A INESPERADA VIAGEM
Sentara-se no banco do jardim. A caminhada tinha-o maçado para além do esperado e apertou-o uma morna sonolência. Nem reparara que no outro banco, mesmo em frente, estava alguém de idade mal percebida, talvez criança, talvez adolescente. Brincava com um iô-iô enorme, brilhante e reluzente. A rodinha, ora enrolando, ora desenrolando, tinha o movimento para baixo e para cima parecendo comandar o olhar da menina. Olhos grandes e verdes, olhando para baixo e para cima, acompanhando o movimento. A carita sardenta, duas tranças enfeitando um cabelo meio ruivo, a contrastar com a cor do vestido, deu de caras com ele. Ela sorriu-lhe e ele respondeu-lhe ao sorriso.
Ficaram por momentos sorrindo um para o outro, até que ela se levantou e foi ao seu encontro.
"Queres vir comigo?", perguntou enquanto enchia um pequeno balão, verde, do tom dos seus olhos. Embaraçado pelo convite inesperado, limitou-se a estender a mão correspondendo ao gesto da menina, que lhe tinha estendido a sua, pequenina, pequenina, pequenina.
De mão dada, ela deu novo sopro no balão. Sopro tão grande, tão grande, que o balão de pequenino se tornou gigante. E mal se dera conta de tal feito, já o balão se ia elevando, lento, lento, arrastando consigo os dois. De lento passou a velocidade de foguetão, levando ele e a menina sardenta que o mantinha seguro pela mão, direitinho àquela nuvem branca que, ocasionalmente, por ali passava. O balão-foguetão abrandou a marcha e ele perdeu a sensação que tanto o assustara para passar a sentir outra, tranquila, calma, calma, como nunca sentira na vida. Olhou para baixo e quase sentiu vertigens. Lá em baixo o mundo parecia pequenino, pequenino... percebendo que se iam deslocando dirigiu-lhe palavra:
- "Onde vamos?", perguntou ele.
- "Conhecer o mundo!", respondeu ela "Vês aquele rio, agora com a água feita num fio? Vês aquele lago, de peixes ausentes? Vês aquela floresta, despidas de árvores? Vês aquela praia, onde a areia se fez rara? Vez aquele icebergue, perdendo gelo? Tudo obra de quem faz com que aconteça e não confessa!"
Ele ia olhando, olhando e vendo, olhando e vendo, sinal de que vendo não esqueceria.
Primeira volta dada ao mundo, iniciaram uma segunda, com ela segurando-o pela mão e pendurados no balão lá foram, sem cansaço, ele ainda com ânimo elevado até que o foi perdendo com aquilo que ela lhe ia mostrando, com aquilo que ela lhe ia dizendo."Vês aquele homem agredindo um vizinho? Vês aquela multidão, caminhando, caminhando, procurando onde viver, mas em vão? Vês aquele jovem a ser torturado e a violência do verdugo? Vês aquele aldeamento, cinzento e sem vida, porque lhe cortaram a energia? Vês aquele exército invadindo a cidade, destruindo tudo à sua passagem? Tudo obra de quem faz com que aconteça e não confessa!"
Ele ia olhando, olhando e vendo, olhando e vendo, sinal de que vendo não esqueceria.
A dada altura tropeçaram num raio de sol. No tropeção, rebentou o balão. Com o susto, ela largou-lhe a mão. A queda, inevitável, aconteceu e o corpo dele acelerou, acelerou, sem parar de acelerar. Quando ele pensava que se ia esmagar... acordou.
Acordou onde tudo começou, no banco de jardim frente ao outro de onde ela pela primeira vez lhe sorrira. Fora um sonho, que agora de quando em quando recorda, para que não esqueça que os males do mundo são causados por quem faz com que aconteça e não confessa... nem é obrigado a confessar.
O inesperado conto mais encantador que eu já li — como o Zé Saramago fica invejoso, se tiver a oportunidade de o ler, seja onde ele estiver …
ResponderEliminarObrigado, teu comentário é um incentivo!
EliminarImpressionada com o talento escondido do Rogério_ contador de histórias mágicas, tipo Harry Porter que viaja mundo afora as asas de anjos e bruxas. Adorei!
ResponderEliminarMuito lindo e bem real _ um mundo que muitas vezes estamos vendo,sem ver!
Conta mais ! queremos mais !
e deixo abraços
«...um mundo que muitas vezes estamos vendo,sem ver!»
EliminarIsso!
Acho que antes de me meter a escrever mais, terei que rever este. Há termos e palavras que usei que terão de ser adequados a leitores de "tenra idade".
Depois, sim. Escreverei mais!
Abraço deixado
Tenho pra mim, que essa menina ruiva, de olhos esverdeados, tranças grossas e sardas dispostas no rosto como se fossem pintadas pelo vento, tem o aspecto da "Pipi das Meias Altas", mas é uma outra menina que povoa os sonhos do autor/poeta, desenhador de sonhos.
ResponderEliminarGostei muito, muito. Estou aqui que nem posso, a tentar segurar os fios de água salgada que me correm pelo rosto.
Um abraço, Rogério.
BINGO!
EliminarEram minhas filhas pequeninas e adoravam de ver a Pipi da Meias Altas e... o pai dela também!
Se te comovi não era intenção!
Abraço reconhecido!
Muito bem Rogério, bem imaginado e cheio de significado.
ResponderEliminarLevei toda a manhã a consolidar a ideia. Parte da tarde urdir a forma... depois a escrita saiu-me de um rasgo!
EliminarA Pipi das Meias Altas acompanhou os sonhos dos meus filhos, com balões às vezes.
ResponderEliminarGostei do conto!
Abraço
Sim, povoaram os sorrisos dos nossos filhos.
EliminarEscrevi o conto para que dele gostasses
Abraço agradecido!
Acho que a "tal" criança que fomos nunca deixa de aparecer quando, de repente, nos levam a voar pelos céus da imaginação. O Rogério fez uma coisa pouco comum na narrativa para os mais novos - transportou para o sonho o pesadelo da realidade, fazendo deste conto, pensado para crianças, um motivo sério de reflexão, um modo quase "cruel" de espicaçar o leitor.
ResponderEliminarUm dia, uma criança veio ter comigo, depois de me ouvir contar uma história, pedindo-me que alterasse o final, pois achou que o "meu" monstro deveria ter oportunidade de se redimir, antes do "FIM". Que diria ela, agora? Talvez perguntasse: como vai terminar este conto?
Lídia Borges
Assumindo isto aqui escrito como um elogio, tenho que lhe dar o devido destaque... claro que gostava de dar a devida resposta a todas as crianças... vamos ver se consigo, sem inventar uma mentira esfarrapada.
EliminarObrigado, querida amiga!
A reposta é tardia, mas, temos um Ricardo Reis em potência? Mt bom Roger. Abraço
ResponderEliminarQuando recebo um abraço
Eliminargosto de saber
quem mo terá dado
me assino
Ricardo Reis, assumido
Contos preciosos, belos e repletos de saber ! Publique , pois claro! Vá em frente Rogério ! Bjinhos, Manuela Paulo
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