(...) O tom de voz que me saiu tê-la-á feito perder os receios de qualquer possível ira, que ela, certamente supunha ser comum entre os militares. Voltou a sentar-se, não directamente no chão, mas sobre os calcanhares e de forma a disponibilizar o regaço para aí colocar o bebé, virado para mim. Minha Alma, que até aí se mantivera calada, arriscou uma piada:
«Com que então, seu maroto, tens uma criança e não dizias nada.»
Como costume, não liguei e dei mais atenção a outra voz, a do cabo, que me remeteu para a possível explicação do que se estava a passar:
«Meu furriel, essa não é a mulher a que assistiu ao parto em que o puto estava a passar-se, lá na sanzala da Lemba?»
Não, não me lembrava da mulher e, entre um recém-nascido e aquela criança já de meses, não haveria quem se lembrasse. A mulher falou palavras que não entendi ao mesmo tempo que elevava o bebé, para o pôr de pé sobre as coxas, exibindo-me o menino que palrou baixinho e sorrindo, por certo agradado pela posição. Acariciei-lhe a face e reparei que não só ela, também o filho, vinham trajados ao gosto europeu, um babygrow azul claro, cor rara num gosto africano, todo dado a tons fortes e vibrantes.
«Veio mostrar-lhe a criança», sugeriu o cabo, tranquilizando-me perante um mundo de incertezas. Só nesse momento eu sorri. Ela, a mãe, sorriu também. O sorriso serviu para me dar conta de quão nova seria. Talvez dezasseis ou dezassete anos, não mais. Sem palavras dizer e, com a agilidade de quem faz o gesto mil vezes ao dia, encavalitou o filhote sobre as costas desnudadas, passando-lhe o pano de forma a protegê-lo nessa posição e atando-o à frente sobre os seios rijos. Ajeitou o lenço, mais uma vez sorriu e partiu, esboçando uma corridinha, parada um pouco à frente para se voltar, acenar um adeus, para voltar a correr até retomar o passo com que iria percorrer a jornada de regresso até à sua sanzala. Minha Alma confirmou o que todos já tínhamos entendido:
«Veio dar-to a conhecer.»
Fiquei ali até os ver desaparecer ao longe, como se perdendo no mar ondulado do capim verde sob um céu azul que cobria tudo…
Regressei sozinho, pois o cabo entretanto tinha já retomado os seus afazeres. No retorno, ia reconstituindo todos os acontecimentos daquele dia, sete meses passados, talvez um pouco menos. Lembrava-me a expressão aflita do mensageiro, não condizente com a comicidade do dito:
«Furrié doutor, a mulher tá parindo e tem us filhu cum pé nus dentro outro nus fora.»
Percebi a situação e a aflição fazia adivinhar um parto difícil. A todos os partos a que fora chamado, tinha chegado atrasado sem mais nada poder fazer do que constatar o óbito. Com o cabo e o mensageiro lá fomos, com a pressa de chegar a tempo, pois pelo recado a mulher estaria, há mais de duas horas, em trabalho de parto, como todos, complicado. Chegados, era grande o alarido, entre choros e vozes que pareciam rezas. Tudo mulheres, quase todas idosas. Ao ar livre, no chão sobre uma esteira uma mulher nova com esgar de dor, em sofrimento aflito olhava o recém-nascido, nu e inerte, entre as mãos de uma mulher que se abeirava de um de dois alguidares de plástico, prontos para a reanimação. Saltei do jipe parado próximo, quase rente àquele grupo de gente. Mandou a intuição que de pronto percebesse a situação e a forma de agir, sem desacreditar no insucesso do que me aprontei para fazer. Com uma rapidez que a mim próprio me surpreenderia se me estivesse a observar, mandei a mulher parar com um berro tão firme que parou, mesmo sem perceber o que eu estaria a dizer. Ao mesmo tempo, retirei da bolsa de maqueiro o kit de administração de soro. Cortei junto ao frasco de plástico, o tubo de calibre fino cortando também, na extremidade, o suporte de fixação da agulha, dispensável para a minha improvisada sonda de aspiração. Lembro-me que me pareceu um tanto grosso para aquela função, mas era o que havia. Colocado com o devido cuidado não lhe provocaria lesões. O que ia fazendo parecia fazer sentido à mulher que empunhava o menino, pois logo esta o pôs a jeito para ser entubado. Foi o que fiz, enfiando-lhe a sonda pelo pequeno nariz, penetrando a distância de menos de uma mão-travessa, não fosse ferir tão pequena criança. Suguei com força, quase demais, pois as secreções retiradas quase me chegavam à boca. Repeti depois a operação mas dessa feita pela garganta. Tudo em gestos muito rápidos mas com tal destreza que parecia ter feito, o que fizera, vezes sem conta. Ia começar nova tentativa, quando um soluço forte seguido do que me pareceu um espirro meio engasgado, me fez interromper. Tinha, assim, mais que os sinais vitais. Tinha a rejeição daquele corpito aflito àquela violenta intromissão. Tinha a vida inteira, pequenina e regressada. Chegara talvez no último segundo útil para lhe salvar a vida. Acho que suspirei bem fundo e o mulherio calou-se. Não me recordo se alguém agradeceu. A última imagem, foi a da mãe a abraçar o filho e julgo não lhe ter dito o quer que seja. Perdida a adrenalina perdi o senso de estar e do que fazer. De regresso, o cabo, que não se tinha feito sentir, vinha contando pelo caminho, eufórico, pormenores que me escaparam e que entretanto esqueci. Agora, naquele dia, a mãe tinha aparecido para me mostrar o filho e, de certa maneira, agradecer. Foi um dia bonito aquele último dia no aquartelamento da Roça da Fazenda Costa em que o capim parecia o mar e o céu continuava muito azul, cobrindo tudo… até aparecer a Maria do Sol. (...)
Rogério Pereira, in "Almas que não foram fardadas", pág. 86/87