17 setembro, 2023

UM CONTO AO DOMINGO - XXV (A Gata)


A Gata, estava assim, repousando deitada à minha porta de entrada, certa que acordaria à minha chegada. Embevecido com aquele quase-carinho perguntei-lhe, como era domingo, se queria que lhe contasse um continho. O miau dado pareceu-me ser um estar de acordo e, assim, passei ao conto:

"Era uma vez um gato. O gato chamava-se Gato, não por falta de imaginação ou falta de madrinhas (o Gato foi, além do "dono da casa", o primeiro macho da família). O gato chamava-se Gato porque alguém, ninguém se lembra quem, o chamara "anda cá, gato" e o Gato, de pronto, respondeu com um "miau" ternurento ao chamamento. 

Lembram-se do Gato não pelas cortinas caídas, reposteiros arranhados, ou jarras partidas em resultado daquele seu exercício de se passear, lento e dengoso, sobre as prateleiras do móvel da sala onde se expunha (e até hoje continua exposto) um autêntico acervo da memória que o "dono da casa" fazia (e faz) questão em olhar diariamente. Lembram-se do Gato porque ele era a referência da sua própria humanidade: "Se a inteligência tivesse escala, bem podíamos ser  mais humanos..." Lembram-se do Gato, pela sua habilidade em lidar com aquilo que julgava (sim ele tinha esse juízo) ser o temperamento daquela família e de cada um, isoladamente. Com a diplomacia, doçura e afectividade à medida.

Entre o "dono da casa" e o Gato havia um pacto: ele sancionava a liberdade ao Gato de ocupar todos os espaços, o Gato retribuía-lhe não ocupando o espaço que entendia ser cativo do "dono da casa". A liberdade usava-a repartindo todos os regaços e colos, mas na hora do sono ia ter com a dona para aos seus pés dormir, na hora do comer era à dona que ia pedir. Ás vezes miava, mas a comunicação preferida era a de uma agitação contida.
O Gato era um exibicionista, um verdadeiro artista. Bastava que a família estivesse reunida e sem lhe prestar atenção, ele não perdoava a distração e lá vinha aquela correria doida e o salto felino, trepando a parede ao fundo. Ele não se inibia de públicos gestos obscenos com a inesperada namorada, um peluche já com bastante uso, animal indistinto que todos jurariam ser um urso e que o "dono da casa" trouxera de Hannover, como prenda em retribuição de uma ausência... 

Um dia, na janela soalheira que escolhera para seu pouso de todas as manhãs, aconteceu. Um pombo atrevido sobrevoou-lhe o sono e o Gato, num gesto mal reflectido de resposta à provocação, quis ripostar e lá foi... pelo ar. A queda, todos a supunham mortal. O "dono da casa" desceu a escada, três lances em corrida, degraus saltados a quatro e quatro na ânsia de acudir ao Gato. Já na rua, agarrou-o a custo pois o Gato declarava o susto com as garras e com o desespero. O "dono", mesmo arranhado, ia conferindo se estavam todas as sete vidas. Estavam. 
Nessa noite, o Gato dormitou um pouco no colo do seu salvador, até adormecer, como costumava fazer, ao colo da Maria João. Da segunda vez que caiu daquele terceiro andar, nada há que contar: a experiência fez com que tudo parecesse normal.

Epílogo

Perto de um ano depois da João ter saído de casa para ocupar o pequeno apartamento da Cruz Quebrada, ligou chorosa. O Gato desaparecera. O Gato desaparecera sem deixar rasto em todos os lugares onde o procurara, em todas as portas em que batera. O "dono da casa" esboçou um sorriso triste e pensou "A densa mata do Vale do Jamor é um apelo a qualquer felino, que se danem os ratos e que se satisfaça o Gato com verdadeiras fêmeas, mais atraentes que um usado peluche..."
Mesmo na incerteza desse destino, dava-lhe descanso pensar que fora esse o que tinha tido..."
Findo o conto pareceu-me ver-lhe uma lágrima no canto do olho.  Ficou triste a Gata com tal epílogo.

6 comentários:

  1. Ficaria triste qualquer felino
    Por saber de fim tão triste
    Do Gato, um seu igual
    E de tão cruel destino...

    Rogério:
    Não sei se alguma vez lhe disse
    Mas se isso não aconteceu
    Foi por minha grande burrice-
    ou outro qualquer motivo.
    Aquela anónima FM era eu,
    O M de Moreno meu sobrenome

    E F - da minha Avó paterna, o meu nome.

    Um forte abraço.

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  2. Adorei a história do gato chamado Gato. Mas afinal ele perdeu-se na mata do Jamor? Não apareceu mais?
    Uma boa semana, meu Amigo Rogério.
    Um beijo.

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  3. Adorei o teu conto ou não tivesse como protagonista um gato saltador e aventureiro e como ouvinte uma gata muito repimpada deitada à tua espera!

    Abraço

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  4. Reli o teu conto/memória ainda ontem à noite, mas já estava cheia de sono e optei por só me manifestar no dia seguinte, hoje, portanto.
    Creio que o vosso Gato terá encontrado uma namorada mais satisfatória do que o urso de peluche e tendo constituído família, o dever de caçar para sustentar a prole impôs-se ao desejo de voltar ao sossêgo do lar...
    Escrevo isto enquanto a velha Mistral se roça nas minhas calças pretas que começam a ficar brancas, amarelas e laranja/avermelhado :)

    forte abraço!

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  5. Meu caro Rogério
    Que belíssimo conto! sinceramente fizeste-me voltar aos meus anos de adolescente.
    Vivia-mos, meus pais e irmãos numa horta no Alentejo, onde se passeavam muitos animais, como deves calcular mas, a existência de um gato muito especial "O Vizinho" chamava a atenção, lindíssimo, corpulento de pelo cinzento muito brilhante para animal de campo.
    Sempre que aparecia um pequeno rato, quando andávamos nas tarefas da horta, bastava chamar seu nome e lá aparecia ele pachorrento, brincava como ele até se aborrecer e pronto advinha-se o fim do roedor.
    Infelizmente, a nossa vinda para a aldeia foi o fim dele, as gatas e os telhados de alguns vizinhos, fizeram com que ele partisse para algum lugar que não, o lugar dos seres vivos.
    um abraço

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  6. Já nas margens do rio Reno li o conto de domingo como dei um pulo até ir ter com a „dona“. Gostei muito de ler ambos os textos.

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