(ler conversa anterior)
"Triste época! É mais fácil desintegrar um átomo do que um preconceito." - Albert Einstein
Aos preconceitos de outrora, e já muitos eram, juntaram-se outros, de agora. Custa até perceber, nos comportamentos das novas gerações, os que resultam de conceitos assimilados deformados e irracionais e os que se inscrevem na recusa de uma extensa lista de valores proscritos, de usos banidos, de gritos de alma proibidos, de manifestações censuráveis, e de seres a abominar. Na constante procura do reforço de poder, a classe dominante satisfaz-se com uma cultura que convive e alimenta o preconceito. Promove-o. Entre fortes e fracos, uma fatia do meio se sente com o conforto de haver gente pior que ela própria. Tem esse sentimento por manifestações que lhes entra pela casa adentro, pela leitura de revistas dos jornais. E sente-se mal, mas sem outra saída que não seja poder sentir-se pior.
Não procure tudo isso na conversa de hoje, nem tudo se mostra numa esplanada. Contudo, isso tudo está lá, dissimuladamente para além do que é evidente. E o evidente é tanto...
Imagem da net
Leio sempre o jornal no meu canto... mesmo não querendo,
as conversas delas vêm ter comigo, enquanto vou lendo.
Sentei-me e, como é meu hábito, abri o jornal. Ao lado, o lugar continuava vago, o senhor engenheiro e o seu cão rafeiro ainda não tinham chegado. .
A Teresa (a tal da "geração à rasca"), já lá estava. Continuava a chegar cedo, apostada em cumprir, na esplanada, o horário de trabalho, embora o tivesse perdido há um tempo imenso. De vez em quando eu levantava a cabeça que afundara numa ou outra página e olhava durante demorados momentos a Teresa, na esperança dela me corresponder. Mas ela, nada, olhava distraidamente o pombo que, ao longe, esperava que a esplanada se enchesse para ir debicar o quer que fosse que viesse a haver. Um pombo tem sempre de que comer. O negro melro, que também faz parte do cenário, também estava atrasado. Interrogava-me, como pode uma jovem mulher ter tal postura, metida consigo mesma, sem ocupação nem aparente interesse por nada que fosse evidente ter.
Estava eu neste esforço de compreensão quando chegaram, de uma só vez, a Gaby, a Ana e o negro melro. Este lá sobre a relva, elas se sentando ao mesmo que beijavam a Teresa. Eu disse para mim mesmo "olá princesa", ao mesmo tempo que a Gaby o fazia, em voz alta, com a costumada gentileza.
- Ainda não pediste nada?
- Não há empregado, tens de ir lá ao balcão... isto agora passou a pré-pagamento...
- Também... para o que aquele metediço sem graça fazia... só espero é que tenha regressado à terra dele, para graçolas calaceiros já bastam os nossos, que também para trabalhar são uma desgraça...
- Não digas isso, o moço até era educado...
- Brasileiro?! Ó filha, vês-se que não lês os jornais... para mim é gente que anda por aí a mais...
- Eu bebo café, o que é que querem?, eu vou buscar...
- Já agora esperamos pela Zita, não deve tardar, deve ter ido entregar o miúdo...
Esperámos todos, elas e eu, pois sem me dar conta já fazia parte do grupo. Entretanto chegou o engenheiro e o seu cão, que eu sempre considerara rafeiro por o julgar mais inteligente que os cães puros. O engenheiro prendeu o cão ao pé da mesa e entrou para ir buscar o seu galão e o bolo de arroz, como seu costume. De todos os que ali estávamos fui o primeiro a ver a Zita chegar. A Gaby, explicava à Ana as novas funcionalidades do seu "tablet" e a Teresa, permanecia distante, olhando pela enésima vez o pombo, distante. Olhei a Zita. Olhei-lhe a cara de boneca e percebi-lhe a raiva que lhe tomara conta das belas feições. Não era nem expressão de dor, nem de mágoa, nem de desgosto, aquela que trazia no rosto. Era raiva. E vinha apressada. A chegada foi de rompante, depois de ter pisado o cão e este ter virado a mesa por se ter sobressaltado, atirou o saco para cima da mesa, quase fazendo cair o "tablet" e os telemóveis da Gaby, exclamando com voz irada:
- Não posso mais com aquele gajo!
- Bateu-te, outra vez...
- Não foi trabalhar?
- Anda com outra?
- Ele que me volte a bater, que vai ver... desta vez não foi nada disso, a questão é que hoje era o dia de ser ele a levar o miúdo a casa da avó e fez-me uma cena. Desatou aos gritos, de mais isto e mais aquilo. E que mais nenhum dia levaria o filho a parte alguma e que essa era tarefa minha... Saí porta a fora.
- Se o meu se portasse assim, já o tinha rifado
- Deixa o gajo... vocês nem são casados...
- Mesmo que fossem... parece teres preconceitos contra o casamento!
- Um divórcio é um dinheirão...
- Mãããe!
Fazendo esvoaçar o pombo e o negro melro, uma criança vinha correndo em nossa direcção. Era o filho da Zita. O pai trouxera-o e nem se deixou ver. O grupo iria ficar alargado com o recém-chegado...
O rafeiro ao ver o miúdo abanou a cauda. O melro e o pombo voltaram a pousar e o engenheiro chegou com um pequeno almoço, pronto para o comer e partilhar...