12 outubro, 2014

Meu caro Álvaro de Campos, repito-te palavras que já te foram ditas: nem "Todas as cartas de amor são ridículas"


O Cid é um camarada e amigo, (re)encontrado há pouco, graças a este espaço e ao que faço e graças também ao espaço dele, e ao que ele aí escreve. O Cid, desbrava as sombras e as trevas, sulca os terrenos dos omitidos e soterrados e dá-nos a conhecer poemas, cartas, escritos, livros e os rostos de quem os escreve, nesse oficio humilde de os desenterrar, os mostrar ou antecipar aparecimentos. Hoje, depois de um meu comentário num seu voar fora da asa, ligou-me: "tens de o ler, Rogério. É um livrinho pequenino, com setenta cartas..."
«Meu amor, 
O mundo tem os dias contados. E quem pode com o belo que o carregue. Não basta descrever o humano, há que inventá-lo! Não basta ver o que somos, mas o que podemos ser. Quem não sentiu uma mão na cara, para a guerra ou para o amor, não lhe conhece o poder. Quem regressou da morte ao mundo, contrariando duas vezes a natureza, sabe que não deve desperdiçar os dias que lhe são dados, não pode desperdiçar o tempo com aqueles que se afastam. Foi assim, meu amor, que vim aqui parar, sorrindo no alpendre da tua alegria, com um bandolim, um violão e uma garrafa de fazer canções. Andar pelo Universo não é de graça, andar paga-se com a vida. E a vida, meu amor, o tempo em que se vê as formas e as coisas, deve ter responsabilidade. A tristeza não inventa nada. A tristeza tem os pés demasiado apegados à terra, o corpo muito pesado pelo excesso de certezas. A tristeza não voa. Lançada do cimo de um edifício, a tristeza desfaz o seu crânio no asfalto. Como é diferente a alegria meu amor! Já viste, na praia, presa às mãos de uma criança e, mesmo assim, a subir no céu? Não precisas mais do que o vento, para subir. A alegria inventa tudo. Atirada ao mar, a alegria flutua, a alegria nada. A alegria avança em qualquer terreno. Nas densas florestas do teu país, podemos ver a alegria enrolar-se aos troncos das árvores e a pôr a língua de fora. Quem julgas quem inventou a roda, a alegria ou a tristeza? Quem julgas, tu, que inventou a palavra, a calada tristeza ou a efusiva alegria? Quem julgas que inventou o amor? Quem julgas, tu, que inventou Deus, se não a tristeza? Meu amor, a tristeza quer ser maior do que os homens, quer ter a certeza, quer ser ela a dar as ordens, a ditar as regras! A tristeza quer ser omnipresente e omnipotente. A tristeza quer que fiquemos sempre na mesma. Quem julgas que inventou a ciência, a alegria ou a tristeza? Quem julgas, tu, meu amor, que nos pode destruir, a alegria ou a tristeza? Quem julgas, meu amor?

O teu

Carta 24, in "Todas as Cartas de Amor"

7 comentários:

  1. É verdade sim
    A tristeza tem os pés pesados e colados ao chão.
    O corpo da tristeza engorda rapidamente
    Parece que a tristeza produz o seu próprio veneno.

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  2. Já nada é grátis, tudo se paga, e às vezes nem recebemos troco...

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  3. Rogério,
    O homem necessita de rir e deixa no choro sufocado a tristeza.
    Mas o seu amigo tem razão.
    Grata por esta partilha!:))
    Boa noite.

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  4. Rogério,
    O homem necessita de rir e deixa no choro sufocado a tristeza.
    Mas o seu amigo tem razão.
    Grata por esta partilha!:))
    Boa noite.

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  5. Mas a tristeza existe! Se assim não fosse como saberíamos o que é a alegria? Só os tontos vivem sempre alegres!...

    Nenhuma carta de amor é ridícula!

    Álvaro de Campos, pensava assim porque nunca deve ter escrito nem recebido nenhuma.
    Ridículo é o amor, que é cego e vê!

    Abraço!

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  6. gostei muito desta carta, e fiquei ciente que a tristeza existe realmente, mas, que também a podemos suplantar se quisermos.
    a vida tem que ser alegre mas tem picos de tristeza, digo eu , para manter o equilíbrio.
    obrigada por deixar aqui esta partilha tão bela.
    boa semana.
    beijo
    :)

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  7. A alegria farfalha suas saias e lança-se ao voo sem rumo. Onde ficou a tristeza? Não se sabe mais, ... ainda bem.
    Muitos bjs querido amigo

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