Naquele dia, mal ela sabia, decidira ir de comboio. Apesar da distancia se vencer em menos de meia hora, deu para tudo: olhar a paisagem, fixar-se nos rostos tristes e fechados dos passageiros apinhados e dar uma leitura, rápida, no jornal gratuito pejado de anúncios e parco de assuntos. Ia concentrada em pensamentos, quando o andamento da composição se tornou mais e mais vagaroso, lento, muito lento, até parar. E porque no inicio do dia todos os minutos são contados, começaram os suspiros e de seguida os comentários: "passámos a pagar mais, perdemos regalias e o serviço piora"; "o material está gasto e não é mantido"; "há tempos, houve um descarrilamento e só não aconteceu o pior, sabe lá Deus como..." E as conversas iam evoluindo conforme o prejuízo sentido e o conhecimento que cada um tinha da realidade da linha: "Esta degradação tem a ver com a privatização"; "vai acontecer aqui o que se passa com o comboios que atravessam o Tejo: operador privado, preço dobrado".
Ela, de si para si dizia, lamentando-se, porque raio se tinha lembrado de naquele dia não ter levado o carro. Olhou o relógio. Tinha tempo. De trás de si uma voz, que se tinha mantido calada, fez-se ouvir sobrepondo-se a todas as outras: «É preciso levar tudo à penúria para que o investimento estrangeiro apareça e seja querido. Não sabem que vão ser gastos milhões e milhões na ferrovia? E vejam: precisamos de renovar carril ou meter novo, anos depois de a Siderurgia Nacional fechar. Não faz mal, vem de fora; precisamos de renovar carruagens e adquirir mais material de transporte de pessoal e de carga, anos depois da Sorefame e da Metalsines fechar. Não faz mal, mandamos vir de fora; precisamos de substituir rodados e adquirir outros, anos depois de fecharem as principais fundições. Não faz mal, mandamos vir de fora. Há uns anos, não muitos, a incorporação de componentes nacionais num projecto ferroviário tinha um impacto extraordinário. E hoje? Fala o governo que a ferrovia é um projecto estratégico para a economia... Para a economia de quem?» Ficou tudo calado. Ela encheu-se de energia e repetiu a pergunta. Não foi pelo facto de o comboio ter retomado a marcha que a pergunta ficou sem resposta...
E todos ficamos sem respostas.
ResponderEliminarEles, os governos destruíram e agora vendem em saldo a quem quer.
... está tudo à venda; serviços e instituições públicas...
ResponderEliminarAbraço grande!
A destruição dos caminhos de ferro e a construção das auto-estradas excedentárias constituíram dois dos maiores atentados à economia, perpetrados pelos governos do pós-Abril.
ResponderEliminarA resposta está dada, mas a realidade mantém-se.
ResponderEliminarCabe-nos mudar o destino da estação.
beijinho e bom fim de semana
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ResponderEliminar.
. tenho dois irmãos . ambos funcionários do Metropolitano . se falassem consigo . decerto ficaria de boca aberta por tempo indefinido . :( .
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. ressalvo a beleza da fotografia . carrilante .
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Nem sequer ficámos a ver passar os comboios: apenas paisagem. Os granjolas da UE e arredores cantam a canção do bandido aos nossos governantes que andam a viabilizar negociatas há dezenas de anos. É uma tristeza e não há ninguém que responda. A culpa é sempre do morto que não pode falar.
ResponderEliminarretalhos de vida... militante!
ResponderEliminarabraço, caro Rogério
Sempre a mesma «porcaria» nesta nossa terra! Navegação à vista e o povo que se trame!
ResponderEliminarGosto de parar nesta estação...
ResponderEliminarTudo é tão real,
tão bem contado,
tão bem ilustrado...
Parabéns por este espaço Rogério.
A foto é muito significativa.
Abraço