03 dezembro, 2020

Poesia (uma por dia) - 98


«Nasci numa manhã com neblina de bronze / sobre o rio. / O Sol era uma incógnita na bolsa esverdeada do horizonte / e, embora primavera, uma manhã de outono.» [Os Poemas de Álvaro Feijó*, 1961]

POEMA

Fundiu-se o olhar do poeta em lágrimas salgadas
e o poeta não quis cantar o que os seus olhos viram.
É que o poeta só cantava
para as meninas dos balcões floridos
de cactos e de cravos,
para aquelas
que sonham com estrelas
e príncipes de lenda.
- E preferiu cegar.
Fechar os olhos ao vaivém da rua
e continuar morando em sua Torre de Marfim.

Ah! Poeta inútil!
Enrouqueceu a cantar as líricas inúteis
aos cravos das janelas
das meninas fúteis
e ninguém mais se lembrará de ti.
Mas se cantares a rua, a fome, o sofrimento,
se abrires os olhos sobre o nosso mundo,
se conseguires que toda a gente o veja
e o sinta, e sofra, só de ver sofrer,
ninguém se lembrará de ti, poeta,
mas terás feito a tua luta,
e, nela,
justificado uma razão de ser.

Álvaro Feijó, in «Corsário (1940)»

___________________________________________

*O meu anterior escrito,  permite-me agradecer a Eduardo Lourenço o ter-me lembrado a obra de um poeta quase esquecido. Álvaro Feijó, que faleceu com 25 anos. Eduardo Loureço qualificou-a de uma autenticidade  de "inegável adolescentismo" ficando-me a dúvida de se, com tal  adjectivação, estava a desvalorizar , por imatura, a poesia do jovem poeta ou se se trataria de um elogio. 

18 comentários:

  1. Interessante a publicação de hoje.
    Boa Noite, um abraço.

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  2. Poie eu, gostei muitíssimo do poema. Maduro, intenso e realista.
    Realmente, também fico na dúvida se com esse epíteto de adolescentismo
    o ensaísta/pensador, recentemente desaparecido, tentou imprimir algum desmerecimento ou o contrário.
    Também não me interessa nem quero saber, tenho cabeça para pensar e se gosto, gosto, e mais nada!

    Um abraço, Rogério.

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  3. Gosto muito do poema, que já tinha lido no Facebook. Agradeço a partilha pois nunca tinha lido nada dele.
    Abraço, saúde e bom fim de semana

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    1. Elvira, num dos links terá acesso a mais de uma dezena de poemas

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  4. Sabes Rogério, essa "autenticidade de inegável adolescentismo" atribuída tanto a Álvaro Feijó quanto a Políbio Gomes dos Santos, parece-me mais um elogio do que uma desvalorização... ambos partiram muito jovens, ainda e o termo "autenticidade" sobrepõe-se, no meu entender, ao "adolescentismo" que, por sua vez, me parece mais uma simples característica, sem conotação negativa.

    Tenho cá obras de ambos, fechadas numa arca de madeira que não tenho forças para abrir porque está coberta de pesadas caixas e de uma pesadíssima aparelhagem de vídeo que , tal como o televisor, deixou de funcionar.

    De qualquer forma, creio que esse adolescentismo/ímpeto/espontaneidade, está mais presente na poesia de Políbio do que na de A. Feijó.

    Abraço!

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    1. Podia eu tirar a mesma conclusão. Contudo a referencia à obra de Álvaro Feijó e de Políbio Gomes dos Santos, vem antecedida da consideração da obra de Manuel da Fonseca como "folclorismo populista" e considerando os poemas de Fernando Namora como "prosaicamente agressivos"... no fundo acho que o neo-realismo não lhe era particularmente simpático (apesar de ser um dos seus fundadores...)

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  5. Desta vez, vou directa ao assunto: Desconhecia o poeta português Álvaro de Castro e Sousa Correia Feijó.

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    1. Não me admiro Teresa
      em certa medida
      Eduardo Lourenço também o desconhecia

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  6. Só poderia ser um elogio!
    Álvaro Feijó merece-o!

    Abraço

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  7. Gostei do poema. 1940, estamos a falar de outros tempos, outras maneiras de pensar, outros medos nas tomadas de posição. Diria, que um jovem, com aquela bravura que normalmente apenas se consegue nessas idades, seria capaz de tomar determinadas posições sem receio das consequências... atendendo à parte final do poema.

    Abraço e bom fim de semana

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    1. Meu caro, acaba de definir o perfil da corrente neo-realista
      que, ao que parece, não era propriamente da simpatia de Eduardo Lourenço
      (veja a resposta que dei à Maria João)

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  8. "Conheci " Álvaro Feijó nas minhas aulas de poesia, o professor, poeta também, admirava a maturidade contida nos seus poemas, um pouco em contradição com a opinião de Eduardo Lourenço.
    Declamei perto do Natal um poema dele que faz todo o sentido atualmente.

    Natal
    Nasceu.
    Foi numa cama de folhelho
    entre lençóis de estopa suja
    num pardieiro velho.
    Trinta horas depois a mãe pegou na enxada
    e foi roçar nas bordas dos caminhos
    manadas de ervas
    para a ovelha triste.
    E a criança ficou no pardieiro
    só com o fumo negro das paredes
    e o crepitar do fogo,
    enroscada num cesto vindimeiro,
    que não havia berço
    naquela casa.
    E ninguém conta a história do menino
    que não teve
    nem magos a adorá-lo,
    nem vacas a aquecê-lo,
    mas que há-de ter
    muitos Reis da Judeia a persegui-lo;
    que não terá coroas de espinhos
    mas coroa de baionetas
    postas até ao fundo
    do seu corpo.
    Ninguém há-de contar a história do menino.
    Ninguém lhe vai chamar o Salvador do Mundo.

    Um beijinho e bom fim de semana !

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    1. Boa!
      Aceita o desafio de voltar a declamar?
      Seria, para todos nós,
      uma excelente prenda de Natal!

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  9. Que bom ,deixastes um pouco a política enfadonha e voltas a poesia, sem ela impossível ser feliz rsrs e deveria cumprir o combinado 'uma por dia'
    Leio muitos poetas portugueses e Álvaro Feijó ainda não - fui pesquisar e encontrei o ótimo 'quando eu morrer, e hei de morrer primeiro do que tu' ... e aí ele vislumbra o momento dela e finaliza 'se me vires chegar ao cais dos céus, ver-me-ás debruçado sobre as ondas...' Olha só que amor bonito! gosto imenso desse 'adolescentismo'_ que todos fossem desse naipe descrito no 'Poema'de Feijó.
    Obrigada, Rogério - fizestes melhorar a minha noite lendo esse poeta, que morreu cedo demais.
    noite feliz e bom domingo

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    1. Olá Lis
      A política não é enfadonha
      a quem não passa ao lado da cidadania
      (mas reconheço que há políticos e comentadores enfadonhos...)

      Ainda bem que passaste a conhecer mais um Poeta (com letra grande)

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