24 setembro, 2023

UM CONTO AO DOMINGO - I ( o meu Vale Escuro)


Nasci no Vale Escuro
Brinquei entre latas
Pulei o alão
Andei à pedrada
Escorreguei no muro
Caí no jará
Ganhei no pião.
A jogar à bola
Perdi a sacola
Mais o que trazia
A fugir ao guarda
Que nos perseguia.
Mas que bem sabia
Faltarmos à escola!

Manuel da Fonseca, aqui


Os poetas nascem onde menos se espera e eu não esperava o poema. Ele me remete para a minha infância, para o meu Vale Escuro, ali perto da escola da minha vida, daquela de que vos falei um dia.

À saída das aulas, ou aproveitando um horário não preenchido, chegávamos e quase sempre éramos muitos, 15 ou mais, para jogar à bola. Os lideres, aqueles que há muito se destacavam ou aqueles que eram ali mesmo consentidos como tais, procediam à disputa para decidir qual deveria ser o primeiro a escolher os elementos da equipa, das duas que se iriam enfrentar.

A disputa compreendia um ritual, desde sempre seguido no Vale Escuro e que consistia em cada líder se colocar frente a frente. Cada um à sua vez, ia colocando um pé à frente do outro, calcanhar do pé direito, batendo na biqueira do esquerdo, sincopadamente, estreitando lentamente a distancia entre os dois. O primeiro que conseguisse fazer com que o seu pé não permitisse a entrada do pé adversário, tinha ganho e assim, a ele, lhe competia a primeira escolha, o vencido escolhia o segundo, e cada um ia fazendo a escolha interpoladamente. Nos grupos, cada um esperava com ansiedade a altura de ser escolhido. 

Nunca eu era dos eleitos em primeiras escolhas, e raramente era dos últimos e todos eram escolhidos, pois uma regra seguida, nunca discutida (e sempre cumprida) era dar lugar a todos os que por ali aparecessem manifestando interesse em jogar. Ninguém ficava de fora. Nem os meninos, poucos, das barracas que não iam à escola, ficavam de fora.

(Conto reeditado, este foi o primeiro da série)

12 comentários:

  1. Um conto lindíssimo com memórias de jogos de uma infância nada fácil, mas alegre como só alguns conseguem ser. Manuel da Fonseca com este poema tão real dá o mote para o seu conto que, acredite, me comoveu.
    Uma boa semana.
    Um beijo.

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    1. Escrita que não comove
      ou desperte gargalhada
      nem é escrita que envolve
      nem serve mesmo para nada

      Pode sorrir, Graça
      Beijo

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  2. Faz-me lembrar os lamentos do meu neto mais velho que é escolhido no fim ou é suplente.
    Não tem mesmo a mínima apetência para a bola.
    Belo conto!

    Abraço

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    1. Eu, não dava para a defesa, pois era medroso
      Eu, não dava para o ataque, pois falhava o chuto
      No meio campo era bom distribuidor de jogo
      Passava bem, centrava bem...sem falhar muito

      Abraço identificado

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  3. O poema completo de Manuel da Fonseca é um mimo, uma Ode a um passado de jogos e brincadeiras na rua. Tão diferentes esses tempos dos dias de hoje!
    O Conto que o poema lhe trouxe à memória, acompanha lindamente o poeta e a magia nasceu...Adorei!
    Um abraço, Rogério.

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    1. É mesmo um mimo...

      Rapaz do bairro da lata

      Nasci no Vale Escuro
      Brinquei entre latas
      Pulei o alão
      Andei à pedrada
      Escorreguei no muro
      Caí no jará
      Ganhei no pião.
      A jogar à bola
      Perdi a sacola
      Mais o que trazia
      A fugir ao guarda
      Que nos perseguia.
      Mas que bem sabia
      Faltarmos à escola!

      Já rapaz crescido
      Sequer fui ouvido
      Só meu pai o quis:
      Entrei de aprendiz
      Para uma oficina
      Minha melhor sina
      Ofício gritado
      Estalo safanão
      Era um pau-mandado
      Nas mãos do patrão.

      Lembrança de jogos
      Que tanto gostava
      Deu-me pra pensar
      Que jogo era aquele
      Que só um jogava?
      E no doutro dia
      Logo que o patrão
      Levantou da mão
      Para a bofetada
      Peguei num martelo
      Entrei na jogada.

      Mudei de oficina
      Subi de aprendiz
      Dobrei uma esquina
      Minha vida fiz.
      Na escola nocturna
      Meti-me a estudar
      Tenho namorada
      Vamos namorar
      Tenho amigos certos
      Vamos trabalhar
      Todos a lutar
      Pelas coisas da vida
      Que queremos viver!

      Manuel da Fonseca, Obra Poética,
      Lisboa, Editorial Caminho, 1998, 8.ª ed.

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  4. Não conhecia o Vale Escuro de Manuel da Fonseca, nem este teu, apesar de reeditado. Gostei muito, claro, apesar de morar numa rua que é um largo passeio ajardinado no qual a meninada ainda vai podendo brincar aos fins de semana e fora dos horários escolares. Por aqui há crianças a medirem forças e habilidades montadas nos seus triciclos e bicicletas, embora ainda não tenha visto nenhuma a jogar ao peão nem ao "mata". Que será feito dos ringues de borracha que tínhamos de apanhar em pleno vôo, sob pena de sermos "mortos" - excluídos do jogo - se os deixássemos tocar no chão?

    Forte abraço, Rogério!

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    1. Em pequeno, na idade do bibe e do pião
      Jogava jogos de rua, com marcas pintadas no chão
      Futebol, cabra-cega, mata e macaca
      Fosse outono, primavera ou verão
      E até em pleno inverno, suado e de roupa molhada

      Hoje, os dessa idade perdem-se em jogos... de telemóvel

      Abraço saudoso.

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  5. Gosto muito destas narrativas que nos trazem olhares sobre o passado, sobretudo quando a narradora principal é a Alma e está sempre atenta ao futuro.

    Bj.
    Lídia

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    1. Nunca passamos ao lado do passado!
      Mas saudades? Saudades, só do futuro !

      Bjinho

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