07 novembro, 2021

HOMILIAS DOMINICAIS (citando Saramago) - 106 [Continuando o que fora interrompido]

Dou inicio hoje ao há muito interrompido. Primeiro, porque sim. Segundo, porque é oportuno. Terceiro, porque me propus a celebrar o centenário de alguém que insiste em se manter vivo e interventivo. Mais vivo que os que, estando vivos, parecem que há muito mais tempo terão morrido. Mais interventivo que os que afirmam que o estão, não estando. Ou melhor, estão intervindo para que se melhor um pouco para que tudo fique na mesma e se faça ouvir os humilhados e ofendidos, com voz de lamento, que mais vale pouco que nada.

Retomo no tema em que interrompi, citando o "Ensaio de Saramago: Verdade e ilusão democrática", publicado pelo "Expresso" em 18 de Junho de 2015 e que revela uma actualidade que nos faz pensar se no entretanto se terá passado algo, digno de ser ser anotado, para além da espuma dos dias e dos jogos de poder:

 HOMILIA DE RELANÇAMENTO 

«Aprendemos dos livros, e as lições da vida o confirmam, que, por mais equilibradas que se apresentem as suas estruturas institucionais e respectivo funcionamento, de pouco nos servirá uma democracia política que não tenha sido constituída como raiz e razão de uma efectiva e concreta democracia económica e de uma não menos concreta e efectiva democracia cultural. Dizê-lo nos dias de hoje há-de parecer, mais que uma banalidade, um exausto lugar-comum herdado de certas inquietações ideológicas do passado, mas seria o mesmo que fechar os olhos à realidade das ideias não reconhecer que aquela trindade democrática — a política, a económica, a cultural —, cada uma delas complementar das outras, representou, no tempo da sua prosperidade como projecto de futuro, uma das mais congregadoras bandeiras cívicas que alguma vez, na história recente, foram capazes de comover corações, abalar consciências e mobilizar vontades. Hoje, pelo contrário, desprezadas e atiradas para a lixeira das fórmulas que o uso, como a um sapato velho, cansou e deformou, a ideia de uma democracia económica, por muito relativizada que tivesse de ser, deu lugar a um mercado obscenamente triunfante, e a ideia de uma democracia cultural foi substituída por uma não menos obscena massificação industrial das culturas, esse falso melting-pot com que se pretende disfarçar o predomínio absoluto de uma delas. Cremos haver avançado, mas, de facto, retrocedemos. E cada vez se irá tornando mais absurdo falar de democracia se persistirmos no equívoco de identificá-la com as suas expressões quantitativas e mecânicas, essas que se chamam partidos, parlamentos e governos, sem proceder antes a um exame sério e conclusivo do modo como eles utilizam o voto que os colocou no lugar que ocupam. 

Uma democracia que não se auto-observe, que não se auto-examine, que não se autocritique, estará fatalmente condenada a anquilosar-se. Não se conclua do que acabo de dizer que estou contra a existência dos partidos: sou militante de um deles. Não se pense que aborreço os parlamentos: querê-los-ia, isso sim, mais laboriosos e menos faladores.»

José Saramago


8 comentários:

  1. Resumindo, o que Saramago desejava: mais acção e menos falatório, continua a ser tão necessário quanto há anos atrás. Malhar em ferro frio, cansa! É ver os anos passar e nada de novo acontece? Isso assim, aborrece! Será que a política está a resvalar para uma poça de água lodosa e estagnada, Rogério?!

    Uma boa noite e um abraço.

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    1. "Malhar em ferro frio, cansa! É ver os anos passar e nada de novo acontece? Isso assim, aborrece!"
      Querida amiga
      acaba de dar a explicação de ser tão elevada abstenção.
      E quando à poça, não se resvala para onde já lá se está...

      Abraço

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  2. José, José... todos nós o desejaríamos, José, porém é suposto que da "discussão nasça a luz" ou "από τη συζήτηση γεννιέται το φως" como dizia o velho Aristóteles e eu acrescentaria; os aumentos dos salários mínimos, as creches gratuitas para os filhos de todos os trabalhadores, o direito à habitação, à saúde e ao ensino, etc, etc...

    Abraço, José e Rogério!

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  3. Resumindo:
    Muita parra, pouca uva, no Parlamento!

    Abraço

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  4. De tempos em tempos passo por aqui. Saio mais culta. Só aplausos!!!

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