Vinha com a costumada ansiedade. Não conhecia outra e esta já se lhe tinha colado no rosto, moldando-lhe a feição. Sempre se vira assim e sempre assim os outros a viam. Não era uma jovem qualquer e tudo lhe levava a crer que não seria uma normal mulher. Não se sentia rejeitada. Ela era rejeitada, assim ela pensava. Era-o em casa, na escola, entre possíveis amigos, na vizinhança. Era-o desde criança. Seu refugio era a procura de outros amigos. Amigos virtuais, anónimos e também aqueles que fingiam não o ser. Horas a fio despendidas, frente ao seu computador, eram ganhas às horas de grande solidão. Frente ao teclado construía mundos inexistentes em pequenas frases ou em comentários. Procurava e editava fotos da natureza, dos álbuns musicais, de gatos e insectos, seus animais predilectos. Ia assim ocupando o tempo... Sentia ter duas vidas e não gostava de nenhuma. Foi pensando em tudo isto, com a cara do costume, que se aproximou daquele pequeno miradouro sobre a praia, local tantas vezes escolhido para tentar preencher um angustiado e constante vazio. Aquele que naquela altura sentia. Lá, por onde se deixava ficar, pousado sobre a grade de protecção, estava um pequeno pássaro. Saltitava. Quase lhe não ligava, quando se surpreendeu pelo passarito, que em vez de fugir assustado, limitou-se a dar um pequeno pulito, não saindo do sitio em que se encontrava pousado. Tomou tal alheamento como um desafio e avançou ostensivamente. Nada, o pássaro na mesma ficava. Resoluta avançou até quase ao pássaro se encostar, inclinou-se e procurou-lhe o olhar. O pássaro olhou-a, também, de lado com olhar de pássaro, sem medo nem susto mas com ar astuto. Surpreendida por não ter voado nem lhe rejeitar a presença, nem deu pelo insólito de o passarito lhe falar. Respondeu o que lhe ocorreu, dizendo o que então disse com o olhar perdido no mar. Ficaram assim os dois tempos esquecidos. Ela contando suas agruras, desventuras, lutos, rejeições, pequenos e grandes desgostos, insistindo sempre que o mal era dela. Ele, contou-lhe o que via pelo mundo, os locais por onde voava, o esforço em vencer o vento, o frio de dormir ao relento, a dureza da vida e da procura de comida. Desenroladas ambas as vidas, sobressaltou-se o pássaro com o que ela disse: "Não devia ter nascido, minha vida é um arrepio". O pássaro olho-a fixamente, como se fosse gente. Gente compreensiva e inteligente: "Olha o grande arrepio não é nascer, é crescer. Toma minhas asas por empréstimo e dá-lhe o melhor préstimo. Voa e conhece, conhecer é crescer sem te sentires rejeitada". E dizendo isto desapareceu deixando-lhe ficar as asas que lhe ofereceu. Ela experimentou, ganhou confiança e voou. Primeiro com cautela desmedida do sitio onde estava para a árvore que por ali havia perto. Depois fez um voou longo, sobre o mar até chegar ao deserto. Voou por todos os locais que o pássaro lhe contou. Tinha apenas um dia e era preciso usá-lo bem. Fê-lo de dia e de noite. Passou a linha do horizonte. Voou, voou, voou....
Muito chegado o prazo que o pássaro lhe tinha dado, voltou ao local para a devolução das asas emprestadas. Ia eufórica, radiante e uma energia diferente transparecia-lhe do semblante. No local, esperou. Esperou, mas o pássaro não vinha nem chegou. Estava na hora, e agora? Como devolver as asas com que voara. De repente as asas lhe desapareceram e ela percebeu com tristeza que ele as levara sem um último encontro. Sentou-se no chão. Não chorou porque um sem saber o quê não deixou. Não sentiu angústia nem desgosto, mas apenas pena de não poder contar que acabara para ela, pelo que acabou de viver, "o grande arrepio" de crescer... Nem deu por quem se aproximou e quando deu, depressa se levantou. Era um um jovem, quase homem. Nem belo nem feio, atencioso e de voz terna. Falou-lhe com uma voz que lhe pareceu familiar. Depois das primeiras palavras de encontro, ela falou-lhe desinibida o que contava dizer ao pássaro. Ele ouvia-a atentamente, como se fosse novidade tudo o que ela lhe ia contando com vivacidade, sem vestígios de qualquer ansiedade, daquela que ela julgava lhe ter moldado o rosto...
Este conto inscreve-se no "regulamento" do CONCURSO de ESCRITA CRIATIVA 2011, promovido pela querida amiga Eva Gonçalves, do blogue "Including the kitchen sink", respeitando o titulo "The Big Chill"
Sobre pássaros, andei usando essas asas por esses dias. Engraçado chegar aqui e encontrá-lo. Bom, assim foram feitos pássaros e homens.
ResponderEliminarVoei no teu conto
ResponderEliminarE quem encontro?
O nobre passarito
Que agora faz-se presente
Aqui, bem na minha frente
A quem eu mando um delicioso e inexplicável grito...
Muitos bjs querido amigo
Lê-se de um fôlego...
ResponderEliminarO princípe encantado era dispensável. Agora, umas asas bastam às princesas tristes, um principe já não é "o sonho" :)
Brincava. Está lindo!
Um beijo
Meu Caro Rogério
ResponderEliminarDepois deste conto, das imagens do vídeo, da canção, acho que só dá para deixar um agradecimento por mais este momento.
Abraço
Excelente
ResponderEliminarÉ sempre bom ter uma janela aberta
Os pássaros ainda voam
Abraço
Muito bom.
ResponderEliminarQuando o horizonte está onde estão os nossos olhos, podemos sempre voar.
este conto inscreve-se
ResponderEliminarnas asas de um pássaro e na grande aventura que é crescer
está bonito, Rogério!
um beijo
manuela
Fiquei arrepiado com este conto mas não surpreendido. Os meus parabéns Rogério.
ResponderEliminarLindo conto, Rogério!
ResponderEliminarTão lindo e bem contado, que até lhe vou sugerir que quando terminar de escrever o seu livro, se dedique a iniciar a escrita de um outro, de contos.
Quem não gostaria de ter asas e poder voar? Voemos então, e sonhemos sem nunca acordar.
O pássaro tinha razão, as dores do crescimento são mais dolorosas do que as do nascimento.
Parabéns, não lhe conhecia esta faceta tão romântica.
Um beijo
Janita
Caro Rogério, só agora pude vir comentar. Obrigada pela participação no meu concurso. Está muito giro o conto. Não há nada como uma mãozinha para nos ajudar a crescer... I believe I can Fly too (sometimes)!! Beijinho
ResponderEliminarRogério, Tocou-me muito o teu conto. A minha adolescência foi o grande arrepio da minha vida, tal como o pássaro diz. A mim custou-me crescer com a minha cor. Hoje isso está ultrapassado e sei bem quem me emprestou as asas para voar e me libertar. Obrigado por contares tão bem um momento da minha vida.
ResponderEliminarBeijinho
Rogério
ResponderEliminarEste é um conto em que a qualidade da escrita e o tema que versa se aliam para nos oferecer uma leitura muito prazerosa.
Prendeu-me no voo, suspensa no bico de um pássaro.
Está realmente muito bom!
Parabéns
Um abraço
Belo e poético conto que empresta suas asas. Na emoção do arrepio, nos permite voar.
ResponderEliminarRogério, adorei "vê-lo" por lá.
Bjs, bom fim de semana. Inté!
Uma leitura agradável como todas as desta Senhora Eva Gonçalves.
ResponderEliminarO final com o empréstimo das asas foi um cruzamento da ave com o sonho de alguém rejeitado que se reencontrou.
Os sonhos contados na primeira pessoa, um aceitar-se e transformar-se, um viver para lá de tudo e de todos..........
Paralelos e conclusões...?
Cada um fará as que entender. O texto empresta-nos as asas.
boa. Afinal temos asas, mas como estão nas costas, muitas vezes não as vemos. Mas que podemos voar, podemos.
ResponderEliminarUm obrigado
e
um abraço
É bom ter sonhos para viver, asas para voar e um porto seguro para ganhar fõlego para novos sonhos e voos...
ResponderEliminarE, já agora, ter o teu brilhante espírito, para nos contar as aventuras que te e nos engrandecem!
Abraço,
António
Zeca Afonso está sempre entre nós, mesmo sem sabermos...
muito bonito, gostei =)
ResponderEliminarvou seguir*
Venho pelo presente rectificar o meu comentário anterior e apresentar as minhas sinceras desculpas ao seu autor verdadeiro - Rogério Pereira.
ResponderEliminarPareceu-me muito próximo do estilo da Eva Gonçalves e, talvez por isso, fiz confusão.
O Restante comentário está de acordo com a leitura feita.
Prometo mais atenção de futuro.
Parabéns por este excelente conto.
ResponderEliminarVoei, voei...
Amigo Rogério
ResponderEliminarHabitualmente ( eu diria quase sempre) gosto dos teus comentários no meu e nos blogs dos amigos.
Agora, concretiza-se o que já desconfiava: tu és um escritor!!
Um conto perfeito onde é permitido sonhar, ganhar asas... e o que é mais importante, CRESCER!
Parabens, meu Amigo!
Mil beijocas.
Graça
...de um modo comovente e solto...
ResponderEliminarRogério!
ResponderEliminarSei que não me vais levar a mal...
Sabia-te escritor de mão cheia, mas hoje sei-o melhor do que nunca!
Não dei conta do desafio da Eva, sou apaixonada pela sua leitura, o que comprova que ando realmente distraída...
Amigo, "Don't let anyone tell you want you can't be nor what you believe.. Cause it's YOU, WHO IS THE THE CENTER OF THE UNIVERSE.."
Mais... eu voo muito nos meus sonhos e aterro sempre no meu leito, sempre sem asas.
Não resisto perguntar-te - Viste o filme de Alejandro Amenábar - Mar Adentro?
Ele também voava!
Beijinho
Ná
Escrevas o que escreveres vou sempre gostar de ler até pela minha incapacidade de te chegar aos calcanhares.
ResponderEliminarParabéns pelo texto que dedicas aos netos mas que os meus ainda não têm capacidade de compreender tal a sua densidade.
Abraços
Caro amigo:
ResponderEliminarUm conto mágico para o desafio da amiga Eva e ainda por cima entra um passarinho, pena não ser azul :)
Eu também acredito que posso voar...e VOO!!!
Beijinhos
Concordo com a Fê!
ResponderEliminarE acrescento: tem aqui um belo blogue. Vê-se que é uma pessoa com causas e isso é muito importante.
Excelente.
bjs
Pronto, já me roubou o prémio! E eu que tinha tantas expectativas...
ResponderEliminarQue maravilha! Gostei tanto de ler... E não é nada mau não ganhar, quando o vencedor é assim tão bom! =)
ResponderEliminarI belive! I can flay...
ResponderEliminarMinhas asas são as palavras... as que expressam meus pensamentos sentidos e as de pessoas como vc.
Um texto muito, muito lindo!
Uma música deliciosa e bem escolhida.
Beijokas.
olá Rogério,
ResponderEliminarMaravilhado, mas não surpreso.
acredito que posso voar, talvez das poucas coisas de que sou livre de fazer. aqui voei e sei que voltarei a voar.
parabéns e obrigado por este belo momento.
kandandos... inté!
De onde menos esperamos surge algo ou alguém... pessoa, animal, objecto ou acontecimento que nos dá aquele clic especial num determinado momento das nossas vidas.
ResponderEliminarMaravilhosa a sua história com este arrepio que a Eva G. proporcionou.
Parabéns.
Excelente vitória, parabéns! E parabéns à Eva por ter leitores com esta qualidade...
ResponderEliminarÉ o que se chama um conto para fazer voar quem se arrasta pela Terra!
ResponderEliminarGostei!
Abraço