01 dezembro, 2020

Eduardo Lourenço, in memorian (1923-2020)

 

«INTERROGADOR INCESSANTE.

Eduardo Lourenço é uma das grandes referências das culturas de língua portuguesa. O ensaísmo que cultivou, na senda de Montaigne e em diálogo com António Sérgio e Sílvio Lima, mas também com Unamuno e Ortega, é uma marca indelével que ficará como um sinal marcante da democracia portuguesa.»

Começa assim a notícia, tal como aparece na página do Centro Nacional de Cultura. Desse elogio fúnebre, diz-se de Eduardo Lourenço «é um filómita e cultiva os mitos como modos de realizar a grande psicanálise mítica do destino português.»

Não podia estar mais de acordo, olhando eu (a meu modo) sobre o que foi a sua evolução, a forma em como se relacionou com o movimento neo-realista português. Apenas como exemplo não posso deixar de sublinhar que escreveu, num texto seu, referindo-se à obra de Manuel da Fonseca como "folclorismo populista", considerando os poemas de Fernando Namora "prosaicamente agressivos" e quanto aos poemas de Álvaro Feijó e de Políbio Gomes dos Santos de uma autenticidade  de "inegável adolescentismo". (in Como Uma Pedra No Silêncio, pág. 365)

Sobre a sua forma de olhar a realidade, vai além da psicanálise mítica entrando mesmo na visão metafisica dos factos históricos, como aqui se dá elucidativo exemplo

Há, para a parte do mundo que aprecia a sua vasta obra, o reconhecimento da fluência e ligação do seu discurso e o mérito de o saber comunicar pela palavra e pela escrita. Assim, ousaria dizer que irá ser considerado o maior pensador actual, um "sinal marcante (desta) democracia  portuguesa.

Regresso ao inicio, à notícia do CNC, onde se dá destaque aos diálogos entre Eduardo Lourenço e António Sérgio para publicar uma carta inédita que este lhe endereçou, em 2 de Fevereiro de 1950, e onde é notório um clima de quase ruptura, apesar do tom afável.

Meu caro Camarada,

Recebida a sua estimada de 30, apresso-me a declarar que me não magoou o ferrete dado nos meus lombos, não havendo na dúvida que lhe submeti a menor influencia da vaidade ou do egotismo: e a prova é que aceito a designação  de neo-kantista, que já me foi aposta por nacionais e estrangeiros. Seria também a de neo-kantista (e não neo-cartesiano) que eu aplicaria ao Brunchvicg, pelo menos segundo as obras dele de que tenho algum conhecimento: e afigura-se-me que na medida em que somos ambos discípulos do Kant é que os nossos pontos de vista se aproximam, como bem diz. Quando o li pela primeira vez, no meu exilio de Paris, achei na verdade que muito do que ele sustentava tinha consonância com o que eu propusera como plausível nas Notas sobre Antero e nos primeiros volumes dos Ensaios, apesar de acentuadas divergencie,4 nalguns temas, - como, por ex., na chamada "evolução da razão" ou na atitude perante o bergsonismo: e nesses campos de divergência me pareceu (com razão ou sem ela) que estava eu mais próximo de um "kantismo ideal" do que o grande filósofo francês. Porém, concordo em que para discutir este ponto seria necessário determinar primeira o que se julga fundamental em Descartes e o que se entende por "neo-cartesiano".

Quanto ao Nobre, explico, com efeito, no prefácio da segunda edição do primeiro volume dos Ensaios que, fazendo eu ali história e crítica da cultura na sociedade portuguesa, e não crítica literária, considerei apenas nesse poeta o nacionalismo estético que os admiradores transformaram em nacionalismo politico e social. Aliás, ainda que eu me tivesse revelado insensível aos valores poéticos e propriamente literários do autor do Só (e não era disso, repito, que eu tratava) suponho que seria abusiva a sua frase: incapaz de integrar a criação artística: porque, nem o Nobre á toda a poesia, nem toda a poesia é toda a arte. Nas adorar o Nobre não pode significar ser insensível a toda e qualquer arte. Também não sei a que "analise" o meu caro Camarada se refere, porquanto não fiz analise alguma dos poemas do Nobre.

Quanto ao que chama "sem-razão", tanto e certo que lhe dou lugar na arte que escrevi o seguinte no mesmo volume dos Ensaios, logo depois de falar no Nobre: "o sentimento e a lógica, a inspirará e o bom senso, a sinceridade e a harmonia, a FÚRIA e a Ordenação as duas qualidades que, reunidas, fazem a obra superior". Ora a FÚRIA (posta ali em primeiro lugar) designa precisamente aquilo a que o meu caro Camarada chama na sua carta certa sem-razão". O critico que afirmou que eu detesto o 'fermento romântico" não percebeu absolutamente nada do meu pensar, por isso que creio que sem fermento romântico não existe a menor arte, e que o fermento romântico é o PRIMEIRO elemento de toda arte, a sua PRIMEIRA condição. logo acrescento, porém, que as mais altas obras aliam ao fermento romântico uma forte dose de disciplina critica, de modéstia, de organização mental, e que as obras supremas são as que aliam o máximo fermento romântico à máxima dose de tal disciplina.  Aliás, não disseram outra coisa um Goethe, um Baudelaire, um André Gide. A maioria doa leitores, porém não é capaz de apreender um pensamento sintético e complexo, de duas faces: só vê uma única face, e assim fica, não com a doutrina do autor, mas só com uma caricatura do seu pensamento. O que os críticos portugueses (salvo raríssimas excepções) têm dado de mim são miseráveis caricaturas. Decerto o meu caro Camarada ouviu alguma dessas caricaturas, e lhe deu credito.

Perdoe estas longas explicações (tenho a mania de explicar) e creia-me, com muita estima,

Camarada atento e grato,

António Sérgio

E diz-se no "AS PALAVRAS SÃO ARMAS"

Eduardo Lourenço “pensou Portugal”, não viveu Portugal, passeou-se por entre cérebros “ilustres” que mutuamente se elogiavam e… pensavam. Tratavam-se por pensadores que ensaiavam pensamentos.

A burguesia escolhe e fabrica as suas estrelas que o tempo desvanece.

 

 

 

14 comentários:

  1. Eu NUNCA vou directa ao assunto dos teus textos, Rogério, porque "não sou capaz de apreender um pensamento sintético e complexo, de duas faces: só vê uma única face, e assim fica, não com a doutrina do autor, mas só com uma caricatura do seu pensamento."

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Desta vez,engano teu
      Dos textos alinhados
      nenhum é meu
      E curiosamente o que mais chocante até é dele...

      Falando em face, esta que te é dada
      nem é a face mais badalada

      Eliminar
    2. Claro que sei, que dos textos alinhados nenhum é teu!!!

      Usei esta passagem da carta do Eduardo Lourenço a António Sérgio "não sou capaz de apreender um pensamento sintético e complexo, de duas faces: só vê uma única face, e assim fica, não com a doutrina do autor, mas só com uma caricatura do seu pensamento." para te explicar o meu problema com os textos que tu publicas aqui. Tu também, Rogério, só vês uma única face e ficas furioso, se o meu comentário não está de acordo com a tua doutrina.

      Eliminar
    3. O link "Como Uma Pedra no Silêncio" não abre, pelo menos para mim.

      Não conheci pessoalmente Eduardo Lourenço, mas conheci António Sérgio que chegou a frequentar a nossa casa de Algés. Era, no entanto, demasiado pequena para dele poder reter mais do que uma já desfocada memória.

      A passagem que a Teresa transcreveu foi da carta de António Sérgio a Eduardo Lourenço e não o contrário. Mas estou, hoje, a ter dificuldade em abrir links... sei lá porquê...!

      Abraço!

      Eliminar
    4. Acredito que seja uma carta inédita de António Sérgio, já que a Maria João está mais dentro do assunto, mas então, a valiosa a carta de António Sérgio foi encontrada no espólio de Eduardo Lourenço. As críticas que lhe foram dirigidas por Eduardo Lourenço é que me levou ao engano. As relações específicas entre o pensamento de António Sérgio e o pensamento de Eduardo Lourenço é um assunto que tenciono aprofundar.

      Eliminar
    5. Não, Teresa, não estou nem pouco mais ou menos por dentro do assunto, mas apesar de a custo conseguir ler meia dúzia de palavras, pareceu-me que a carta estava assinada por António Sérgio. Ou estou a ver ainda menos bem do que penso e troquei tudo?

      Eliminar
    6. Claro que a carta estava assinada por António Sérgio, mas o aglomerado de textos sem nenhum ser do Rogério, é que me causou confusão.

      Eliminar
  2. Sei que a minha opinião pouco conta no meio de opiniões tão abalizadas, mas sabe Rogério?
    Para uma homenagem à memória de um ilustre português, muniu-se o autor do blog de um 'exército' de textos em defesa de um Partido político, porquê?
    Se algo haveria para dizer em desabono de Eduardo Lourenço, - segundo a óptica do último autor do texto em link - a hora escolhida foi de extremo mau gosto.

    Janita

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Posso assinar aqui, Janita?!
      A tua opinião é exactamente a minha, só que eu me expresso de uma maneira tão confusa, que ninguém me entende!!!

      Eliminar
    2. Que bom responder a duas amigas, que há tanto me seguem e comentam:
      - Primeiro: todas as opiniões contam e a minha opinião não a considero abalizada, pois mal conheço a obra de Eduardo Lourenço, a não ser num artigo ou outro publicado na Revista Seara Nova e de algumas (muitas) trocas de ideias (pensamentos) entre ele e o grupo de Seareiros e, curiosamente, sem que algum desses tenham pertencido ao Partido Comunista, a começar pelo António Sérgio (cuja carta, juntei ao meu texto, por julgar ilustrativa do que queria ilustrar)
      - Segundo, os textos que alinhei não o foram com o sentido de defender quem quer que fosse, mas para deixar claro que a visão do Homem, do Mundo e de nós próprios não pode se endossada para o endeusamento de quem tem do pensamento uma metodologia psicanalítica, ou até mesmo metafísica...
      - Por último, a oportunidade de falar em tudo isto é exactamente agora, em que se tanto se fala em sua memória. E faço notar que não há qualquer injúria ou desrespeito para com a sua memória. Aliás, enquanto dirigente da "Desenhando Sonhos" vou propor que no Dia Mundial de Poesia se organize uma iniciativa nas escolas onde fale um pouco de tudo isto. Talvez o tema seja, "Do neo-realismo a Fernando Pessoa"

      Que Eduardo Lourenço descanse em Paz!

      Eliminar
  3. Não creio que o tempo macere este nome que levou a vida a pensar-[NOS]. Sem pensamento seríamos apenas viventes como um animal ou uma planta.


    Lídia

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Sem dúvida, querida amiga. Os contributos de Eduardo Lourenço podem e devem ser lançados, não para o seu endeusamento, mas para provocar discussão em torno da ideia que temos de NÓS próprios...

      Eliminar
  4. Se eu te entendo, Teresa, toda a gente te entenderá.
    Não te preocupes, expressas-te muito bem.
    O Rogério é bom entendedor!
    Abraço.

    Janita

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Sim, claro que entendi (apesar da Teresa ter metido os pés pelas mãos e ter trocado a autoria da frase que citou, com bem apontou a Maria João)

      Eliminar