Há dois dias que a gata não aparece. Há dois dias que o melro se fica por ali... como não é possível que gato se transforme em pássaro, nem é possível que coabitem no mesmo espaço, espero que uma visita não impeça a outra e que se vão revesando...
Perdi-me então, olhando o alegre pássaro, em histórias antigas*:
"Parecia fácil a brincadeira proposta pelo menino, não fosse o ficar fatigado e ofegante pouco depois de a ter iniciado. O menino, o cão e eu, por esta ordem, corremos atrás dos pássaros. O menino ria, o rafeiro ladrava e eu arfava. O primeiro a desistir foi o pombo, que depois de andar por ali a esvoaçar rumou para o beiral do telhado e por lá ficou, sem regressar. O esquivo melro, ia e vinha chegando a ter, de nós, uma proximidade surpreendente. Parecia ter o propósito de nos distrair e entreter. A seguir ao pombo, desisti eu. Sentei-me na relva. O menino não ficou contrariado por eu ter parado e sentou-se ao meu lado, imitando-me a posição. O cão olhava-nos desafiante, talvez o mais frustrado pela brincadeira se ter ficado por ali. A mãe do menino, continuava, na esplanada, na conversa e esquecida de que o filho também a ignorava trocando a sua companhia pela minha, um desconhecido. "Eu corro muito" disse o miúdo orgulhoso do prazer lúdico do seu correr. - "Também corres atrás dos pássaros com o teu filho?"- "Já tenho filhas muito crescidas... corro e brinco é com os filhos delas, com os meus netos..." - "Então porque não estás a brincar com eles agora?" E lá expliquei que aquela era a semana, intervalada, em que o meu neto ficava com a outra avó e que os outros moravam longe." - "O meu pai também brinca muito comigo", disse o menino sem me olhar. Pressentindo que estava mentindo, desviei a conversa e apontei o melro - "Olha, já reparaste que o negro melro não se tira daqui?" E, para continuar, fiz um esforço para me lembrar do pouco que sabia sobre estas pequenas aves, "sabes que o passarito, que sempre andou por aqui e nem fugiu, deve ter definido este espaço como um espaço seu?..." O miúdo interessou-se e mais se interessou quando de seguida me levantei e olhei a árvore próxima - "Se calhar há ninho e crias por aqui...". Havia. Numa pernada da pequena árvore, sob uma densa folhagem, lá estava um ninho. Dentro, quatro crias e perto a mãe. À nossa aproximação o melro cantou um cantar enrolado, belo mas agitado, como que a dar o alarme. "Vês?" - O miúdo abanou a cabeça afirmativamente "Sim!... pega neles e leva para minha casa. Minha mãe tem lá uma gaiola, de outro pássaro que morreu..." - "Nem todos os pássaros aguentam o cativeiro, nem todos os pássaros suportam perder os filhos. Sabes? Os pais dos melros nunca abandonam os filhos, são estes que quando são mais crescidos, decidem quando vão embora?" - O menino olhou-me atentamente e, de seguida, longamente olhou a cena da mãe a dar de comer aos pequenos melros que se agitam dentro do reduzido espaço do ninho. Depois, iniciou uma corrida, direitinho à esplanada onde estava a mãe. Pensei que tinha feito um disparate e que o menino iria convencer a mãe a levar o ninho. Enganei-me. Quando ele chegou, limitou-se a abraçar a mulher e ela, surpreendida pela chegada, lhe correspondeu ao abraço, distraidamente. Ainda bem que a nossa conversa acabara desta maneira. Não saberia como contar-lhe tudo o que sei sobre melros e a natureza humana e que um dia uma boa amiga (a Janita) me contara..."
* (junho/ 2012 - lições de vida, olhando a natureza)
Bom dia, Rogério!
ResponderEliminarTemo que não me ocorram as palavras certas que traduzam fielmente esta profunda comoção que me invadiu, ao fazer contigo esta viagem ao passado.
Com mais um ou dois 'veteranos' nestas andanças, devemos ser os dois sobreviventes de um tempo em que a blogosfera era um mundo.
Quem sabe esse melro, não tenha entrado no teu jardim com a missão de nos reavivar memórias e lembrar que uma boa e sólida amizade resiste a tudo?
Obrigada, Rogério!
Um beijinho.
Gosto da palavra "veteranos" e, sim, acredito que o melro é a alma de Saramago e que, descodificando o seu chilrear me pareceu ter o melro dito "nós somos a memória que temos"
EliminarAbraço sólido querida amiga
As palavras da nossa amiga JANITA são a cereja em cima do bolo!!
ResponderEliminarBeijocas — lembrando a nossa querida TETÉ ☀️
Nem me fale em bolos (a minha pancreatite não me deixa comer doces...)
Eliminare
TETÈ?
Quem é?
Beijoca, deste esquecido
Retribuo também a tua beijoca, Teresa, ao jeito da nossa saudosa Teté.
EliminarMas o Rogério não a 'conhecia'. Nunca se cruzaram e foi pena.
Há vários blogobairros dentro da blogosfera e nós, tu e eu, tivemos a felicidade de pertencer a este e outros.
Saúde para todos!
Para que o Rogério fique a saber de quem falamos, trago AQUI, o último post da nossa Amiga Teté.
EliminarO seguinte, já foi a família a publicar.
Espero que concordes comigo, Teresa Palmira Hoffbauer.
Achas que fiz bem? A nossa Teresa, merecia mais esta pequena homenagem.
Janita
E mais este link também da Luísa da Esquina da Tecla.
Eliminarhttps://aesquinadatecla.blogspot.com/2017/03/a-morte-chega-cedo.html.
Rogério, não quero trazer-te lágrimas nem dor e sim doces recordações.
Janita
Entre lágrimas e doces recordações, gostei muito da tua homenagem à nossa querida TETÉ. Uma mulher e amiga extraordinária que merece nunca ser esquecida como os nossos rapazes Carlos e Rui.
EliminarAbraço-te com amizade, Janita!!
Uma magnífica relíquia dos tempos das Conversas na Esplanada... O tempo passou por nós e deixou profundas marcas, mas por esta tua conversa, parece não ter passado. Poderia ter sido escrita ontem...
ResponderEliminarUm forte abraço, meu amigo!
Tento e frequentemente consigo que tudo o que escrevo seja perene...
EliminarUm abraço de amizade
Como eu sou praticamente um recém-chegado, embora já aqui ande há mais de três anos, só posso valorizar o texto publicado sem conotações afectivas. E gostei.
ResponderEliminarUm abraço.
De há três anos a esta data acentua-se a tendência para o estilo facebuqueano a infestar a blogosfera... já são poucos os que lá, como aqui e aqui como lá, leem aquilo que comentam... Facebook o outra rede social é tudo igual e lembro palavras de Saramago:
Eliminar"O twitter não é mais do que a tendência para o monossílabo como forma de comunicação. De degrau em degrau, vamos descendo até ao grunhido".
Ninguém precisa de uma conta no Facebook ou no Twitter‼️
EliminarQuando a Teté partiu eu estava numa ausência bem difícil!
ResponderEliminarAbraço