24 junho, 2012

Homilias dominicais (citando Saramago) - 89


Cada vez estou menos convencido de que quem defende um texto pelo mero rendilhado das palavras e pela beleza da sua ligada harmonia, fluindo esta como um rio, não tenha propósitos, mais ou menos inconscientes, mais ou menos escondidos, visando o desviar os sentidos, e o juízo, das palavras necessárias para defrontar estas horas amargas. Não, não estou a dizer que um escritor seja um mero produtor de conteúdos, alheado das coisas da alma. Mas de que vale falar desta somente, se o corpo é que sente? "O corpo é que paga", dizia um cantor (com alma) a quem poucos davam atenção até seu próprio corpo pagar. Se insistem, escrevam então com a alma. Mas por favor, façam da escrita um acto de amor e não de mera masturbação... É que o amor implica sempre a existência do outro, o respeito pelo outro, a necessidade de ouvir o outro e de o entender, para além do prazer. Que escrever seja a tradução de gestos e afectos...

HOMILIA DE HOJE
"Escrever é traduzir. Mesmo quando estivermos a utilizar a nossa própria língua. Transportamos o que vemos e o que sentimos, para um código convencional de signos - a escrita - e deixamos às circunstâncias e aos acasos da comunicação a responsabilidade de fazer chegar à inteligência do leitor, não tanto a integridade da experiência que nos propusemos transmitir, mas uma sombra, ao menos, do que no fundo do nosso espírito sabemos bem ser intraduzível, por exemplo... a emoção pura de um encontro, o deslumbramento de uma descoberta, esse instante fugaz de silêncio anterior à palavra que vai ficar na memória como o rastro de um sonho, que o tempo não apagará por completo..." 
José Saramago. Ler tudo em Traduzir in "Outros Cadernos de Saramago"

13 comentários:

  1. .

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    . escrever é de.legar . e é também legado .

    .

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  2. Há os que escrevem e escrevem e mesmo depois de cansados, continuam longe da escrita.

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  3. Saramago é e será sempre Saramago,e está tudo dito! Mas o seu texto está muito bonito, Rogerito!E cheio de sentido. Escrever é só para alguns...

    Beijinho.

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  4. dizem alguns que até sabem escrever que nunca se publicou tanto livro...

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  5. "Escrever é traduzir"

    Traduzir no sentido em que a escrita não é mais do que uma interpretação pessoal da realidade. Traduzir é compreender, contudo a compreensão não está livre de alguma subjectividade. É que ela relaciona-se, diretamente, com aquilo que somos, as competências socioculturais que temos, o meio que habitamos...

    A escrita tanto pode servir para revelar como para ocultar, mas tem de ser sempre um ato praticado em total liberdade. É um direito do escritor. O direito do leitor é o de escolher o que quer e o que não quer ler.


    Um beijo

    Lídia

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  6. Não sei dizer qual o texto que mais me encantou. Mas, a verdade, é que o do Rogério me emocionou!
    (A rima foi mero acaso)
    Um beijo.

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  7. A filha de saramago casou com um madeirense vive cá na ilha bem perto de mim e eu nunca li nada do seu (dela) pai. comecei a ver o filme "ensaio da cegueira" e nao conclui,
    kis .=)

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  8. Escrever com a alma não é para todos,
    dói quando se escreve assim, por isso muitas vezes disfarçamos, não é por mal.
    Apesar de gostar muito de Saramago, o seu texto hoje tirou-lhe o protagonismo.

    beijinhos e boa semana

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  9. Muito bom seu texto, Rogério, até me faz ficar com pena de não saber escrever (no sentido literário, claro está).

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  10. Belo texto neste domingo. A vida o que move e toda palavra é uma restrição. Escolher o corte que se quer dar à vida, o sentido à sua vida, este é o desafio do escritor. Escrever é a arte de cortar palavras, alguém já disse.

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  11. Um apêndice, ao que está escrito:

    "O que se deve exigir do escritor antes de tudo é certo sentimento
    íntimo, que o torne homem do seu tempo e do seu país, ainda
    quando trate de assuntos remotos no espaço e no tempo."

    Machado de Assis

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  12. Estou em um grupo que fará homenagem à Machado de Assis no próximo dia 26. O apêndice veio a calhar, em todos os sentidos.

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  13. Eu digo que tem um livro por perto. Não está completamente sozinho. Dos livros que tenho em casa alguns já os li três vezes. Do José Saramago, acho que tenho todos. Agora estou lendo o Ultimo Segredo, De José Rodrigues Dos Santos.

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