Nasci no Vale Escuro
Brinquei entre latas
Pulei o alão
Andei à pedrada
Escorreguei no muro
Caí no jará
Ganhei no pião.
A jogar à bola
Perdi a sacola
Mais o que trazia
A fugir ao guarda
Que nos perseguia.
Mas que bem sabia
Faltarmos à escola!
Manuel da Fonseca, aqui
Os poetas nascem onde menos se espera e eu não esperava o poema. Ele me remete para a minha infância, para o meu Vale Escuro, ali perto da escola da minha vida, daquela de que vos falei um dia.
À saída das aulas, ou aproveitando um horário não preenchido, chegávamos e quase sempre éramos muitos, 15 ou mais, para jogar à bola. Os lideres, aqueles que há muito se destacavam ou aqueles que eram ali mesmo consentidos como tais, procediam à disputa para decidir qual deveria ser o primeiro a escolher os elementos da equipa, das duas que se iriam enfrentar.
A disputa compreendia um ritual, desde sempre seguido no Vale Escuro e que consistia em cada líder se colocar frente a frente. Cada um à sua vez, ia colocando um pé à frente do outro, calcanhar do pé direito, batendo na biqueira do esquerdo, sincopadamente, estreitando lentamente a distancia entre os dois. O primeiro que conseguisse fazer com que o seu pé não permitisse a entrada do pé adversário, tinha ganho e assim, a ele, lhe competia a primeira escolha, o vencido escolhia o segundo, e cada um ia fazendo a escolha interpoladamente. Nos grupos, cada um esperava com ansiedade a altura de ser escolhido.
Nunca eu era dos eleitos em primeiras escolhas, e raramente era dos últimos e todos eram escolhidos, pois uma regra seguida, nunca discutida (e sempre cumprida) era dar lugar a todos os que por ali aparecessem manifestando interesse em jogar. Ninguém ficava de fora. Nem os meninos, poucos, das barracas que não iam à escola, ficavam de fora.
(Conto reeditado, este foi o primeiro da série)
Um conto lindíssimo com memórias de jogos de uma infância nada fácil, mas alegre como só alguns conseguem ser. Manuel da Fonseca com este poema tão real dá o mote para o seu conto que, acredite, me comoveu.
ResponderEliminarUma boa semana.
Um beijo.
Escrita que não comove
Eliminarou desperte gargalhada
nem é escrita que envolve
nem serve mesmo para nada
Pode sorrir, Graça
Beijo
Faz-me lembrar os lamentos do meu neto mais velho que é escolhido no fim ou é suplente.
ResponderEliminarNão tem mesmo a mínima apetência para a bola.
Belo conto!
Abraço
Eu, não dava para a defesa, pois era medroso
EliminarEu, não dava para o ataque, pois falhava o chuto
No meio campo era bom distribuidor de jogo
Passava bem, centrava bem...sem falhar muito
Abraço identificado
O poema completo de Manuel da Fonseca é um mimo, uma Ode a um passado de jogos e brincadeiras na rua. Tão diferentes esses tempos dos dias de hoje!
ResponderEliminarO Conto que o poema lhe trouxe à memória, acompanha lindamente o poeta e a magia nasceu...Adorei!
Um abraço, Rogério.
É mesmo um mimo...
EliminarRapaz do bairro da lata
Nasci no Vale Escuro
Brinquei entre latas
Pulei o alão
Andei à pedrada
Escorreguei no muro
Caí no jará
Ganhei no pião.
A jogar à bola
Perdi a sacola
Mais o que trazia
A fugir ao guarda
Que nos perseguia.
Mas que bem sabia
Faltarmos à escola!
Já rapaz crescido
Sequer fui ouvido
Só meu pai o quis:
Entrei de aprendiz
Para uma oficina
Minha melhor sina
Ofício gritado
Estalo safanão
Era um pau-mandado
Nas mãos do patrão.
Lembrança de jogos
Que tanto gostava
Deu-me pra pensar
Que jogo era aquele
Que só um jogava?
E no doutro dia
Logo que o patrão
Levantou da mão
Para a bofetada
Peguei num martelo
Entrei na jogada.
Mudei de oficina
Subi de aprendiz
Dobrei uma esquina
Minha vida fiz.
Na escola nocturna
Meti-me a estudar
Tenho namorada
Vamos namorar
Tenho amigos certos
Vamos trabalhar
Todos a lutar
Pelas coisas da vida
Que queremos viver!
Manuel da Fonseca, Obra Poética,
Lisboa, Editorial Caminho, 1998, 8.ª ed.
Eu sou o anónimo! :))
ResponderEliminarDei por isso :))
EliminarNão conhecia o Vale Escuro de Manuel da Fonseca, nem este teu, apesar de reeditado. Gostei muito, claro, apesar de morar numa rua que é um largo passeio ajardinado no qual a meninada ainda vai podendo brincar aos fins de semana e fora dos horários escolares. Por aqui há crianças a medirem forças e habilidades montadas nos seus triciclos e bicicletas, embora ainda não tenha visto nenhuma a jogar ao peão nem ao "mata". Que será feito dos ringues de borracha que tínhamos de apanhar em pleno vôo, sob pena de sermos "mortos" - excluídos do jogo - se os deixássemos tocar no chão?
ResponderEliminarForte abraço, Rogério!
Em pequeno, na idade do bibe e do pião
EliminarJogava jogos de rua, com marcas pintadas no chão
Futebol, cabra-cega, mata e macaca
Fosse outono, primavera ou verão
E até em pleno inverno, suado e de roupa molhada
Hoje, os dessa idade perdem-se em jogos... de telemóvel
Abraço saudoso.
Gosto muito destas narrativas que nos trazem olhares sobre o passado, sobretudo quando a narradora principal é a Alma e está sempre atenta ao futuro.
ResponderEliminarBj.
Lídia
Nunca passamos ao lado do passado!
EliminarMas saudades? Saudades, só do futuro !
Bjinho