou à porta interrompendo “Furrié dotor dá co lecensa?” mas não a esperou e foi dizendo com ar aparentemente desesperado “Furrié dotor, esminino tem muntu quente nus cabeça e dói us corpo todo”. Enquanto dizia estas cantantes palavras, uma mulher de olhos tímidos e cara de sofrimento alheio , sendo que tal alheio lhe preenchia o colo. Era um menino com a cara de todos os meninos só que com os olhos mortiços e a respiração muito entrecortada. Seu peito arfava. Minha Alma afastou-se deste grupo e Meu Contrário disse-me com voz que me deu confiança: “Rogério, tu sabes tratar desta criança. Basta que te lembres do que a Teresa fez à tua João naquela valente constipação”. Estava convencido que esta situação era mais grave mas o Meu Contrário tinha acabado de depositar em mim grande confiança. Disse ao António para perguntar à mulher há quanto tempo estava a criança assim, se tinha vomitado, se tinha diarreia ou arrepios de frio enquanto eu próprio ia colocando o termómetro e fazendo todos os possíveis para mostrar segurança na voz e nos gestos. “Furrié dotor, mulher diz que filho num ter vómitadu nem nadas dissu, o qui tem mesmo é munta fevre e dor nus corpo todo. Diz tamem que num tem cágádu”. Vi a febre bem elevada e sempre dando mostras de segurança, parti um LM (*) em quatro. Enchi de anti-tussico meio de um outro frasco. Expliquei as tomas. De seguida passei uma compressa pela torneira e estendi a compressa molhada indicando a testa do miúdo, gesto que a mãe compreendeu. Pedi ao António para explicar à mulher que quando chegasse à sanzala repetisse esses pachos de água fria e à noite também. Dispensei recomendação para o agasalhar bem pois vinha bem enroupado. “Volta depois de amanhã” disse como despedida, que foi compreendida com a ajuda do António, admirado por tal pedido, pois era normal fazer-se àquela gente. A mulher ergueu-se mas entretanto, lembrando-me do que faltava, fiz-lhe um gesto de espera. Peguei numa pequena colher e entrei no espaço onde estavam os medicamentos, procurando qualquer coisa que servisse para libertar aquele miúdo sabe-se lá se de lombrigas ou ténias. Levei um tempo infinito na procura mas fui bem sucedido. Dei-lhe uma única colher, mal cheia… E pelo seu ar percebi que seria doce como doce era o seu olhar… Fora estava um velho que esperava. Tratei-o da coceira sarnosa já não me recordo com que unguento…
23 – “apto para todo o serviço” – Tinha de memória palavras que não sabia serem as exactas, como resultado da minha inspecção prévia ao ingresso no serviço militar: “Apto para todo o serviço”. Seria? Olhei para o estetoscópio e percorri as imagens que havia colocado na parede. Tomei uma decisão: ultrapassar-me. Foi assim que fiquei por ali a estudar o registo de doentes para perceber o que fora ministrado de forma igual para diagnósticos diferentes e dessa arrevesada maneira tentar entender o campo de aplicação de cada fármaco. Li e reli horas a fio, com a Minha Alma quieta e o Meu Contrário calado. Ambos estavam do meu lado…
24 – “só apareceu o António” – No dia seguinte, lá fui para a minha tarefa de curandeiro mal formado. Esperei por quem aparecesse. O cabo maqueiro também apareceu e ficou por ali limpado o pó, varrendo o chão e fervendo seringas e agulhas. O tempo passava e ninguém chegava. Por fim chegou um sorridente António. “Furrié, esmino já brinca um bucado. Cagou tanto bicho que mulhé chamou todo o kimbo pra vê”. Sorri também, contei ao cabo o sucedido na véspera e fui emendar o registo. Risquei “pneumonia” e escrevi “constipação”, sem estar bem certo do termo mais adequado ou se a emenda se justificava...
22 – “Furrié dotor, esminino tem muntu quente nus cabeça e dói os corpo todo” – Estava a separar as lâminas dos bisturis, as boas das que me pareciam ser de não usar, quando o António, um dos pretos contratados como guia e tradutor, assomou à porta interrompendo “Furrié dotor dá co lecensa?” mas não a esperou e foi dizendo com ar aparentemente desesperado “Furrié dotor, esminino tem muntu quente nus cabeça e dói us corpo todo”. Enquanto dizia estas cantantes palavras, uma mulher de olhos tímidos e cara de sofrimento alheio , sendo que tal alheio lhe preenchia o colo. Era um menino com a cara de todos os meninos só que com os olhos mortiços e a respiração muito entrecortada. Seu peito arfava. Minha Alma afastou-se deste grupo e Meu Contrário disse-me com voz que me deu confiança: “Rogério, tu sabes tratar desta criança. Basta que te lembres do que a Teresa fez à tua João naquela valente constipação”. Estava convencido que esta situação era mais grave mas o Meu Contrário tinha acabado de depositar em mim grande confiança. Disse ao António para perguntar à mulher há quanto tempo estava a criança assim, se tinha vomitado, se tinha diarreia ou arrepios de frio enquanto eu próprio ia colocando o termómetro e fazendo todos os possíveis para mostrar segurança na voz e nos gestos. “Furrié dotor, mulher diz que filho num ter vómitadu nem nadas dissu, o qui tem mesmo é munta fevre e dor nus corpo todo. Diz tamem que num tem cágádu”. Vi a febre bem elevada e sempre dando mostras de segurança, parti um LM (*) em quatro. Enchi de anti-tussico meio de um outro frasco. Expliquei as tomas. De seguida passei uma compressa pela torneira e estendi a compressa molhada indicando a testa do miúdo, gesto que a mãe compreendeu. Pedi ao António para explicar à mulher que quando chegasse à sanzala repetisse esses pachos de água fria e à noite também. Dispensei recomendação para o agasalhar bem pois vinha bem enroupado. “Volta depois de amanhã” disse como despedida, que foi compreendida com a ajuda do António, admirado por tal pedido, pois era normal fazer-se àquela gente. A mulher ergueu-se mas entretanto, lembrando-me do que faltava, fiz-lhe um gesto de espera. Peguei numa pequena colher e entrei no espaço onde estavam os medicamentos, procurando qualquer coisa que servisse para libertar aquele miúdo sabe-se lá se de lombrigas ou ténias. Levei um tempo infinito na procura mas fui bem sucedido. Dei-lhe uma única colher, mal cheia… E pelo seu ar percebi que seria doce como doce era o seu olhar… Fora estava um velho que esperava. Tratei-o da coceira sarnosa já não me recordo com que unguento…
23 – “apto para todo o serviço” – Tinha de memória palavras que não sabia serem as exactas, como resultado da minha inspecção prévia ao ingresso no serviço militar: “Apto para todo o serviço”. Seria? Olhei para o estetoscópio e percorri as imagens que havia colocado na parede. Tomei uma decisão: ultrapassar-me. Foi assim que fiquei por ali a estudar o registo de doentes para perceber o que fora ministrado de forma igual para diagnósticos diferentes e dessa arrevesada maneira tentar entender o campo de aplicação de cada fármaco. Li e reli horas a fio, com a Minha Alma quieta e o Meu Contrário calado. Ambos estavam do meu lado…
24 – “só apareceu o António” – No dia seguinte, lá fui para a minha tarefa de curandeiro mal formado. Esperei por quem aparecesse. O cabo maqueiro também apareceu e ficou por ali limpado o pó, varrendo o chão e fervendo seringas e agulhas. O tempo passava e ninguém chegava. Por fim chegou um sorridente António. “Furrié, esmino já brinca um bucado. Cagou tanto bicho que mulhé chamou todo o kimbo pra vê”. Sorri também, contei ao cabo o sucedido na véspera e fui emendar o registo. Risquei “pneumonia” e escrevi “constipação”, sem estar bem certo do termo mais adequado ou se a emenda se justificava...
CONTINUA 2ª FEIRA
(*) LM, Laboratório Militar, todos os medicamentos fabricados neste laboratório tinham a marca LM. Neste caso, tratava-se de um sucedâneo da Aspirina.
e eu sorri, também... nada como uma criança voltar às suas brincadeiras. mas, o que vem aí... é algo mais que uma simples constipação[ou lá o que seria]... eu sei que si. e isso deixa-me tensa. não sei porquê... mas deixa.
ResponderEliminarabraçinho terno...
Caro Rogério
ResponderEliminarAcredite que comentar episódio a episódio dos "caminhos do seu navegar" é um exercício que se faz com gosto, pois sinto que tambem eu estou a aprender e perceber como se pode ser humano naquilo que representou a desumanidade do regime colonial.
Um dia destes o meu caro escreveu a propósito da "chuva dissolvente" que esse video devia passar nas escolas. Eu digo que o seu "caminhos do meu navegar" devia ser transformado num manual escolar. Não veja isto como qualquer bajulice, digo-o com convicção.
Abraço
Não sabia da existência dos LM.
ResponderEliminarDiga-me: é enfermeiro? É que não entendo muito bem como lhe deram o cargo.
E, felizmente, que a criança lá evacuou, pobrinha rrs
Bom fim de semana.
Caro Rogério,
ResponderEliminarPasso por aqui só para dizer que continuo a ler a sua "saga". Espero lê-la até ao último capítulo e, então, farei um comentário final. Como fui criado em Angola, dos três aos 29 anos de idade, compreenderá que muitas das situações que conta não são novidade para mim. Vi coisas muito más e, outras, fantásticas, no que se refere à convivência entre raças. A mim, pelo que vivi e aprendi na vida, e na leirura, não me custa nada perceber como se pode ser humano em qualquer situação. Mesmo nas extremas.
Estou a gostar e está muito bem enquadrado e bem escrito.
Um abraço,
Caro Rogério
ResponderEliminarA cada capítulo que leio sinto em mim crescer uma certa ansiedade de ler o próximo, o ser humano é realmente surpreendente e muito dificíl de compreender, lamentável é não existir neste mundo mais humanidade como esta que o amigo Rogério nos transmite.
Bem-haja
Beijinho
Rogério...
ResponderEliminarNão há dúvida de que me surpreende a cada passo, ou melhor, a cada capítulo.
Fico bastante mais satisfeita em o ver assim curando febres e espero que bastantes meninos...não o conseguia imaginar de arma na mão...
Está a ser uma delícia vir aqui.
Abraços
Vim hoje, ao sábado sabe melhor... deu para ler com mais calma...
ResponderEliminarBjos
Já li. Mas vou deixar de comentar. Parece-me supérfluo. Comentar o que sentiu? O que viveu? Oh Rogério, deixar-lhe-ei o meu melhor sorriso, como forma de agradecimento e incentivo a continuar.
ResponderEliminar:)))
Queridos amigos,
ResponderEliminarAs palavras de incentivo são-me necessárias. Assim como Eu não passo sem cafeina, Meu Contrário não vive sem nicotina, a Minha Alma precisa dessa droga doce e estimulante que é o vosso comentário, diário.
Obrigado pela dose de hoje...
Mas há as perguntas pertinentes da São:
- "Não sabia da existência dos LM..." Respondo-lhe para já que o Laboratório Militar chegou a produzir, para a guerra colonial e tropas continentais, gama muito alargada de medicamentos do tipo que hoje são designados por "genéricos". Esta produção viria a ser descontinuada, talvez sobre a pressão dos laboratórios de marca e lobis das multinacionais farmaceuticas. Irei falar um pouco disso...
- "Diga-me: é enfermeiro? É que não entendo muito bem como lhe deram o cargo." Foi assim: Em 1967, Outubro ou Novembro, fiz testes psicotécnicos, menti sobre a minha actividade profissional (dizendo-me delegado de propaganda médica) e escolhí a especialidade farmaceutica. Foi seleccionado para os serviços de saúde militar. Curso de três meses. Estágio de 10 meses. Entretanto fui promovido a furriel enfermeiro. Depois da guerra e passagem à disponibilidade deixei de exercer, na vida civil, tal profissão e nem sequer fiz qualquer tentativa para isso. Fiz até por esquecer...
Não passei por essa terrível guerra colonial mas tenho conhecimento de testemunhos vividos de pessoas como o meu caro amigo que tendo sido violadas nos seus valores mesmo assim prestaram serviços de grande humanidade.
ResponderEliminarA ditadura fascista massacrou povos utilizando como carne para canhão os nossos jovens em nome da barbárie e de interesses contrários a Prtugal e aos povos colonizados.
Os seus textos expõem a irresponsabilidade do sistema mas dão nota da sua personalidade de homem bom a cumprir ordens dos senhores da miserável guerra.
Não apagar memórias creio ser o seu objectivo - por isso aplaudo o seu esforço de condenação da canalha responsável pelo massacre de tantas formas imposto.
Abraço
continuarei a seguir os seus relatos e se me permite
ainda bem que não seguiu a "profissão"
Puma,
ResponderEliminarEstá agendada a página deste meu rascunho onde escreverei sobre a consciência (e da falta dela) que se tinha na altura sobre esses e outros actos da ditadura...
(sinto-me honrado por ser por si acompanhado.)
Que raio de médico. lololol
ResponderEliminarCom o meu derrame pleural, estava morto. hahaha
...e eu continuo aqui lendo e adorando.
ResponderEliminarSalete
Polittikus,
ResponderEliminarMédicos assim engendrados, como eu, houve milhares entre 1961 e 1974 furrieis milicianos sem qualquer preparação tiveram que enfrentar situações dificeis de descrever. Uns foram se safando outros sabe-se lá o que terão feito... O seu humor é um bocado deslocado e não o acho capaz de brincar com uma realidade tão deprimente. Só por ignorância o estará fazendo, creio eu...
Salete
ResponderEliminarObrigado
por estar aqui ao meu lado...
Embora atrasada :-( peço desculpa mas tive uma semana complicada, mas nada comparada com as peripécias que deve ter vivido naquela enfermaria ;-)
ResponderEliminarAcertou logo no primeiro caso, acho que os anjos estavam do seu lado, ou seria a sua alma de escritor a reter cada episódio para agora nos deslumbrar.
Estou à espera do que se segue :-)
Beijinhos
Penso que a modéstia do narrador não nos deixa perceber com precisão os seus reais conhecimentos na arte de tratar os outros.
ResponderEliminarPodem até ser escassos os recursos, mas é grande a vontade... E quando o homem sonha...
Um beijo
Alexandre,
ResponderEliminarDeste meu rascunho, passado a limpo e revisto, poderá sair um livro
Fê
Meu pássaro azul, tenho um outro ramo para pousar na minha árvore...
Lidia,
Palavras tão bonitas...
Obrigada pelos esclarecimentos
ResponderEliminarUm abraço
Querido amigo Rogério,
ResponderEliminarSempre me surpreendes pela positiva.
Já te sabia "enfermeiro/médico" à força, mas digo-te que és bem melhor do que muitos do reias que encontramos nos nossos consultórios.
Diagnóstico errado, mas pelo sim pelo não, uma pequena colher de desparasitante e assunto resolvido.
A substituição do nome do diagnóstico, para constipação, estaria mais próximo da verdade de estivesses no Reino Unido ou noutro país onde de falasse inglês :)
Adorei, como sempre.
Lamento se me falta o tempo para (re)visitar todos os amigos.
Espero ansiosamente pela publicação deste livro, que apesar da crise que enfrentamos, será certamente um best-seller.
Beijinhos
Ná