10 julho, 2011

Homilias dominicais (citando Saramago) - 39

Tinha programado escrever todos os sábados, ao jeito de balanço sobre os acontecimentos da semana passada, mas não escrevi nada. A primeira explicação que me ocorre é que a semana teria sido tão mal prendada de acontecimentos ruins que mais valeria a pena deixá-los sob o tapete do esquecimento, aquele mesmo tapete para onde a gente desleixada varre todos os lixos deixando a casa aparentemente asseada. Mas uma explicação para a ruptura dum plano nunca vem só, e tenho outra: o desconforto de tratar o meu povo, as minhas gentes, por estátuas. Dei por mim a considerar-me excessivo e descrente, pois só se fala de estátuas para gente morta e o meu rigoroso pensamento é de acreditar em gente viva, disposta a viver, a ser e a pensar. Foi pois por esta duas fortes razões (e não por estar "de férias") que nada escrevi sobre a semana que passou, nem sobre a conduta das almas e mentes empedernidas. Fosse hoje o ontem que passou e teria escrito, pois descobri dois textos de Saramago, um ensinando-me a ler o outro, que me teriam obrigado a escrever o tema de sábado. Não indo a tempo, falo-lhes dele nesta homilia. Um desses (guardado para o próximo domingo) ensinou-me a ler o outro, publicado aqui, pela querida Sam, com o título "Frases Feitas". Que se poderá dizer a gente confusa, abúlica e indecisa - considerando que sua mente se poderá libertar da condição de estátua - se não as palavras recomendadas para lhes serem ditas?
HOMILIA

"Dizemos aos confusos, Conhece-te a ti mesmo, como se conhecer-se a si mesmo não fosse a quinta e mais difícil operação das aritméticas humanas;
Dizemos aos abúlicos, Querer é poder, como se as realidades bestiais do mundo não se divertissem a inverter todos os dias a posição relativa dos verbos;
Dizemos aos indecisos, Começar pelo princípio, como se esse princípio fosse a ponta sempre visível de um fio mal enrolado que bastasse puxar e ir puxando até chegarmos à outra ponta, a do fim, e como se, entre a primeira e a segunda, tivéssemos tido nas mãos uma linha lisa e contínua em que não havia sido preciso desfazer nós nem desenredar emanharados, coisa impossível de acontecer na vida dos novelos, e, se uma outra frase de efeito é permitida, nos novelos da vida."

(José Saramago)

8 comentários:

  1. Sendo o meu amigo parco em palavras ao comentar (falo pela parte que me toca) mas sempre rimados, certeiros e originais, como poderia eu esquecer o maior comentário que já me fez?

    Pois foi exactamente num post em que publiquei esse poema de Álvaro de Campos.
    Como sou vaidosa ( disse-mo um dia)fui lá repescá-lo!

    Ora recorde lá comigo o que me disse naquele dia...

    ~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~

    " Posso discordar consigo
    Um bocadinho
    muito pequinininho
    do tamanho do nosso dedo mindinho?
    Como explicar então a ironia:

    "Ó príncipes, meus irmãos.
    Arre, estou farto de semideuses!Onde é que há gente no mundo? Então sou só eu que sou vil e erróneo nesta Terra?"

    Julgo que há uma linha coerente da personalidade de Alvaro de Campos que se aproxima da sua leitur e daquilo que escreveu. Contudo, acho-a redutora pois ressalta da poesia de AC (no meu entendimento) um tipo de amargura que não é comum aos "cansados da vida". O poema que escolheu para a tese parece dar-lhe razão que logo é parcialmente contrariada pelo Poema em Linha Recta. No fim de tudo...é tão bom lê-lo!

    Beijo

    3 de Fevereiro de 2011 16:36
    ~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~
    Discordando ou concordando, a sua opinião é sempre importante para mim!

    Janita

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  2. Caro Rogério
    Nada acontece por acaso. Os acontecimentos ruins da passada semana não são mais do “réplicas” de decisões ruins que se foram tomando ao longo de décadas. Devia-se ter desconfiado como diz o ditado “a esmola foi grande” mas o pobre não nem nisso pensou.
    Abraço

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  3. Quando o óbvio se impõe e já não há como o colorir, umas frases feitas dão mesmo muito jeito.

    Um beijo

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  4. compreendo-te perfeitamente...

    por essas e outras razões me tenho "refugiado" nuns poeminhas anódinos.

    abraços

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  5. Há coisas que, sinceramente, já nem nos deviam surpreender.

    Boa semana!

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  6. Gostei da tua homilia!
    Sobretudo da 1ª recomendação - fiquei bastante aliviada por não me conhecer nada bem ou reconhecer-me com dificuldade! :-))

    Abraço

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  7. Querido Rogério,talvez tentar viver fazendo o menos mal possível, seja a única sabedoria ao nosso alcance, e que podemos repassar aos demais nas nossas homilias diárias.

    Foi um prazer ver um post meu servindo-lhe de inspiração.
    E de fato, enquadrando-o, como só tu mesmo sabes fazer!

    Um beijo e um desejo de uma ótima semana!

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  8. É isso mesmo: palavras sábias para tentar salvar a (triste) realidade.

    Aproveite as férias junto ao mar que depois, no Inverno, poderá preocupar-se com a (triste) realidade.

    Beijinhos salgados aqui do Sul.

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