Enquanto
Enquanto houver um homem caído de bruços no passeio
e um sargento que lhe volta o corpo com a ponta do pé
para ver como é;
enquanto o sangue gorgolejar das artérias abertas
e correr pelos interstícios das pedras,
pressuroso e vivo como vermelhas minhocas despertas;
enquanto as crianças de olhos lívidos e redondos como luas,
órfãs de pais e de mães,
andarem acossadas pelas ruas
como matilhas de cães;
enquanto as aves tiverem de interromper o seu canto
com o coraçãozinho débil a saltar-lhes do peito fremente,
num silêncio de espanto
rasgado pelo grito da sereia estridente;
enquanto o grande pássaro de fogo e alumínio
cobrir o mundo com a sombra escaldante das suas asas
amassando na mesma lama de extermínio
os ossos dos homens e as traves das suas casas;
enquanto tudo isso acontecer, e o mais que não se diz por ser verdade,
enquanto for preciso lutar até ao desespero da agonia,
o poeta escreverá com alcatrão nos muros da cidade
Abaixo o mistério da poesia.
António Gedeão (in Voar Fora da Asa)
12 julho, 2013
Poesia (uma por dia) - 47
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Fizeste muitíssimo bem em colocar este extraordinário poema de Carvalho aqui e que eu tomei a liberdade de partilhar no facebook.
ResponderEliminarConvido.te a passares pelo "SÃO"(letra grande)para saberes com a realidade se constrói, rrss
Bons sonhos
Pelos olhos me passou uma nuvem...
ResponderEliminarUm bj
Enquanto o poeta cantar haverá esperança e toda a cidade será pintada com as tintas de alcatrão.
ResponderEliminarNem as tempestades as apagarão.
ResponderEliminarFoi ele que o escreveu, mas podia ter sido o Rogério.
Foi a sua Alma que lho ditou.
Beijo
Laura
ResponderEliminarAssim, a poesia não tem mistério nenhum, de facto.
O poeta é um trabalhador da palavra e a utilidade do que realiza depende da procura do consumidor o que, só por si, diz da sua influência.
Importa que não se julgue dono da verdade porque não o é efetivamente. Pode dar a conhecer trilhos, direções, acender uma luz aqui ou ali, mas nunca apontar caminhos.
António Gedeão, um ilustre "esquecido."
beijo
Grande poema do enorme Gedeão...
ResponderEliminarNão existe mistério nenhum na poesia... o que existe é física, química, trabalho, "saber fazer" e uma coisa tão congénita em nós quanto a cor dos cabelos e dos olhos; às vezes chamo-lhe "dom"... mas chama-lhe o que quiseres. Percebo que essa coisa do "dom" possa remeter para o tal "mistério mesmo misterioso".
Abraço, Rogério!
E ainda assim a poesia é tão necessária pela lucidez com que diz o mundo.
ResponderEliminarEnquanto o poeta gritar
ResponderEliminarA verdade vai escorrer
Enquanto a alma sangrar
O poeta não vai morrer.
Grande "grito" do poeta Gedeão. Lindo e raios partam esta sociedade que há poemas que mesmo que tenham cem anos continuam sempre actuais. Beijos com carinho
ResponderEliminarP oesia não é só alegria
O des cantadas às ninfas e amantes
E scrita doce enviada a amores distantes.
S ão dela também as palavras de dor...
I ra... revolta... E amanhã, tal como dantes
A manhecerá com ela um dia melhor.
(Depois quando puderes passa AQUI...)
Beijinhos
(^^)
Hoje os "sargentos" andam à paisana, ou melhor, fardados de ministros...
ResponderEliminarGrande Gedeâo!
Há muito que tenho guardo este poema de Gedeão, leio-o e releio-o, sempre que desponta em mim a desilusão.
ResponderEliminarA poesia nunca me decepcionou.
beijinho
Fê
Gedeão é inultrapassável.
ResponderEliminarBonito momento.
Grata pela partilha.