20 dezembro, 2020

Um conto de Natal, lembrando Saramago

(reedição revista, da versão publicada em Dezembro de 2010)

"Parece-me completamente impossível ler num ecrã de computador. Lamento. Sou do tempo do livro, do papel. Uma pessoa pode deixar cair uma lágrima sobre um livro. É mais difícil deixar cair uma lágrima sobre um computador. Creio que o livro, apesar de tudo, perdurará." 
Ao ler estas palavras de José Saramago redobro a motivação. Terei que (re)escrever os "meus caminhos" nesse formato, transformando-o em livro*. Contudo, não tenho a visão de que seja impossível experimentar emoção sobre um teclado trocando o virar de página por um "enter", ou sair de abalada  mágica teclando um "ctrl+alt*Del" ou, ainda, que não possa sentir como milagre que um toque de "rato" sobre uma palavra nos leve ao texto certo... Querem tentar? 
Cliquem aqui e vão parar lá, a todo o conto de Natal que vos fará o coração saltar (os corações saltam, sabiam?) 
 
HOMILIA DOMINICAL (extractos de um conto de Natal)

(...) Porque o Menino, a Criança é um menino, levanta-se da mesa, abre a porta, separa-se da Família e desce os três degraus de pedra que conduzem ao mundo. Ali adiante há um muro caiado, baixo, com uma varanda dando para terras ignotas. A Criança vai debruçar-se sobre o muro, deixa cair a cabeça sobre os braços cruzados, e o terrível nó das lágrimas desata-se dentro de si. Da casa vêm risos e vozes, alguém fala muito alto, e depois ressoam gargalhadas. Ninguém está pensando na Criança (...) Mas ela tem os olhos fixos, está confusa, perturbada: o desenho mostra a invariável manjedoura, a vaca e o burrinho, e toda a restante figuração. Sobre esta cena já sem mistério cai a neve, e esta neve é preta. Porquê? “Porquê?”, pergunta a Professora à Menina que fez o desenho. A Menina não responde. Talvez mais nervosa do que quereria mostrar, a Professora insiste. Há na sala os risos cruéis e os murmúrios de troça que sempre aparecem em ocasiões destas. A Menina está de pé, muito séria, um pouco trémula. E responde, por fim: “Pintei a neve preta porque foi nesse Natal que a minha mãe morreu”. Fez-se silêncio e a Professora pensou, assim o veio a contar mais tarde: “À Lua já chegámos, mas quando e como conseguiremos chegar ao espírito duma criança que pintou a neve preta porque a mãe lhe morreu?”. Muitos anos depois destas histórias terem acontecido, contei-as a uma outra Menina, que me perguntou: “E eles ainda estão tristes?”. Nessa altura disse-lhe que sim, que há tristezas que o tempo não consegue apagar, mas hoje conforta-me a ideia de que talvez o Menino do Muro Branco e a Menina da Neve Negra se tenham encontrado na vida, e que talvez por causa deles o mundo já esteja a mudar sem que nós tenhamos dado por isso."

Um Conto de Natal de José Saramago

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* Sim, estas palavras de Saramago foram o empurrão que faltava para publicar "Almas Que Nunca Foram Fardadas", cujo titulo inicial era "Caminhos do Meu Navegar"

9 comentários:

  1. Que riqueza!! SAramago sempre nós toca a alma, Que possamos ter um santo e abençoado NAtal com os olhos do menino e da menina

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  2. Segui o link para ler na integra. E emocionei-me.
    Que empurrão falta para que venha um novo livro?
    Abraço e saúde

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    1. Também eu segui o link para ler na integra.
      Não me emocionei, mas ADOREI.
      Que empurrão falta para que venha um novo livro?
      Uma pergunta pertinente da Elvira e minha também.

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  3. Só com crianças conseguimos festejar o Natal!
    Este conto é comovente!

    Abraço

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  4. Reafirmo o que "lá" escrevi. E, claro, um livro tem de ser de carne e osso para se poder abraçar.

    Bj.

    Lídia

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  5. O Natal é o símbolo da esperança e esta reside principalmente nas crianças.

    Faço minha as palavras de Saramago quanto a ler em computador.

    Desejo-te e aos teus um Inverno bom, um Natal com paz e excelente 2021!

    Fraterno abraço, aguardando novo livro.

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  6. Um conto de Natal fantástico do nosso „Nobel“
    Ainda não li o teu livro, Rogério. Li sim, o início de „Caminhos do Meu Navegar “

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  7. Desconhecia este conto, as coisas que aprendo consigo Rogério (:

    Apesar de achar que o conto é triste, a esperança renasce no final, quando estas duas crianças se encontrarem um dia para construir um mundo diferente e melhor.
    Ainda estamos à espera que elas se encontrem.
    Assim como espero um novo livro seu para juntar ao que já cá tenho.

    Feliz Natal meu amigo!
    Abraço apertado

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  8. As crianças são puras, seu olhar e coração continuarão puros independente de qualquer agressão tenra sofrida...o inconsciente se fecha como caixa protetora...por um tempo, nunca saber-se-á qual o "gatilho" da eclosão, mas com.certeza esse encontro que se renova a cada Natal reflete um pouco do menino ou menina em estado latente em cada um de nós. Abençoado Saramago! Cheguei aqui através da Fê blue bird.Amei!Feliz Natal

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