A história é breve, embora entre um e outro acontecimento medeie a esperança de vida de um galo. Eu conto, pois apesar de bem miúdo ainda me lembro de (quase) tudo.
A minha avó Mariana chamou-me depois de ter espreitado - "Estão a nascer, anda cá. Vem ver", e levou-me com ela por aquele grande terreiro baptizado de galinheiro, mas onde, além de galinhas, haviam coelhos, patos e pombos, todos partilhando o espaço mas com retiro adequado a sossego de cada um. Fui ver os pintainhos a nascer. Dois já tinham picado e destes, um deles, tinha a cabecita quase toda de fora do ovo. Adiantou-se o ver ao conhecimento do facto, pois nunca tinha ouvido falar que era assim. Levaram dois dias para saltarem todos para a vida, mas o primeiro saltou cedo, pouco mais de uma boa hora depois de ter espreitado. Minha avó, experiente, disse "Esse é frango e é aleijado". E era as duas coisa. Quanto ao diagnóstico da deficiência, o pintainho não se detinha de pé. Dava duas passaditas e mergulhava de bico, na poeira. O resto das férias passei-as na brincadeira e a assistir à persistência paciente de minha avó Mariana, mergulhando as patas do pequenito galináceo em vinho tinto, depois de levemente aquecido.
Meses depois o pinto já era um frango emproado. Reconhecia minha avó Mariana como sua mãe e atrás dela corria para onde quer que ela ia. Se ela parava, o frango empoleira-se num qualquer baixo beiral ou saliência e ficava ali, estupidificado, esperando que ela acabasse e fosse para qualquer outro lado. Vivia fora do galinheiro, em cuidados continuados.
Passaram anos. Uns poucos, pois os galos possuem larga longevidade e este usava-a com maldade. Desde que habitou o galinheiro, nunca mais houve a paz que antes por lá havia: os pombos deixaram de poder partilhar o milho das galinhas, os coelhos perderam a liberdade e não mais saíram da coelheira e a Reca, uma pata engraçada, que reagia a todo e qualquer chamamento, perdeu o seu lugar lá dentro. O galo, além de mau, não galava. Mas o safado imperava como se todas as galinhas fossem seu harém. Perseguia as coitadas e algumas, que esperavam ser montadas, recebiam brutais agressões. Muitas perderam a crista, outras a vista. Algumas, sortudas, apenas algumas penas. De madrugada, o galo enganava com o orgulho posto no seu cantar. Cantava alto, trinado e repetido. Cantava, cantava, cantava e só parava quando pensava que tinha acordado toda a gente, parava quando toda a gente tinha acordado. Entretanto, o malvado galo era gabado por todas as quintas à volta, e toda a gente comentava "Dona Mariana, o seu galo canta que é um regalo", e a minha avó escondia-lhe o comportamento agressivo como se protegesse actos desavindos de um mau filho.
Num Natal, um dos muitos passados na quintinha dos meus avós, já eu tinha condições de retirar a moral de qualquer história, a minha avó anunciou a sua resolução: esse ano não haveria peru. E assim foi. Na noite da Natal o galo saiu à mesa. O aspecto do assado era com a mesma imponência do bicho enquanto vivo, apesar do tostado. Mas o pior aconteceu, de tão rijo, ninguém o comeu. Souberam bem os miúdos de cabidela, a merecerem lágrimas de minha avó, a correrem pelos olhos dela...
Um conto que me "soa" à memória de um Natal efectivamente vivido, este teu "Uma Consoada Chorada", Rogério, e que muito me agradou ler, neste interímem que me preparo para ir confeccionar a minha Restomenga - Roupa-Velha - de Natal.
ResponderEliminarDescobri ontem, por acaso, que o Google não sabe que "restomenga" e "roupa-velha" são designações diferentes para um único prato confeccionado a partir das sobras do bacalhau com batatas e couves da consoada... e o meu favorito, desde que me lembro de ser eu.
Para ti e todos os teus, um Feliz Dia de Natal.
Maria João
Só um Coelho rumina no presépio
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