07 julho, 2012

Pelo que aconteceu, nestes dias, me lembrei de competências desaproveitadas... Quem sabe se não poderia obter os créditos necessários...

(...) O tom de voz que me saiu tê-la-á feito perder os receios de qualquer possível ira, que ela, certamente supunha ser comum entre os militares. Voltou a sentar-se, não directamente no chão, mas sobre os calcanhares e de forma a disponibilizar o regaço para aí colocar o bebé, virado para mim. Minha Alma, que até aí se mantivera calada, arriscou uma piada: «Com que então, seu maroto, tens uma criança e não dizias nada.» Como costume, não liguei e dei mais atenção a outra voz, a do cabo, que me remeteu para a possível explicação do que se estava a passar: «Meu furriel, essa não é a mulher a que assistiu ao parto em que o puto estava a passar-se, lá na sanzala da Lemba?» Não, não me lembrava da mulher e, entre um recém-nascido e aquela criança já de meses, não haveria quem se lembrasse. A mulher falou palavras que não entendi ao mesmo tempo que elevava o bebé, para o pôr de pé sobre as coxas, exibindo-me o menino que palrou baixinho e sorrindo, por certo agradado pela posição. Acariciei-lhe a face e reparei que não só ela, também o filho, vinham trajados ao gosto europeu, um babygrow azul claro, cor rara num gosto africano, todo dado a tons fortes e vibrantes. «Veio mostrar-lhe a criança», sugeriu o cabo, tranquilizando-me perante um mundo de incertezas. Só nesse momento eu sorri. Ela, a mãe, sorriu também. O sorriso serviu para me dar conta de quão nova seria. Talvez dezasseis ou dezassete anos, não mais. Sem palavras dizer e, com a agilidade de quem faz o gesto mil vezes ao dia, encavalitou o filhote sobre as costas desnudadas, passando-lhe o pano de forma a protegê-lo nessa posição e atando-o à frente sobre os seios rijos. Ajeitou o lenço, mais uma vez sorriu e partiu, esboçando uma corridinha, parada um pouco à frente para se voltar, acenar um adeus, para voltar a correr até retomar o passo com que iria percorrer a jornada de regresso até à sua sanzala. Minha Alma confirmou o que todos já tínhamos entendido: «Veio dar-to a conhecer.» Fiquei ali até os ver desaparecer ao longe, como se perdendo no mar ondulado do capim verde sob um céu azul que cobria tudo…

Regressei sozinho, pois o cabo entretanto tinha já retomado os seus afazeres. No retorno, ia reconstituindo todos os acontecimentos daquele dia, sete meses passados, talvez um pouco menos. Lembrava-me a expressão aflita do mensageiro, não condizente com a comicidade do dito: «Furrié doutor, a mulher tá parindo e tem us filhu cum pé nus dentro outro nus fora.» Percebi a situação e a aflição fazia adivinhar um parto difícil. A todos os partos a que fora chamado, tinha chegado atrasado sem mais nada poder fazer do que constatar o óbito. Com o cabo e o mensageiro lá fomos, com a pressa de chegar a tempo, pois pelo recado a mulher estaria, há mais de duas horas, em trabalho de parto, como todos, complicado. Chegados, era grande o alarido, entre choros e vozes que pareciam rezas. Tudo mulheres, quase todas idosas. Ao ar livre, no chão sobre uma esteira uma mulher nova com esgar de dor, em sofrimento aflito olhava o recém-nascido, nu e inerte, entre as mãos de uma mulher que se abeirava de um de dois alguidares de plástico, prontos para a reanimação. Saltei do jipe parado próximo, quase rente àquele grupo de gente. Mandou a intuição que de pronto percebesse a situação e a forma de agir, sem desacreditar no insucesso do que me aprontei para fazer. Com uma rapidez que a mim próprio me surpreenderia se me estivesse a observar, mandei a mulher parar com um berro tão firme que parou, mesmo sem perceber o que eu estaria a dizer. Ao mesmo tempo, retirei da bolsa de maqueiro o kit de administração de soro. Cortei junto ao frasco de plástico, o tubo de calibre fino cortando também, na extremidade, o suporte de fixação da agulha, dispensável para a minha improvisada sonda de aspiração. Lembro-me que me pareceu um tanto grosso para aquela função, mas era o que havia. Colocado com o devido cuidado não lhe provocaria lesões. O que ia fazendo parecia fazer sentido à mulher que empunhava o menino, pois logo esta o pôs a jeito para ser entubado. Foi o que fiz, enfiando-lhe a sonda pelo pequeno nariz, penetrando a distância de menos de uma mão-travessa, não fosse ferir tão pequena criança. Suguei com força, quase demais, pois as secreções retiradas quase me chegavam à boca. Repeti depois a operação mas dessa feita pela garganta. Tudo em gestos muito rápidos mas com tal destreza que parecia ter feito, o que fizera, vezes sem conta. Ia começar nova tentativa, quando um soluço forte seguido do que me pareceu um espirro meio engasgado, me fez interromper. Tinha, assim, mais que os sinais vitais. Tinha a rejeição daquele corpito aflito àquela violenta intromissão. Tinha a vida inteira, pequenina e regressada. Chegara talvez no último segundo útil para lhe salvar a vida. Acho que suspirei bem fundo e o mulherio calou-se. Não me recordo se alguém agradeceu. A última imagem, foi a da mãe a abraçar o filho e julgo não lhe ter dito o quer que seja. Perdida a adrenalina perdi o senso de estar e do que fazer. De regresso, o cabo, que não se tinha feito sentir, vinha contando pelo caminho, eufórico, pormenores que me escaparam e que entretanto esqueci. Agora, naquele dia, a mãe tinha aparecido para me mostrar o filho e, de certa maneira, agradecer. Foi um dia bonito aquele último dia no aquartelamento da Roça da Fazenda Costa em que o capim parecia o mar e o céu continuava muito azul, cobrindo tudo… até aparecer a Maria do Sol. (...)
 

Rogério Pereira, in "Almas que não foram fardadas", pág. 86/87

17 comentários:

  1. Muito bem Sô Dôtô. Gostei desta sua interessante narrativa (cá continuo à espera que a minha livraria me telefone para lá ir buscar o livro) e o contexto está muito bem enquadrado nos tempos que corre.

    Infelizmente faz-me lembrar uma cena em que se fez precisamente o contrário. A mulher estava grávida em fim de tempo, pedidos de ajuda, não havia tempo a perder, não sei o que terá acontecido, que naquele ermo não haveria senão algum feiticeiro sem poderes para aquele caso.

    Tinha acabado de deixar um comentário azedo com vinagre no post anterior. Gravei e aqui estava este.

    Foi só apanhar a embalagem. Mas o tema e o estilo justificam em absoluto.
    Aprovado plenamente, senhor Doutor.

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  2. Cá por mim era licenciamento, mestrado e doutoramento, tudo duma vez e ainda com distinção.
    Exagero! Não comparado com o que para aí anda...
    Agora imaginemos, quantos DR.s fabricados à pressão não andam por aí.
    Até estou a beber uma "Genebra" para ver se me passa a Azia.
    Abraço Sr. Dôtô.
    Rodrigo

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  3. Olha Rogério! Chorei...
    E o porquê o sei.

    Beijo

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  4. Meu caro
    esta coisa de ser doutor da mula russa

    se fosse do juri
    acho que não merecias

    O Relvas é um analfabeto

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  5. Penso que seria mais honesto darem-te o diploma do que darem a relvas...

    Abraços

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  6. Quem escreve assim, tem um saldo muito elevado, não precisa de mais créditos. O "outro", está bem negativo, tenta tapar o buraco, só que cada vez se afunda mais.

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  7. Que bonito!

    Mas como é que o "Dôtô" conseguiu ter aqueles comportamentos todos e tão decidida e atempadamente? Bolas! Bolas! Que coragem!

    Como dizem os comentadores anteriores e eu vinha já pronta para dizer: Para a Lusófona já para receber o mestrado e quiçá o doutoramento em Pediatria!!!

    Beijinho

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  8. Rogério,

    O que li deixou-me arrepiada. Tinha lido o texto com que inicia este texto, sobre as competências. Confesso, que ao embrenhar-me na leitura passou para segundo plano. Somente após ter chegado ao final a minha mente regressou às suas palavras iniciais... Competências desaproveitadas... poderia sim obter créditos... com mérito e não como quem vemos por aí.
    Obrigado,
    Bjs
    Susana

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  9. Caro Rogério,
    Este meu comentário pode parecer que lhe estou a dar "graxa", mas não estou.

    Eu ganhei um respeito imenso pelos enfermeiros militares das unidades destacadas no mato, em África. Ganhei um respeito imenso, tanto pelos furriéis, como (ainda mais - desculpe a sinceridade) pelos cabos. Quantas vezes, uns e outros tiveram que fazer de médicos, sem terem preparação nem meios para tal. Quantas vezes! E quantas situações desesperadas eles tiveram que resolver, recorrendo à sua intuição. E resolveram, muitas vezes também. Era preciso que eles tivessem nervos de aço, e tinham!

    Quanto ao comentário que fiz relativamente aos cabos enfermeiros, pensei naqueles que tinham que acompanhar as tropas nas operações militares, carregados com uma pesada bolsa. Alguns furriéis também o fizeram, mas muito mais esporadicamente.

    Durante as operações militares, os enfermeiros corriam os mesmos riscos que os seus camaradas e ficavam debaixo de fogo tal e qual como eles. Ainda por cima, tinham que estar sempre disponíveis (e estavam!) para acudir às situações de emergência que apareciam, acontecesse o que acontecesse e por mais esgotados fisica e psiquicamente que estivessem.

    Então quando havia feridos graves em combate, os enfermeiros eram verdadeiramente heroicos ao tentarem manter vivos a todo o custo homens que tinham os seus corpos destroçados, até que chegasse um helicóptero para fazer a evacuação!

    Se houve heróis na guerra, foram os enfermeiros, não tenhamos dúvidas absolutamente nenhumas.

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  10. .

    .

    . eu re.digo a são . pois re.digo .

    .

    .

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  11. (A)creditar (n)a vida.
    Muito bom!

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  12. Uma leitura agraável...mas me assustei a um ponto..."queredo"!
    Nova...mas mãe..."veio-lho mostrar"! No todo...gostei...ouvindo lá fora o vento roçar-se nas copas das árvores do meu quintal...
    Bj

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  13. É uma dupla emoção quando o Rogério nos traz as memórias dos "Caminhos do Meu Navegar".
    Apesar de ter o livro lido e relido e, neste momento, aberto nas páginas em que relata esses acontecimentos, sinto saudade do tempo em que esperavamos com ansiedade os episódios daquilo que o Rogério ia escrevendo.
    Tentei aceder aos comentários efectuados na altura, e com grande pena minha não me foi possível.
    Adivinhasse eu que eles se iriam perder no tempo e tê-los-ia copiado e guardado.

    E agora referenciando o título que deu azo a este post, não tenha dúvidas Rogério, de que as experiências da vida valem tanto ou mais do que os doutoramentos universitários.
    Um beijo com emoção.

    PS. "Furrié doutor, a mulher tá parindo e tem us filhu cum pé nos dentro e outro nus fora".

    Se eu não esqueço, como poderá o Rogério esquecer?

    Abraço!

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  14. Claro que tem os créditos e o mérito necessário para uma ou várias licenciaturas.
    Fez-me bem reler de novo, e de novo me comovi.

    beijinhos

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  15. Muito bem "repescado" este texto
    pleno de atualidade. Por um lado, as competências e as (in)competências, por outro lado a degradação rápida a que assistimos, na prestação dos cuidados de saúde.

    Salva-se o prazer da leitura.

    Lídia

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  16. foi um dia bonito

    e são três vidas bonitas.

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