24 março, 2019

Dominical liturgia [citando Sophia] - 10

Lembro que há tempos vos dei a notícia de ser um desenhador de sonhos. Opinei depois que, de certa forma, somos todos Desenhadores de Sonhos. Desenhamos de diferentes formas, mas a melhor é desenhar por gestos, gestos-ação, acompanhados de palavras-de-ordem, ou de cânticos, ou de protestos, ou por versos.

Desta vez desenhámos versos, e foram tantos. Nesta liturgia não me coube a mim citar Sophia mas foram muitos o que o fizeram. Na impossibilidade de registar tudo, fica o que disseram de Sophia os nossos convidados

Manuel Diogo e Domingos Lobo, o autor do texto

LEMBRAR SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN
«A moral do poema não depende de nenhum código, de nenhuma lei, de nenhum programa que lhe seja exterior, mas, porque é uma realidade vivida, integra-se no tempo vivido. E o tempo em que vivemos é o tempo de uma profunda tomada de consciência. Depois de tantos séculos de pecado burguês a nossa época rejeita a herança do pecado organizado. Não aceitamos a fatalidade do mal. Como Antígona a poesia do nosso tempo diz: «Eu sou aquela que não aprendeu a ceder aos desastres». Há um desejo de rigor e de verdade que é intrínseco à íntima estrutura do poema e que não pode aceitar uma ordem falsa.

Nem essa "ordem falsa", nem as injustiças foram aceites por Sophia. Católica, vinda de uma família da grande burguesia, rica e culta, Sophia não deixou de se solidarizar com os mais frágeis, de erguer a sua voz cívica e sem artifícios contra um tempo injusto, para nos dizer Que não somos apenas animais acossados na luta pela sobrevivência mas que somos, por direito natural, herdeiros da liberdade e da dignidade do ser.

Uma poesia que tem esta força, esta determinante humanista, está viva, tem uma perenidade que a torna exigência singular da arte da palavra - e atrela-se ao futuro.»

Extrato do trabalho de Domingos Lobo
segue, texto integral

LEMBRAR SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN
Domingos Lobo 

Estamos a séculos dessa mística "era dos versos", a da comunhão do poeta com a natureza, quando havia tempo e espaço para olhar a natureza e definir os seus signos, nesse tempo helénico, na Grécia de todas as iniciações metafísicas; igualmente distantes do tempo em que os poetas, pelo simples facto de o serem, granjeavam um estatuto que lhes permitia frequentar a corte e viver razoavelmente da generosidade régia desde que os versos, as suas cantigas de amor e escárnio tivessem merecimento e o alaúde não desafinasse mais que o suportável a ouvidos pouco modulados; longe estamos, igualmente, dos dias em que os poetas, roçando líricos arroubos, ganhavam para a bucha e para meio quartilho de tinto, declamando sonetos no tasco de um qualquer mal-cozinhado para não morrerem à fome à porta de uma corte avara, boçal e ignorante, enquanto aguardavam a esmola humilhante da magra tença; longe dos cafés do Rossio onde Bocage, António Lobo de Carvalho e outros, vendiam os seus sonetos satíricos, de manha e suspeições sobre as damas às quais os maridos, por fraquezas do corpo e outros entraves, falhavam compromissos; sonetos eivados de má-língua e de erotismo capazes de fazer corar os monges da Idade Média, em troca de uma sopa e de uns trocados para carregar a vidinha, e sempre rodeados de um grupo que os escutava fascinado e rendido à magia superior desse modo de fazer versos, à brejeirice e à eloquência.
Muitos poetas e prosadores ganharam os seus sestércios contando histórias pelas ruas da Gália ou da Bracara Augusta e ainda hoje, em muitas praças árabes, os velhos contadores de histórias juntam multidões reinventando As Mil e Uma Noites no sereno e milenar intuito de escorraçar a morte.
Hoje, na idade cibernética da realidade virtual, onde as emoções são a vertigem de um beijo rasurado num écran, um livro de versos só dá prejuízo, como escreveu o poeta brasileiro Ulisses Duarte.
A poesia de Sophia de Mello Breyner, ainda nos traz, a espaços, esse fascínio das palavras raras, dos sentimentos lavrados no sossego das horas calmas, os rumores do mar, ainda escutamos nesta lírica que bebe nos clássicos todo o seu fulgor, um tempo de cantigas, de sol, de pássaros, de brumas matinais. E a fala cúmplice, essa necessidade de relação com o outro, com Jorge de Sena, porventura o mais prolongado diálogo epistolar da nossa Literatura. Jorge de Sena enviando a Sophia um exemplar da sua Pedra Filosofal: 

Versos e filhos como os dás ao mundo?
 Como na praia te conservam sombras de corais?
Como de angústia anoitecer profundo?
Como quem se reparte? Como quem pode matar-te?
Ou como quem a ti não volta mais.

Jorge de Sena 

E depois, o mar, sempre o mar, essa atracção de infinito, e as janelas da casa abertas para um horizonte vasto de sol e sal: De todos os cantos do mundo/Amo com um amor mais forte e mais profundo/Aquela praia extasiada e nua/onde me uni ao mar, ao vento e à lua.
De novo o mundo helénico, um mundo de beleza e harmonia, de comunhão entre a natureza e o homem, e ambos crescendo em respeito mutuo. O desejo, a vontade da possessão desses espaços, desse chão de lonjuras e segredos: Eras o primeiro dia inteiro e puro/Banhando os horizontes de louvor/ (...) Eras a medida suprema, o cânon eterno/ Erguido, puro, perfeito e harmonioso. A casa frente ao mar, com flores, areia e silêncio: Casa branca frente ao mar enorme,/ Com o teu jardim de areia e flores marinhas/ E o teu silêncio intacto em que dorme/0 milagre das coisas que eram minhas.
Este íntimo rumor das palavras de Sophia vem de longe, dos tempos da serenidade e da contemplação. Daí que a vibração sensitiva que nelas habita nos seja ainda hoje tão necessária. Sei que vivemos tempos sem tempo para as palavras altas, vivemos o aturdimento das simulações electrónicas que não nos deixa saborear um verso, reflectir sobre o coração que freme no corpo de um poema; sei que vivemos tempos estranhos (mas é o nosso tempo, e cabe-nos vivê-lo e transformá-lo), tempos em que a usura se tornou regra e a febre do dinheiro se transmudou ideologia quase dominante. A poesia, que é a arte suprema da palavra, precisa de silêncio e espaço, não campeia em tão árido chão.
Daí que a poesia de Sophia nos convoque para a resistência aos dias áridos, ao frio e à desordem que habita os telúricos espaços da nossa humanidade primeva: Passavam pelo ar aves repentinas,/0 cheiro da terra era fundo e amargo/E ao longe as cavalgadas do mar largo/Sacudiam na areia a suas crinas. Ou num outro poema em que turvação do seu tempo, dessa inquietação colectiva face aos dias opressivos e amargos dos anos sessenta portugueses. Mas onde, apesar desse deserto, o sol da esperança ainda fremia: Lutaram corpo a corpo com o frio/Das casas onde nunca ninguém passa/Sós, em quartos imensos de vazio,/ Com um poeta em chamas na vidraça.
 Os poetas são gente resistente, sonhadores de utopias, mesmo no território insano da hodierna distopia que vai corroendo os imaginários mais férteis, teimam e avançam, vão pelo sonho, acreditam que um dia será possível conversar sobre livros à volta de um copo ou de um café, que cantarão e o fogo das palavras há-de voltejar livre e solto, que a vida regressará límpida e inteira às suas veias, que poderão de novo consumir emoções e afectos, sabendo que palavras como frio, sol, distância, que percorrem a poética ígnea de Sophia como uma urgência de dizer o mundo e a sua perene substância, o seu rumor ávido de fonte, terão um dia outros significados, e tantos quantos os cantos dos homens de voz liberta, à beira do mar. A sua verticalidade. O humano. A absurda busca de sentido para a vida, porque navegar é preciso: Nada trazem consigo. As imagens/Que encontram vão-se delas despedindo./Nada trazem consigo pois partiram/Sós e nus desde sempre e os seus caminhos/Levam só ao espaço como o vento. [...J Nenhum jardim, nenhum olhar os prende. Intactos nas paisagens onde chegam/Só encontram o longe que se afasta, O apelo do silêncio que os arrasta,/As aves estrangeiras que os trespassam,/E o seu corpo é só um nó de frio/Em busca de mais mar e mais vazio.
É esse permanente apego ao mar, o seu mar da Granja, ao seu amplo significado de início e finitude, que permanece em desejo, em projecto, incomensurável desígnio, mesmo para além da morte: Quando eu morrer voltarei para buscar/Os instantes que não vivi junto do mar. Esse tempo que se perdeu em vão em urbanas derivas, quando o apelo do mar era a única voz, os itinerários da chuva, o tempo essencial à vida e à sua ordem metafísica e sublime, a soletrar as estrelas, a olhar o cristal da Lua reflectido nos lagos; o retornar às coisas simples e tocáveis, ao lugar secreto, inviolável, da nossa humanidade, ao território efémero e líquido do poema, onde o poema acontece, para nele a busca desses fragmentos metafóricos da inconsistência do Ser, esse voo cego a nada como escreveu Ronaldo Ferreira, seja possível.
A Cultura helénica, no sentido da harmonia, do homem integrado no seu espaço e em comunhão com a natureza, esse telúrico, identitário apego às origens, não impediu Sophia de olhar, com assertividade dialéctica e crítica, a realidade política e social do país durante a ditadura: Quando a pátria que temos não a temos/Perdida por silêncio e por renúncia/Até a voz do mar se torna exílio/E a luz que nos rodeia é como grades. E o outro que caminha ao nosso lado, que tem voz e rosto, que não é livre e porque o não é macula a nossa liberdade, dado não sermos livres se outros o não forem. E Sophia sabe-o, daí a inquietação permanente que a sua poesia expressa, o solidário grito de denúncia, pelo outro, onde a urgência do combate pela dignidade se torna um imperativo civilizacional:
Esta gente cujo rosto
Às vezes luminoso
E outras vezes tosco
Ora me lembra escravos
Ora me lembra reis

Faz renascer meu gosto
De luta e de combate
Contra o abutre e a cobra
O porco e o milhafre

Pois a gente que tem
O rosto desenhado
Por paciência e fome
É a gente em quem
Um país ocupado
Escreve o seu nome

Mais do que a mitologia que percorre a sua voz poética, é a busca da criatividade inicial do homem, esse estruturante fundador da nossa humanidade, o sentido da justiça que herdou das reflexões de Platão, que a escrita de Sophia poderosamente inscreve no seu percurso, no seu corpo diegético: Em Creta/Onde o Minotauro Reina/Banhei-me no mar// Há uma rápida lança que se dança em frente de um toiro/ Na antiquíssima juventude do dia [...J Em Creta onde o Minotauro reina atravessei a vaga/De olhos abertos inteiramente acordada, desperta para as coisas da vida, do seu movimento, dos seus êxtases, das suas perplexidades. É a inteireza deste discurso, o estar disponível e aberto aos rumores de todas as geografias e de todos os sentidos que implicam o homem, que faz o fulcro sensível e orgânica do modo poético, originalíssimo, de Sophia.
 A sua voz que sabe também indignar-se, erguer-se firme contra a bestialidade e o ultraje, que se expressa de forma corajosa no poema Catarina Eufémia poema de afirmação e de combate: O primeiro tema da reflexão grega é a justiça/e eu penso nesse instante em que ficaste exposta/Estavas grávida porém não recuaste/Porque a tua lição é esta: fazer frente [...] Porque eras mulher e não somente a fêmea/Eras a inocência frontal que não recua/Antígona poisou a sua mão sobre o teu ombro no instante em que morreste/E a busca da justiça continua.
 A matéria essencial (as palavras) para dizermos a Vida e o que à volta dela mais nos amargura, seduz, estremece e, a espaços, num indelével fulgor, vertigem dúctil, extasia: o amor, as cidades, a literatura, a natureza, as artes, a política. Essas nebulosas que a memória atrai, esse íman perene, são a matéria da escrita, as palavras com que se urdem os signos que tentam entender e libertar o homem do seu caos imanente. E é o tempo, o tempo poético e o nosso tempo orgânico, os tempos de viver e o tempo de lutar, o tempo de construir e o tempo de denunciar, o tempo de ver, de ouvir, e o tempo de ler e, sobretudo, o tempo de não ignorar o outro e a realidade que nos cerca: 

Tempo de solidão e de incerteza
Tempo de medo e tempo de traição
Tempo de injustiça e de vileza
Tempo de negação
Tempo de covardia e tempo de ira
Tempo de mascarada e de mentira
Tempo de escravidão
Tempo dos coniventes sem cadastro
Tempo de silêncio e de mordaça
Tempo onde o sangue não tem rasto
Tempo de ameaça.

Nada há de mais humano do que o poeta que, mesmo falando de si, do seu universo interior, não perde o rastro dos outros, dos oprimidos e humilhados, dos que lutaram para tornar os dias mais justos e solares. E essa humanidade, que é interventiva forma de agir, servindo-se do poder da poesia — da sua, em particular — para convocar os seus contemporâneos para a necessidade de reflectir sobre a realidade do país, a podridão sob a ditadura e impedido de respirar livremente. O poema O Velho Abutre é, sobre esse comprometimento, exemplar de síntese e simbologia: O velho abutre é sábio e alisa as suas penas/A podridão lhe agrada e seus discursos/ Têm o dom de tornar as almas mais pequenas.
Se Homero, e outros clássicos, percorrem a lírica de Sophia, esse modo originalíssimo e dúctil de dizer a vida, esse estranho rumor das palavras, essa voz única que será dádiva, de transfigurações e absolutos, a luz, o efémero, também os autores do seu tempo percorrem, de modo indelével, esta poética — Cecília Meireles, Murillo Mendes, Jorge de Sena, a pintura de Amadeu de Souza Cardoso, Fernando Pessoa. Os espaços da memória, dos afectos, a paisagem e as coisas, os homens, o universo, a natureza, as cidades, e tudo que nelas se move e habita: as cigarras, as grutas, as estrelas, Lagos, o Algarve, a Granja, o Mar, os instantes, os amigos mortos.
A poesia de Sophia é uma plenitude, não apenas a crónica corajosa do século XX português. Diz-nos da essência do humano, da justiça, do modo digno de estarmos na vida. Intemporal e única. Património do que em nós é substância, sal, sol, claridade. Terminamos com as palavras de Sophia, ditas em 11 de Julho de 1964 no almoço promovido pela Sociedade Portuguesa de Escritores por ocasião da entrega do Grande Prémio de Poesia atribuído a Livro Sexto.
A moral do poema não depende de nenhum código, de nenhuma lei, de nenhum programa que lhe seja exterior, mas, porque é uma realidade vivida, integra-se no tempo vivido. E o tempo em que vivemos é o tempo de uma profunda tomada de consciência. Depois de tantos séculos de pecado burguês a nossa época rejeita a herança do pecado organizado. Não aceitamos a fatalidade do mal. Como Antígona a poesia do nosso tempo diz: «Eu sou aquela que não aprendeu a ceder aos desastres». Há um desejo de rigor e de verdade que é intrínseco à íntima estrutura do poema e que não pode aceitar uma ordem falsa.
Nem essa "ordem falsa", nem as injustiças foram aceites por Sophia. Católica, vinda de uma família da grande burguesia, rica e culta, Sophia não deixou de se solidarizar com os mais frágeis, de erguer a sua voz cívica e sem artifícios contra um tempo injusto, para nos dizer Que não somos apenas animais acossados na luta pela sobrevivência mas que somos, por direito natural, herdeiros da liberdade e da dignidade do ser.
Uma poesia que tem esta força, esta determinante humanista, está viva, tem uma perenidade que a torna exigência singular da arte da palavra - e atrela-se ao futuro.


 

3 comentários:

  1. Vi, até onde o Face me deixou ver,
    no penúltimo post acerca desse evento,
    muitos rostos, para mim desconhecidos
    a ler Sophia e/ou talvez Maria João.

    Em todas as fotos vistas
    em nenhuma delas estava
    o eventual 'diseur'
    que me havia dito ser possível
    engasgar-se ao 'dizer'.

    Ficará para uma próxima,
    e se puder ser, com imagem e som.

    Daqui, gostei do que li.
    Obrigada.

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  2. Como eu gostaria de ter estado presente.
    Enfim também nós festejamos o dia, embora não com tanta grandeza. Mas foi muito interessante ver crianças de dez anos, entre os quais se encontrava a minha neta, a dizer pequenos poemas de sua autoria, alguns já muito bons.
    Abraço e uma boa semana

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  3. Palavras inolvidáveis de "Dois de Palavra", para além dos muitos que deram voz e vida à poesia

    Forte abraço.

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