21 maio, 2016

O papelinho


Na véspera da consulta aprazada, cumprindo a rotina das horas, abriu o "portátil" e o papelinho lá estava. Numa folha de bloco, rasgada fora do picotado, em letra bem redondinha, lá estava o recado. Melhor dizendo, eram sete os recados como se fossem seus pecados. Ela tinha-o avisado de que os haveria de escrever para ele não se esquecer. Guardou o papelinho na algibeira das calças, que é o que costumava fazer quando não lhe ocorria outro destino a coisas que ia encontrando...

No dia seguinte, cumpridos os procedimentos até à chamada, ia passando em revista o discurso preparado. Apesar de há muito não ser "visto" e ele e a "médica de família" tinham uma relação cúmplice como só os bons médicos conseguem desenvolver e assim, ele contava com essa arte para o que desse e viesse. 

Ouviu o seu nome e o número do gabinete. Entrou, e ficou desarmado. Sorrindo, estavam dois estagiários. Um de pé, ela sentada. Tudo o que tinha pensado ficou nesse mesmo momento comprometido. Pensou no papelinho. E, antes que o interrogatório se iniciasse, colocou-o ainda amarfanhado colocou-o diante da estagiária, ainda meio dobrado. "Está tudo aí!" 

A jovem leu atentamente quantos uísques bebia por dia, os cigarros fumados, a tensão elevada, o colesterol registado na farmácia e as situações em que abanava a cabeça sem que ele desse por nada mas que no papelinho aparecia, afirmando que ele o fazia... 

Gerou-se um colóquio descontraído, sério, de quando em quando entremeado com fina ironia e muitos sorrisos. A meio, a médica de família apareceu, e a consulta continuou com ele a ser passado a "pente-fino", pesado, medido e auscultado. No fim a médica-nada-estagiária olhou-o nos olhos e perguntou-lhe qual a promessa que ele aceitava cumprir. Ele disse. Ela pôs visto em todos os itens do papelinho e assinou por baixo, mas omitindo a promessa. "Basta-me a sua palavra!"

Epilogo

Passada uma semana, a promessa estava a ser cumprida. As marchas à beira-Tejo, no "passeio marítimo", são um regalo, e ela, a autora do papelinho, marchava orgulhosa a seu lado. 
(quando tiver o resultado das análises, digo)
 

12 comentários:

  1. Faz muito bem em cumprir a promessa.
    Cuide-se que não há maior bem que a saude.
    Abraço

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  2. Caro amigo, seu relato parecem nossas visitas familiares,sim aqui o médico nos atende por atacado, para evitar que não cumpramos a promessa feita em meio a emoção da consulta.
    Rogo morrermos saudáveis o mais tarde possível.

    Tente manter-se na linha.
    Abraços

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    1. Adelaide,
      Nada como haver
      médico que nos aperte
      e companhia
      que nos pressione

      Quanto à linha...
      (ainda não tenho "barriguinha"!)

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  3. Nada mau!...

    Se é só cumprir uns certos procedimentos, não custa nada. Eu zango-me é por que de cada vez que me pergunta se faço eu digo que sim (e sim). E sei que ainda assim...

    :) não morrerei cheia de saúde!

    Um bom domingo!

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  4. Não me fales em papelinhos, Rogério, que eu tenho a casa transformada num sucedâneo da Torre do Tombo... mas não faço promessas, embora a simples ideia de beber um uísque me provoque arrepios e náuseas; quando as nossas dislipidémias são metabólicas - no SAAFs, mazela auto-imune como todas as que os genes fizeram o favor de me legar - é o próprio organismo que segrega uma lipo-proteína e não deixará de o fazer mesmo que eu me limite a alimentar-me de H2o durante o resto dos meus dias... quanto à tiroidite auto-imune de Hashimoto, também não deixará de lançar as suas imuno-globulinas e os seus anti-corpos, faça eu o que fizer, e já me deixou demasiado "baixas" na destreza e na força muscular; até na criatividade e na minha maior - e única... - riqueza, a competência linguística, ela tenta fazer das suas... é sobretudo conta esta derradeira "investida" que me rebelo e tento desenvolver estratégias de sobrevivência. Não me interessa nada morrer saudável, uma vez que nunca o fui - coisas das hereditariedades...-, mas faço questão de morrer lúcida e criativa!
    O mais tarde possível, claro está, mas apenas e tão só se puder continuar a investir todo o meu tempo e todo vigor na poesia! (porque ela também é uma arma...)

    Abraço!


    Maria João

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    1. "mas faço questão de morrer lúcida e criativa!"

      eis um bom objectivo, Poeta!

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    2. Só volto logo para ver das novas conversas, Rogério. Estou mesmo de saída para consultas e "papeladas" burocráticas urgentíssimas.

      Outro abraço!

      Maria João

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  5. Se apesar de eu não fumar,
    o sabor dessa bebida amarga detestar
    não ter, pertinho, pertinho
    um passeio com cheirinho a maresia
    ter a médica de família
    sempre a faltar, justo
    quando me marcou a consulta
    para aquele dia...
    como poderei eu ter qualidade
    de vida, ânimo e genica?

    Ou vou viver para Oeiras
    ou então para a Caparica...

    Papelinhos? Nem pensar!!

    :(

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    1. Tem razão Janita
      Quem quer bons Centros de Saúde
      tem de lutar por eles

      Quanto aos meus hábitos
      são sequelas da guerra
      vícios
      antigos
      que eu tento moderar
      (tento morrer
      sem me matar)

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